2025.11.28

Coro ECCE, Paulo Lourenço (maestro), Rita Tavares (solista),
José Pereira (violino), Nuno Rodrigues (violino), Joana Cipriano (viola), Nuno Abreu (violoncelo),
Filipe Freitas (corne inglês), Maria Lourença (harpa), Francisco Cipriano (percussão).
Obras em estreia absoluta de Carlos Caires e Sara Ross;
e música de Ildebrando Pizzetti, Rodrigues Esteves e Antonio Lotti.
Quinta-feira, 13 de Novembro, às 19h30, Igreja de São Roque, Lisboa.
Misericórdia para a música contemporânea
PEDRO BOLÉO

A Temporada Música em São Roque, uma das mais antigas temporadas de concertos de Lisboa, encomendou a dois compositores contemporâneos obras para assinalar os 500 anos da morte da Rainha Dona Leonor. Música em São Roque está associada sobretudo à música antiga e clássica, pelo que não deixa de ser surpreendente (e saudável) a abertura destas encomendas a dois compositores da actualidade: Carlos Caires e Sara Ross.

Num dia chuvoso e ventoso, que provocava bastante ruído mesmo no interior da bela Igreja de São Roque, conseguiu-se ainda assim escutar as obras cuidadosamente interpretadas pelo Coro ECCE e por um conjunto de músicos bastante jovens e de grandes capacidades. Já não é preciso referir como a interpretação musical em Portugal deu um salto gigantesco nas últimas décadas, mas vale a pena ainda sublinhar o facto de que muitos jovens músicos estão hoje aptos a tocar qualquer música, incluindo desafiantes composições contemporâneas.

O concerto começou com uma obra de Carlos Caires, uma inusitada incursão na música coral e religiosa, com uma Cantata para Dona Leonor, para coro, corne inglês, harpa, percussão e quarteto de cordas. Inusitada não apenas pelo motivo religioso escolhido (o texto usado provém do Evangelho Segundo São Mateus), mas também por se tratar de uma obra coral (não são muitas as criações do compositor neste campo). Mas a peça de Carlos Caires surpreende precisamente por se mostrar bem à vontade nestes terrenos. Com referências sonoras assumidas na polifonia renascentista, mas com uma sonoridade totalmente contemporânea, que bebe a outros compositores importantes para Carlos Caires, como Messiaen, Stravinsky ou Ligeti.

E, no entanto, a sua música não soa como a de nenhum destes compositores, tecendo-se numa exploração tímbrica que é central, mas que procura não se sobrepor ao texto cantado. A sonoridade do corne inglês é usada com destaque nalgumas passagens, desde o início. A percussão tem um papel importante também. Filipe Freitas (corne inglês) e Francisco Cipriano (na percussão) destacaram-se no conjunto instrumental. A estrutura da obra deriva, no entanto, do texto, cantado pelo coro em partes que alternam zonas tranquilas com partes mais agitadas, por vezes contrapontísticas, piscando o olho à polifonia num sentido mais tradicional. Perto do final, tubular bells da percussão e corne inglês voltam a destacar-se sobre um quarteto de cordas onde se desenha a rede da textura harmónica.

A forma de cumprir a encomenda passou neste caso pela escolha de um texto em que a “bondade para com os mais frágeis” é central e que tem relação com a missão de “misericórdia” da Santa Casa e daquela que é considerada a sua primeira promotora, Dona Leonor. Na conhecida passagem do Evangelho Segundo São Mateus escolhido por Carlos Caires pode ler-se: “Eu tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber; eu era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e viestes até mim.” O texto é dividido em seis partes que correspondem às partes da obra, terminando depois placidamente, enquanto a chuva lá fora se dava a ouvir cada vez mais.

Música com estas características, em que é importante a clareza da textura e dos timbres, levanta alguns problemas na Igreja de São Roque e nas suas ressonâncias. Mas como podia ser doutra forma? Amplificar ali também seria difícil. Apesar de algum embaralhamento sonoro, o essencial da peça de Carlos Caires passou para o público de cerca de uma centena de pessoas.

O ruído agravou-se depois, durante as peças de Ildebrando Pizzetti (compositor italiano do século XX, mas interessado na música antiga), Rodrigues Esteves (compositor barroco português) e Antonio Lotti (compositor italiano dos séculos XVI e XVII). Mas o Coro ECCE mostrou as suas qualidades, com a boa direcção de Paulo Lourenço, conseguindo articular bem as peças religiosas que pretendiam “rimar” com a barroca Igreja de São Roque.

Para terminar o concerto, a peça de Sara Ross, intitulada No Teu Nome, que pegou também “a sério” (e mesmo com forte carga emotiva) no assunto proposto, e foi buscar a sua ideia central às histórias do “arquivo das crianças expostas” da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (um registo comovente das crianças deixadas ao cuidado da instituição). Como explica a compositora nas notas ao programa, “a peça habita um lugar simbólico construído a partir de uma selecção de versículos que formam um texto, um sujeito e um material musical cíclicos, acumulando camadas de significação”.

São fragmentos dos quatro Evangelhos e salmos isolados que constroem a parte textual do material da peça. Um exemplo: “Ainda que meu pai e minha mãe me abandonem...”, frase na primeira pessoa, que regressará no fim, numa espécie de calmo micro-cânone (“ainda que...”). Ou a frase “Senhor, desce, antes que o meu filho morra”, que puxa a música para um registo claramente dramático. Ou esta ainda, retirada de São Lucas: “As coisas que são impossíveis aos homens são possíveis a Deus”, objecto de alguns sublinhados e jogos musicais pela compositora nos seus “impossíveis”.

A peça de Sara Ross, livre e eclética, tem a curiosidade de, depois de usar os textos cantados uma vez, voltar a usá-los de novo de outras formas. O efeito é bastante surpreendente, poliestilístico e pós-moderno (repescamos este adjectivo que saiu de moda, talvez por cansaço ou por perda de sentido), como se a compositora dissesse: “também podia fazer assim... ou assado...”, multiplicando as maneiras de abordar o texto e carregando-o de sentidos diferentes. A certa altura, Sara Ross arrisca-se mesmo a sobrepor textos, como se praticou, aliás, na música religiosa medieval, por exemplo nos motetes que usavam várias línguas sobrepostas. E os efeitos são bem inesperados, numa espécie de “teatro de vozes”, vozes múltiplas nos registos, no carácter e no lugar de enunciação, entre a invocação sagrada e o sofrimento profano.

Dos ganhos — e gastos — enormes da Santa Casa da Misericórdia (que embora não tenha legalmente fins lucrativos, move muito dinheiro com o jogo, mas também com negócios “complexos” em muitas áreas, como o imobiliário, como é sabido), umas migalhas vão para a cultura — e uma pequena migalhinha veio desta vez, num acto de atenção à contemporaneidade, para a encomenda de obras actuais, pondo a misericordiosa Dona Leonor como assunto do repertório contemporâneo. Quem diria!...

O Autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

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