2023.05.05 · Música Viva 2023 – Abertura · O'culto da Ajuda em Lisboa
Sond'Ar-te Electric Ensemble sob a direcção de Pedro Neves
música de: Fátima Fonte, Carlos Caires, Rui Penha,
João Pedro Oliveira, António de Sousa Dias e Isabel Soveral
Música Viva de maneiras diversas
PEDRO BOLÉO

Começou o Música Viva, festival dedicado à criação musical contemporânea que vai (já!) na sua 29.ª edição.

O concerto de abertura, transmitido em directo pela Antena 2, começou com palavras de entusiasmo de João Almeida: “é um privilégio estar aqui a ouvir música nova, feita pela primeira vez!”. O radialista e director da Antena 2 entrevistou Miguel Azguime, que falou das características e objectivos deste Música Viva 2023 e que apresentou brevemente as peças que ouvimos de seguida. Os tempos da rádio envolvem o público presente, que aceita com um sorriso nos lábios o jogo proposto (João Almeida fala entre as peças e introduz rapidamente cada uma). Foi uma sala cheia, no O'culto da Ajuda, em Lisboa, para ouvir música portuguesa muito recente (a peça mais antiga era de 2020) tocada por um agrupamento “da casa”, o excelente Sond'Ar-te Electric Ensemble, com a direcção de Pedro Neves.

Estética, atitude, maneira, estilo
Vamos ao concerto? Vamos. Mas primeiro um esclarecimento sobre algumas palavras que usaremos: estética, atitude, maneira, estilo. Arrisquemos definições rápidas, provisórias. Quando dizemos “estética”, queremos dizer o modo de inscrição numa história da sensibilidade; quando dizemos “atitude”, falamos de uma posição perante o tempo presente; quando dizemos “maneira”, queremos dizer a forma concreta de expressar essa atitude, o que passa por uma técnica; e quando dissermos “estilo”, queremos dizer uma maneira feita sua, adoptada, repetida, ou tornada pessoal. Há várias maneiras de expressar uma atitude crítica em relação ao nosso tempo, por exemplo. Elas podem configurar um estilo, se lhe detectarmos coerências ou aproximações com outras obras. E elas podem definir estéticas, se quisermos pensar mais globalmente o que propõem aos nossos sentidos humanos e dentro de que limites (biológicos, sociais, históricos...).

Camila Mandillo, Sílvia Cancela, Jorge Alves, João Casimiro Almeida
Camila Mandillo, Sílvia Cancela, João Casimiro Almeida e Jorge Alves

Descalça de Fonte segura
O Sond'Ar-te começou a quatro vozes, com a flauta de Sílvia Cancela, a viola de Jorge Alves, o piano de João Casimiro Almeida e a voz-voz de Camila Mandillo, soprano em grande forma que cantou e disse o texto de Ana Hatherly que está no centro da peça Descalça, de Fátima Fonte. Uma estreia absoluta de uma obra de rigorosa simplicidade, na disposição e na concatenação dos seus elementos. A poesia de Hatherly é moderna, directa ao assunto, mas plena de ironia. Uma ironia feminista, podia dizer-se, na sua revisitação (de outro ponto de vista) da Leonor de Luís de Camões, a tal que pela verdura vai “formosa e não segura” ... Poesia táctil, nervosa, erótica, que detalha os gestos daquela Leonor, pontuada por intervenções dos três músicos e por uma encenação simples e eficaz (de Joana Providência), em que basta uma luz, um vestido, um pequeno estrado, e uma forma de a soprano largar as folhas de papel. A palavra dita (rapidamente, nervosamente) passa a ser palavra cantada (calmamente), e um vídeo desenha linhas na tela, lá atrás. Mais tarde, o vídeo (da unloop creative agency) voltará com letras que evocam a poesia visual de Ana Hatherly e que nos põem, a nós, espectadores, a inventar palavras. Maneiras simples que, reunidas, formam uma peça cativante e muito bem conseguida, onde nos agrada a atitude despretensiosa e a proposta de escuta (e de visão) – clareza dos elementos e correspondência justa com a poesia, sem folhos nem arrebiques desnecessários. Interpretação certeira do Sond'Ar-te da peça de Fátima Fonte que apetece ouvir outra vez.

Electro-ludens
Veio depois a peça Propagation, de Carlos Caires, onde a electrónica tem papel primordial. Aqui o Sond'Ar-te foi a cinco (violino de Catarina Resende, violoncelo de Filipe Quaresma, clarinete de Nuno Pinto, mais flauta e piano). Ao lado de uma electrónica bem interessante, que nos chama a atenção pela diversidade de objectos sonoros, quase como um percussionista que brincasse com muitos objectos numa mesa (talvez haja ali também água...). Uma atitude electro-lúdica que sabe bem ouvir, porque a música também é um jogo. E, do lado dos “acústicos”, uma música que parece desenho: linhas e pontos, com rápidos gestos (cromatismos descendentes, por exemplo) e poucas sombras. Muitos elementos, muitas cores, mas com uma coerência surpreendente na maneira desse entrecruzar (que é um “entre-timbrar”, por vezes) da “mesa” electrónica com o desenhar dos instrumentos. Um estilo entrevê-se, no seu colorido “piscar de ouvido” aos ouvintes.

