2023.05.27 · Museu Nacional dos Coches – Antigo Picadeiro Real, Lisboa
música de Joly Braga Santos, António Chagas Rosa e György Ligeti
Pedro Neves (maestro), José Pereira (violino), Orquestra Metropolitana de Lisboa
Uma dança de imagens sonoras: Chagas Rosa com Braga Santos e Ligeti
SARA MAIA

No dia 27 de maio a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida por Pedro Neves, repetiu no Picadeiro Real em Lisboa o programa apresentado no dia anterior nos Reencontros de Música Contemporânea em Aveiro, promovidos pela associação Arte no Tempo. Encomendada por esta mesma associação, destaco, neste recital, a estreia do “Concerto para Violino e Orquestra” (2023) de António Chagas Rosa, com José Pereira no violino. O programa incluiu mais dois concertos (dando assim sentido ao seu título, “Três Concertos”), curiosamente ambos do ano de 1951. São eles o “Concerto para Cordas em Ré”, de Joly Braga Santos e o “Concerto Romeno”, de György Ligeti (revisto em 1990).

Os ouvidos do público são despertados pelas sonoridades graves do concerto de Braga Santos, com as violas, violoncelos e contrabaixos. Entram em seguida os violinos que apresentam um tom de prólogo, também num registo grave. Este momento mais íntimo leva-nos para uma sensação nostálgica, quase inerente à condução melódica. Seguindo-se o Adagio, os músicos, envolvidos no cenário sonoro de um modo grave e intenso, transportam-nos para um retomar da sonoridade profunda inicial. O último andamento – um Rondó –, com uma expressividade muito própria, sobressaindo vários momentos em pizzicato, conduz o público para um espaço mais dançante, a cinco tempos, que são contados pela assistência com um leve bater do pé ou um abanar da cabeça, esboçando um sorriso.

António Chagas Rosa · © Bruno Nacarato
António Chagas Rosa · © Bruno Nacarato

Após um concerto destinado apenas às cordas, os sopros e a percussão instalam-se para dar início à estreia do “Concerto para Violino e Orquestra” de António Chagas Rosa. Somos surpreendidos, no início, pela conjugação invulgar da harpa e das clavas, que principiam o concerto com um ritmo muito claro, como que marcando o tempo. O violino solista junta-se, pouco depois, a esta conjugação de instrumentos: pressente-se, com esta introdução, o destaque que este instrumento terá ao longo da obra. A primeira parte deste concerto é sublinhada por um certo clima de tensão, que se evidencia nas melodias mais intrincadas do violino, bem como num constante acentuar de momentos em contratempo – o ouvinte é projetado para um universo de inquietudes sem repouso, longe de se poder sentir um tempo forte, recurso musical que ao longo dos séculos a música tanto nos foi habituando. Esta primeira parte introduz também uma técnica de escrita que será recorrente ao longo da obra: um diálogo de melodias entre vários instrumentos, que continuam, como se de uma conversa se tratasse, a linha do instrumento anterior. Esta abordagem composicional – «do timbre como expressão da ideia musical, o estudo infinito das possibilidades de cada instrumento», como refere o compositor em entrevista ao MIC.PT em fevereiro de 2015 – principia-se entre o violino e a orquestra, que será seguido, mais tarde, pela concertino. Com o decorrer da obra este diálogo passa para os sopros: metais, flautas, depois o oboé (que terá até um contraponto do solista em pizzicato) e, mais tarde, o clarinete.

Depois deste momento inicial mais tenso, temos espaço para uma valsa, onde sentimos claramente os três tempos a serem marcados pela percussão. A tensão inicial vai espairecendo, dando origem a outras paisagens sonoras, que, como indica o compositor, «são locais onde o meu prazer cinematográfico dá asas à imaginação», dando assim também espaço ao ouvinte de usar a sua, identificando-se de um modo pessoal com estas diferentes paisagens. Mais tarde, o ritmo transforma-se, relembrando algo jazzístico, com os pratos, seguindo-se a sonoridade dos contrabaixos e dos violoncelos. José Pereira retoma o toque, e os sopros destacam-se, aludindo talvez a uma big band. Depois de uma espantosa adição de sonoridades que relembram uma bateria, a tuba, as percussões e os contrabaixos concluem a peça com um momento mais dançável.

