2023.05.08 · Festival Música Viva 2023 · O'culto da Ajuda, Lisboa
música de Alberto Posadas, Ângela da Ponte, Iannis Xenakis, Inés Badalo e Miguel Farias
SIGMA Project: Andrés Gomis (saxofone soprano), Ángel Soria (saxofone alto),
Alberto Chaves (saxofone tenor) e Josetxo Silguero (saxofone barítono)
Um concerto de estreias – das obras ao próprio SIGMA Project
ANA SOFIA MALHEIRO

Nesta que é a 29.ª edição do Festival Música Viva, ouviu-se, no passado dia 8 de maio, SIGMA Project, quarteto de saxofones composto por Andrés Gomis, Ángel Soria, Alberto Chaves e Josetxo Silguero. Ao longo dos já 15 anos do projeto, a formação espanhola nunca se havia apresentado na capital portuguesa. Entre o programa escolhido para o O'culto da Ajuda destacou-se a estreia absoluta de Echoes from a near future (2022), da portuguesa Ângela da Ponte, uma entre as 12 obras em estreia durante o decorrer do Festival. Também as composições de Miguel Farias, El Espacio Antrópico y... antropisco (2014), e Inés Badalo, Arkhé (2022), foram interpretadas, pela primeira vez, em território nacional.

Ouve-se o gongo. O concerto está prestes a começar. O cenário é azul, mas tornar-se-á laranja, verde, roxo, vermelho... (como que um guia sinestésico capaz de conduzir as sensações do ouvinte pelas cinco obras apresentadas). De branco, Andrés Gomis é o primeiro a entrar em palco, sob um chamamento que conduz os restantes integrantes do grupo aos cantos do palco remanescentes, num gesto que evoca o emaranhar sonoro concebido por Alberto Posadas, não fosse Knossos (2019) o primeiro quarteto do ciclo Labirintos. Também no que aos registos diz respeito, a peça extravasa a formação tradicional, fazendo com que, inicialmente, todos toquem saxofones soprano. Com a substituição complementar pelo registo tenor e barítono, desvelam-se novas possibilidades tímbricas, embora Knossos acabe como começou — com Andrés Gomis, num pequeno solo de saxofone soprano. Encontramos a saída do labirinto, ficando ainda embrenhados na distinta sonoridade do quarteto.

Seguiu-se a estreia de Echoes from a near future (2022). Estando Ângela da Ponte entre os presentes, pôde ouvir-se uma pequena contextualização sobre a composição vencedora do prémio Ibermúsicas, que distingue composições oriundas dos vários países latino-americanos. De acordo com a compositora, a peça problematiza a influência das tecnologias na sociedade contemporânea, pontuando problemas sociais que dela podem resultar. Trata-se de uma “obra dramática”, partilhou. Aqui, a eletrónica tem um papel elementar, remetendo-nos para um escape de ar que compõe a paisagem sonora e que envolve os saxofonistas, com material musical análogo. No decorrer de Echoes from a near future, o outrora som de altura indefinida define-se, intensifica-se e adensa-se, sendo-nos já impossível dissociar o material acústico do eletrónico. A audição de “ecos”, consequentes da recorrência e partilha de materiais (noção espelhada pelo título escolhido), é permeada por percussões no saxofone, seguidas de momentos de tensão pelo soprano, que, num registo extremo agudo, nos desperta, inquieta e sobressalta. Sem dúvida um trabalho merecedor do reconhecimento internacional conquistado, de beleza e complexidade que o quarteto tão bem deu a conhecer.

Esta dramatização culmina na terceira obra, El Espacio Antrópico y... antropisco (2014), que parte de um pequeno fragmento de teatro musical, no qual Miguel Farias explana a noção antrópica do mundo, que vê como causa da criação do espaço e da vida a existência humana, ainda que o compositor sugira, humoristicamente, que a verdadeira causa é não só a existência dos Homens, mas o seu prazer. Entre a azáfama dos motivos ritmados, entremeados por momentos de homofonia entre o saxofone soprano e alto, ouvem-se palavras, inicialmente não distintas de meros sons guturais, mas que vão ficando, gradativamente, mais inteligíveis. “Escucha la tierra”, pôde ouvir-se. E foi com o palco vazio, após a saída intercalada dos quatro intérpretes — como que sob um gesto de concordância com a mensagem a passar —, que se finalizou a primeira parte do concerto.

De volta ao palco, ouviu-se Arkhé (2022), de Inés Badalo, obra outrora estreada por este projeto. Numa composição afim ao conceito filosófico grego que a nomeia, caraterizado pela incessante procura da substância, da qual tudo deriva e onde convergem, em última instância, os contrários; a música revela uma viagem pelas diferentes zonas do som, desocultando diversas formas de extração sonora no saxofone. Neste sentido, Arkhé apresenta longos ostinatos, pontuados por sons mais secos ou em registos convencionalmente menos explorados, além do timbre aveludado que preenche o imaginário comum.

Para fechar o programa, o SIGMA Project optou por um “clássico” de 1987, termo de Andrés Gomis, em referência a Xenakis. Numa dicotomia entre aleatório e regular, entre movimento e estabilidade, o mestre da estocástica exprime o que pode entender-se como um caos organizado. Em XAS (anagrama de “sax”, com ligação direta ao nome do próprio compositor, XenAkiS), os saxofones movem-se em registos próximos, por vezes, idênticos, embora as passagens em uníssono e os momentos de cluster harmónico, que evocam um ambiente organístico, sejam rapidamente substituídos por instantes de (des)encontro, espelhados por passagens contrapontísticas paralelas, em movimentos canónicos apertados. Este intercalar está também presente no tratamento dos registos, ora tendencial e progressivamente agudo, ora o contrário, em resposta ao mote grave do barítono. Entre estes diálogos padronizados, surgem microtons e multifónicos, embora o uso destas novas técnicas seja pontual. XAS, além da única obra de Xenakis para o instrumento, é, com efeito, uma peça incontornável entre o repertório para quartetos de saxofones, eximiamente interpretada pela formação espanhola.

Tal como indicado nas notas de programa, o SIGMA Project é, de facto, “constituído por quatro saxofonistas de exceção”. Louve-se a conceção do programa, feito especialmente para o Festival Música Viva 2023, que em pouco mais de uma hora tão bem representou a ambiguidade de estéticas e estilos patentes na “música do nosso tempo”. Entre os que no O'culto da Ajuda apareceram, ficou, certamente, a vontade de rever a formação nas próximas edições do Festival.

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