Belas apropriações
Seguiu-se Uma peça apropriada, de Rui Penha, uma composição que pretende reflectir sobre o que é isso de “apropriação”, numa atitude conceptual e reflexiva (como acontece frequentemente nas obras de Rui Penha). Em busca de uma apropriação que não seja nem superficial, nem vampirizadora, o compositor propõe uma série de variações harmónicas centradas no timbre – no interior do som. Em cinco partes, Penha parte à procura de uma apropriação não abusiva do Gamelão da ilha de Java. Gamelão é o nome da música, mas também é o instrumento de percussão – estilo e modo. Aqui, em Uma peça apropriada, torna-se uma busca de harmonias metamorfoseando-se, às vezes simplesmente à volta de poucas notas e intervalos (uma terceira maior que regressa, por exemplo). Os gestos musicais são repetidos, porque é preciso dar tempo ao tempo. Mas, em duas das cinco partes, há uma surpresa exterior. Os pés atravessam a fronteira e passam para outro lado. Num belo momento a três, com a viola solista, o vibrafone e o piano (quase inaudível) a fazer-lhe ecos e reverberações (mais uma referência a modos de produzir som do gamelão javanês), a música convida-nos mesmo a tirar os pés do chão. Coisas simples, difíceis de fazer. O vibrafone em pianíssimo (entrou nesta peça João Dias para a percussão), completando o som da viola, é um momento de micro-virtuosismo muito particular. Para simplificar, chamamos belo ao que ouvimos. Mas, no fundo, sabemos que não há o belo em si mesmo - só existe na relação com os nossos ouvidos. A beleza está no encontro.

Riscos da cristalização
Na peça de João Pedro Oliveira, Kra, ouvimos logo um estilo. O seu estilo. E se é verdade que o estilo é o ser humano (“Le style, c'est l'homme”, dizia Buffon), isso pode ser, às vezes, limitador da escuta. Quem não conheça a sua obra, pode maravilhar-se com o virtuosismo da combinação de instrumentos e electrónica. Mas quem ouviu outras obras, pode cansar-se com uma música que não dá espaço ao silêncio (o silêncio é um problema musical fundamental!), sempre preenchido pela electrónica, mesmo quando os instrumentos se calam. E surge uma sensação de clichê, que é o grande perigo do estilo que se cristaliza. Apesar de tudo, na parte final, Kra surpreende com um gesto obsessivo no violoncelo e lança, no minuto final, pistas em aberto para um futuro diferente. Às vezes é difícil sair de si (um pouco que seja) para procurar outra sensibilidade possível.

Um sorriso perene
O concerto prosseguiu com ...de vos sourires, uma composição de António de Sousa Dias para ensemble e electrónica, com uma homenagem explícita (e audível) à compositora Constança Capdeville. Peça que surpreende pela sua atitude de seriedade (apesar do título que fala de sorrisos), desenvolvida quase como uma longa canção. Um lamento – nada de ironias – com o riso de Constança surgindo na electrónica, no princípio, no meio (estruturando a peça) e no fim. Um sorriso que condensa uma imagem de alguém que já não está cá. É o indizível que se busca, em gestos líricos contidos (só por isso não digo “românticos”), o que podia não se esperar de um compositor como António de Sousa Dias, que costuma ir por outros caminhos. Sem medo do gesto emotivo assumido, a peça parece querer invocar e guardar – no coração, mas também no som – uma imagem da compositora homenageada, com quem Sousa Dias colaborou em estreita proximidade antes da morte prematura de Constança em 1992. Pouca variação dinâmica (mas harmónica, sim), porque tudo se joga na construção, entre instrumentos e electrónica, de uma voz colectiva sustentada, de uma harmonia justa, tocante, perene.

O corpo tecido
Finalmente, Salsugem – 2.º quadro, peça de 2021 de Isabel Soveral (e mais uma encomenda da Miso Music Portugal), para o Sond'Ar-te com todos (mas sem electrónica): soprano, flauta, clarinete, violino, viola, violoncelo, piano, percussão. Uma peça que dialoga com um texto de Al Berto (em francês), dito por uma voz que não está “acima” dos instrumentos, mas que se cruza, como instrumento que é, com as texturas do ensemble. Texturas que parecem tecidas electronicamente (bem ao estilo de Soveral), mas que são tocadas, sem electricidade, só por esses estranhíssimos seres humanos. Numa interpretação excelente do Sond'Ar-te, emergiu uma peça consistente e profunda, a partir da poesia dissonante de Al Berto, sempre à margem das certezas do mundo, ou nas fronteiras. Poesia de corpo presente: “Ici la mer mange mon corps”. E a música teve esse corpo.

Música Viva continua até dia 13 de Maio no O'culto da Ajuda, ali em Belém, em Lisboa. Lugar de diálogo e de confronto de estéticas, atitudes, maneiras, estilos. Onde pode haver também a beleza do encontro.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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