António Chagas Rosa · © Bruno Nacarato
José Pereira · © João Francisco Vilhena

A estreia de Chagas Rosa é surpreendente em vários aspetos. Ao distanciar-se das influências do expressionismo alemão e da segunda escola de Viena (Schönberg, Berg), o compositor mergulha em sonoridades europeias mais nostálgicas, sugerindo um clima modal, combinando elementos country, inserindo simultaneamente uma abordagem jazzística. É notável a influência de Stravinsky, cujo último movimento do seu próprio concerto para violino nos transporta para esse ambiente coreografado que Chagas Rosa considera inesgotável como fonte de inspiração. Por outro lado, o instrumento solista, caracterizado pelo compositor como «enérgico e rebelde» transporta-nos para vários lugares, desde melodias apaixonantes e virtuosas – que utilizam variados recursos do violino como a técnica col legno – cheias de cromatismo, até vários momentos de graus conjuntos caracterizados por uma alucinante rapidez. Há que louvar, neste sentido, a técnica e a interpretação de José Pereira, cuja expressividade cativou o público durante todo o concerto. Por outro lado, evidencio a importância da percussão: inicia-se desde logo com o apontamento inicial das clavas, mas vai-se expandido com interlúdios mais extensos, que recorrem a vários outros instrumentos, dos quais se destacam os tímpanos, o gongo, e, nos dois andamentos finais, os pratos. Saliento também o papel da tuba, que com a utilização constante do seu timbre abafado e grave, confere uma cor original ao tecido orquestral. No final da obra, este instrumento é até particularmente importante, estabelecendo uma nota que confere ao ouvinte uma certa sensação de repouso, aludindo até a uma cadência «dominante-tónica».

Sem procurar nenhuma estrutura formal específica, a obra, como indica o compositor, «evolui como se se tratasse das páginas de um diário, daí resultando uma composição que exprime mais as minhas visões pessoais do que a ambição de corresponder a um qualquer modelo». Tendo a concordar com esta visão: a não interrupção clara entre os andamentos, projeta-nos de forma ainda mais clara para uma leitura ininterrupta deste espaço íntimo, deste pedaço de vida com sucessivas paisagens.

O “Concerto Romeno” de Ligeti concluiu o dia, em jeito de celebrar o final de tarde, celebrando também o centenário do nascimento deste compositor. Este concerto, de 1951, é composto ainda muito antes das inovações revolucionárias de “Atmosphères” (1961) e “Lux Aeterna” (1966), transportando-nos para um universo sonoro modal. Um concerto para nenhum instrumento em particular, mas para tantos, simultaneamente: as melodias transitam de instrumento para instrumento, dando pequenos, mas marcantes solos a vários timbres da orquestra. Depois de uma melodia solene que caracterizará o primeiro andamento, o segundo, Allegro vivace (com especial destaque para o motivo do flautim acompanhado pela percussão), é de novo uma dança modal, mas desta vez mais rápida que as ouvidas nas obras anteriores. A sonoridade relembra a atmosfera tradicional de Bartók e Kodály, fortes influências para o compositor, como é apontado nas notas de programa. Este momento dançável – que se repete no último andamento – tem a particularidade de, por duas vezes, ser interrompido pelas trompas, que nos levam para o seu efeito primordial de chamamento, ecoando pelo campo. No final, toda a orquestra se remete para um pianíssimo, com os violinos em harmónicos criando de novo serenidade: ouvem-se as trompas, com sucessivos intervalos de quarta, até ao culminar do último acorde orquestral.

«A música é uma arte de imagens sonoras», diz-nos Chagas Rosa, na sua entrevista ao MIC.PT em 2021. Neste sentido, é de enaltecer o delineamento do programa, que cria uma narração fluida destas imagens, unindo as obras de Chagas Rosa, Braga Santos e Ligeti. Apesar das distintas influências de cada obra, desde Stravinsky em Chagas Rosa, Bartók a Kodály em Ligeti, ou as influências estruturais mais clássicas patentes na obra de Braga Santos, as três peças interligam-se em vários pontos: vive-se um constante estar dançante, com uma transição clara de melodias entre vários timbres da orquestra, bem como uma atmosfera comummente modal. Neste sentido, além da interpretação de José Pereira, destaco, durante esta transição de melodias, a inspiradora interpretação da concertino, da primeira viola, bem como das flautas. Um obrigado à Orquestra Metropolitana de Lisboa, a José Pereira e também a Pedro Neves, que, com subtileza e assertividade, conduziu os músicos e, nesse sentido, também o público, a uma dança conjunta.

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