2024.03.12
Temporada de Música de Câmara Jovem, O’culto da Ajuda, Lisboa (2024.02.25)
Quarteto Metamorfose: Pedro Rebelo (1.º violino), João Sá (2.º violino)
Djonathan Silva (viola d’arco), Carolina Costa (violoncelo)
Música de: Anton Webern, Tiago Quintas, György Ligeti e Dmitri Shostakovich
Nova música de câmara, criando raízes
PEDRO BOLÉO
Quarteto Metamorfose
Quarteto Metamorfose

A música futura terá raízes também hoje, como a música do presente tem raízes lá atrás. Ora aí está um bom exemplo: Langsamer Satz, de Anton Webern. É o Webern que admira Brahms e compõe um “andamento lento” em quarteto para a sua amada. Música com vontade de ir mais longe, que aponta já outros caminhos e outros lugares (musicais e expressivos) aonde ir parar. O Quarteto Metamorfose pegou nesta obra para começar o seu concerto de 25 de Fevereiro, um Domingo à tarde, no O'culto da Ajuda, em Lisboa. Tocou Langsamer Satz com delicadeza, talvez até demais, porque esta música precisa de algum arroubo e não pode esconder o seu ímpeto romântico – teria de ser mais à corda e mais extremado nas suas dinâmicas. Pelo menos foi assim que nos habituámos a ouvir esta obra de 1905, apaixonadíssima, com alguns efeitos novos e alguns aspectos do Webern futuro.

Tudo isso é passado para o muito novo Quarteto Metamorfose que inaugurou, no O'culto da Ajuda, a “Temporada de Música de Câmara Jovem”, um projecto realizado pela Miso Music Portugal em parceria com Associação Portuguesa dos Amigos da Música – APAM. Projecto salutar de incentivo à música de câmara e, ao mesmo tempo, à criação contemporânea. O Quarteto Metamorfose é formado por Pedro Rebelo (1.º violino), João Sá (2.º violino), Djonathan Silva (viola d’arco) e Carolina Costa (violoncelo). Eles foram orientados, no seu início (em 2022) por Vítor Vieira, violinista do Quarteto de Cordas de Matosinhos e do Sond'Ar-te Electric Ensemble. E dedicam-se com esmero à música dos séculos XX e XXI, como ficou bem claro neste concerto.

Depois de Webern, o jovem Tiago Quintas apresentou ali a sua peça (in)distinguível, descrevendo-a como um “jogo de percepções” que trabalha diferentes aspectos em cada parte da obra: frequência, dinâmica, ritmo (e tempo), espaço e timbre. Será que o público e os intérpretes percebem o que é diferente? O compositor aguçou a nossa curiosidade, pondo-nos à procura do que sabemos distinguir na nossa escuta e da sua antítese (o que não percebemos ser distinto), que o título (in)distinguível integra. Tiago Quintas explicou também que a sua escrita, apesar do rigor, “dá asas a muitas possibilidades de performance”.

A peça começa com um mais-que-pianíssimo, ou seja, com os intérpretes a “tocarem silêncio”, mexendo o arco, mas ainda não tocando na corda. A partir daí, uma peça em estreia absoluta (encomenda da Miso Music Portugal), foi-se revelando aos nossos ouvidos. De suavidades extremas a gestos fortes e enérgicos, foi-se distinguindo a beleza de (in)distinguível e o seu discurso próprio, neo-expressionista, às vezes. Espreita ali a melancolia de um Alban Berg, mas logo se afasta para dar lugar às inquietações de Tiago Quintas e ao seu jogo de percepções. No final, a peça quase que se “desfaz”, como se se abrisse a novas sonoridades e ruídos. A melancolia é abandonada, para dar lugar a uma certa ironia, deixada em aberto. Uma peça em estreia é sempre um acontecimento. Esperemos que ganhe vida e se “descubra” com o Quarteto Metamorfose (e mais quem lhe quiser pegar).

Houve ainda tempo para duas peças de gigantes: primeiro o Andante e Alegretto para Quarteto de cordas, de György Ligeti, peça de 1950, ainda devedora de Bartók, inspiração importante para o primeiro Ligeti. Aqui não há nada ainda do vanguardismo mais radical do compositor, que virá mais tarde, mas há passagens quase “neo-clássicas”, que Ligeti trabalha com uma sensibilidade harmónica muito especial e que o jovem quarteto de cordas soube mostrar bem. E depois, finalmente, o exigente Quarteto n.º 11 de Shostakovich, de 1966, que o Metamorfose tocou com coragem, trazendo-nos o ímpeto dramático e a força dissonante da peça, que às vezes convive em Shostakovich com uma gargalhada ácida sobre o mundo. Um quarteto de gente tão nova será capaz de captar o carácter e as contradições de uma obra assim, do maduro Shostakovich, que tinha 60 anos quando a escreveu? Sim. Porque a música tem a sua linguagem própria, e em todas as idades há amargura e desafio.

P.S.: Nesta “Temporada de Música de Câmara Jovem 2024” houve também concertos do Trio Xenagos, no dia 3 de Março e do Trio.2, no dia 10. Seguem-se ainda os concertos do Quarteto de Percussões da Metropolitana (17 de Março) e do Quarteto Messiaen (dia 24 de Março), sempre às 17h00 no O’culto da Ajuda em Lisboa.

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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