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Voz, O Impossível
JELENA NOVAK
Tradução: Helena Romão

"Itinerário do Sal
Miguel Azguime
Miso Ensemble
miso records (mdvd001.07)

“Entro na sala a correr. Óptimo, ainda não começou. Ou terá começado? Está um homem no palco. Será um homem ou uma sombra? Deve ser um homem, escurecido, com um olho projectado por detrás. Parece o Miguel. Um olho enorme. Será o dele? Não sei. Podia ser: é azul. Observa-nos e pestaneja. Multiplica-se! Agora há muitos olhos projectados no palco, todos a fixar-me. Não é sedução, é vigilância – divertida, atenta e assustadora. O público vai entrando com um ruído contínuo. Começou ou não? “S I L Ê N C I O!” grita a voz amplificada. Agora estou certa de que é o Miguel. É quase impossível confundir a sua voz (...)“

Na sua actuação em Itinerário do Sal, Azguime fala, murmura, grita, recita, simula a escrita, percute. Aos sons produzidos no palco o espectáculo inclui ainda intervenções electrónicas invisíveis mas audíveis, produzidas pelo autor / performer, através de sensores colados no seu corpo. A sua “voz natural” é constantemente sobredimensionada por essas intervenções através da utilização de amostras da sua própria voz, processando-as, fazendo loops e sobrepondo os sons processados à actuação ao vivo. O discurso é sobre a ausência do autor, som, silêncio, texto, corpo, alienação, voz. Sendo autor do texto e da música e actor nesta actuação ao vivo, Azguime ocupa nesta ópera uma posição ideal para provocar um questionamento virtuoso das ideias de autoria de música e texto.

É uma ópera digital. Tanto os efeitos visuais como sonoros são obtidos através de processos digitais complexos. O libreto não tem uma narrativa linear. Mas o drama está em palco, mesmo sem um enredo no sentido clássico da palavra. Trata-se da dramaturgia da autoria e a sua trajectória não é hierárquica, não tem clímaxes nem anti-clímaxes. É contínua, porque tudo o que Azguime faz em palco torna-se efectivo num meta-nível, mostrando a instável existência do autor, posta em questão no contexto de uma tecnologia muito avançada. Desde Einstein on the Beach (1976) de Glass / Wilson a instituição operática entrou na sua nova era (pós-)histórica, com vários artistas a demonstrar uma atenção redobrada e uma necessidade de comentar a era dos média. No entanto, não houve muitas óperas digitais em algo semelhantes ao Itinerário do Sal. Conjuntamente com obras raras tais como a esquizo-ópera One do holandês Michel van der Aa e a performance pós-rock Speech de Blixa Bargeld, o trabalho de Azguime afirma um lugar específico no contexto pós-histórico deste género musical. A posição que estabelece questiona a performance art, a ópera e o monodrama, em conjunto com a alta tecnologia. Finalmente em versão DVD, a obra levanta agora um nível extra de questões que é necessário abordar.

Na idade pós-industrial dos média, a ópera reflecte estratégias económicas e de poder da sociedade. O veículo dessa reflexão é o “mais requintado objecto de consumo, o corpo” (Baudrillard) e o modo como é representado no mundo da ópera. O Miguel Azguime exibe o seu corpo performante em palco. No corpo como no écran é visível o drama agonizante do processo criativo. Estamos perante o corpo do autor em sofrimento e convulsão, em luta com o vazio do silêncio, rasgando a brancura do local sem palavras. Há um contraste marcante entre o drama da criação que se desenrola no palco e as intervenções divertidas do autor, o que faz oscilar constantemente a disposição do ouvinte entre o humor aprazível e a tragédia profunda.

Mais importante ainda que o questionamento e exploração do estatuto da ópera na actualidade, será a questão que Azguime nos propõe sobre os efeitos da instituição do compositor na era dos média. Como artista capaz de intervir simultaneamente em diferentes campos, ele responde às necessidades criadas pela actual era de exigências tecnologicamente complexas. Azguime transfere todo o processo composicional do domínio do sonoro para o evento multimédia. O Itinerário do Sal pode ser visto como meta-composição, composição da composição ou ópera sobre ópera. A estratégia composicional de Azguime inicia-se na composição do texto literário. O texto literário torna-se então falado, e mais tarde re-composto pelas intervenções electrónicas. Além disso, a matriz sonora é completada pela imagem captada ao vivo e as intervenções vídeo projectadas.

E o que aconteceu à voz? A voz operática foi durante séculos o único sintoma da corporalidade operática. Uma coloratura poderosa desvendava infinitamente a máscara da sua origem, oferecendo-se como objecto de desejo. Funcionava como um mecanismo que permitia esconder a origem corporal da vocalidade. A diva era tratada como uma figura quase incorpórea, cujo corpo se encontrava sublimado na voz. Era uma máquina de cantar; um mecanismo vocal aprisionado num corpo cuja corporalidade “natural” não era “apropriada” às normas sociais do mundo da ópera. No Itinerário do Sal a voz foi devolvida ao corpo e ultrapassa-o. O corpo é assistido por diversos aparelhos digitais que potenciam as suas possibilidades, de modo a que a figura de Azguime em palco se torna numa espécie de entidade cyborg sonora.

Mas de quem é a realmente a voz que está em palco? Não é apenas o corpo de Azguime que “canta” nesta ópera. Se bem me lembro do texto de Roland Barthes O Grão da Voz, torna-se evidente que “o grão” é o corpo que existe na voz cantada, na mão que escreve, no membro que actua. O corpo de Azguime tem uma relação protética com o conjunto de aparelhos que apoiam a sua virtuosidade vocal e lhe permitem executar tarefas complexas. Essa vocalidade ultrapassa o corpo do autor, que é uma máquina des-territorializada que produz uma voz impossível, objecto de desejo. Como o sal, a voz artificial dá um agradável sabor a esta ópera. A voz desconstrói o texto escrito e anuncia o estado do corpo do autor molecular. Reflecte todos os dilemas, indagações, segredos, fracassos, esperanças, obsessões, desejos e poderes do escritor, compositor e músico no mundo da ópera contemporânea ocidental.

“(...) finalmente em casa. Sem pressa, ligo o DVD, sento-me frente à televisão, oiço a ópera. Olho-a. O olho está no écran, observando-me e espelhando-me. O écran torna-se o meu inevitável companheiro. Não há incerteza performativa na era da reprodução digital. Eu podia fazer escolhas bizarras – aumentar ou diminuir o som ou ver em velocidade acelerada. A voz é uma aposta. Penso no DVD como um documento de uma actuação ao vivo... Mas há mais. Intencionalmente ou não, enquanto DVD o Itinerário do Sal questiona fortemente mais uma instituição – o programa de televisão. Trabalha com o meio da televisão e envolve-o no processo de significação. A actuação ao vivo tornou-se numa ínfima parte da experiência operática. O contexto modifica a prática significante. Nunca voltará a ser a mesma... Bom, ainda não acabou. Posso sempre voltar a ver.”

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