Foto: Miguel Resende Bastos
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Questionário / Entrevista
· Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais? ·
Miguel Resende Bastos: Eu comecei a ter aulas de música aos quatro anos, na Escola de Música de Leça da Palmeira. Comecei a estudar piano aos seis e flauta transversal aos dez e estudei ambos até ao quinto grau. No sexto grau, cansei-me do piano e continuei apenas a estudar flauta até ao concluir o oitavo grau, na Escola de Música Óscar da Silva. Cheguei ainda a estudar saxofone durante três anos. Curiosamente, nunca tive muita paciência para estudar um instrumento e acho que todos os meus professores iriam concordar.
· Que caminhos o levaram à composição? ·
MRB: No sexto grau tive aulas de Análise e Técnicas de Composição com o compositor Daniel Moreira. Felizmente, talvez por as aulas serem ao final da tarde de sexta-feira, ele tinha alguma propensão a fugir ao currículo e não falar de contraponto renascentista. Lembro-me particularmente de duas aulas. Uma em que tivemos de esperar que o professor chegasse e eu me sentei ao piano a tocar o “Bruyères” de Claude Debussy, que ainda estava fresco do exame de quinto grau e claramente era mais interessante do que a aula que estava planeada, porque passou a ser o tema da aula. E outra em que eu fui o único aluno a aparecer e fomos para biblioteca ouvir e analisar o “Quarteto para o fim do Tempo” de Olivier Messiaen. Agora somos amigos e eu digo-lhe que a culpa é dele.
· Que momentos da sua educação musical se revelam, atualmente, de maior importância para si? ·
MRB: Sem dúvida o meu percurso no ensino superior, em particular as aulas com os compositores Dimitris Andrikopoulos no Porto, Ivo Medek em Brno e Robin de Raaff e René Uijlenhoet em Roterdão. Ainda hoje é frequente lembrar-me das aulas e tirar novas conclusões sobre aspetos que na altura não tinha maturidade musical para entender completamente. Mais do que ter frequentado esta ou aquela escola, o mais educativo para mim foi mesmo mergulhar no contexto cultural da cidade e do país onde estava. Ia ao máximo de concertos, óperas, peças de teatro e dança que conseguia.
Para além dos meus professores de Composição, costumo dizer, como muitos outros músicos portugueses, que o meu grande professor de música foi o maestro José Luís Borges Coelho, durante a minha passagem pelo Coral de Letras da Universidade do Porto.
· Que referências do passado e da atualidade assume na sua prática musical? ·
MRB: Para além da música dos meus professores, sem particular ordem, a música de Ludwig van Beethoven, Claude Debussy, Maurice Ravel, Tōru Takemitsu, György Ligeti, Luciano Berio, Frank Zappa, Pink Floyd, Yes, The Beatles, George Crumb, Witold Lutosławski e Fernando Lopes-Graça. São maioritariamente referências do passado que influenciam mais o meu pensamento do que diretamente a minha música.
Sobre a atualidade, vou mantendo um olhar atento, mas distante, porque não me quero deixar influenciar demasiado pelo trabalho dos outros. Tento conhecer bem o trabalho dos compositores portugueses, para perceber tendências gerais e ocasionalmente roubo uma ou outra ideia que ouço num concerto, mas não mais do que isso.
· No seu entender, o que pode exprimir e/ ou significar um discurso musical? ·
MRB: Apesar de ter um percurso académico razoavelmente longo, não me considero académico nem filósofo, portanto o meu pensamento sobre estas questões tende a ser pouco rigoroso e acima de tudo intuitivo.
John Cage refere numa entrevista que, quando ouve «aquilo a que chamamos música», tem a sensação de que «alguém está a falar». A falar de sentimentos, ideias e relações. Em contrapartida, quando Cage ouve, por exemplo, o som do trânsito, ninguém está a falar. O som está a «atuar» e Cage diz estar «completamente satisfeito com isso», o som não precisa de falar. Eu gosto que o som faça as duas coisas, dependendo do modo de escuta a que me convida, ou que eu escolho de livre vontade ativar. Acho que esta ideia pode até levar-nos um pouco além da tradicional definição de música como «som organizado» proposta por Edgar Varèse, que para mim nunca foi suficiente para descrever a experiência musical, e ajudar-nos a marcar um pouco mais a linha ténue que distingue a música das outras formas de som organizado, mais ou menos artísticas, desde sonoplastia, a instalações e esculturas sonoras, a foley e efeitos sonoros em teatro e cinema. Acho, portanto, que a música está muito mais dependente de uma ideia de discurso, de falar através do som, do que as restantes artes sónicas.
Se considerarmos a composição como a arte de organizar ideias no tempo ou elementos num espaço, a composição musical está necessariamente relacionada com um tipo específico de organização de ideias sónicas, sendo a capacidade de criar e manter um discurso musical uma questão de técnica composicional, mais concretamente do domínio do conceito de forma. Não necessariamente de uma ou outra formas específicas, mas dos princípios que estão subjacentes à própria ideia de forma, que permitem a um compositor guiar o ouvinte através do pequeno mundo de ideias que fazem uma peça e, até certo ponto, manipular a sua atenção e expectativas. É perfeitamente possível ter ideias sónicas com algum interesse inerente e compor uma peça ineficaz por falta de domínio da forma, tal como é possível compor obras primas com qualquer tipo de material, por mais pobre que seja. Beethoven é um ótimo exemplo disso. Como o que lhe importava era a forma, ou seja, aquilo que queria dizer com o material, o discurso musical, era importante para ele que o material fosse simples o suficiente para poder dizer o que quer que fosse com ele.
Por outro lado, retomando a analogia de «alguém a falar», sendo o discurso musical uma questão de técnica, é perfeitamente possível falar muito e muito bem, sem dizer absolutamente nada. Ter uma boa capacidade discursiva nada diz sobre a capacidade de dizer coisas interessantes. É perfeitamente possível ser-se um compositor competente e não ter nada para dizer: ser um verdadeiro sofista musical. Foi a questão com que me deparei quando me apercebi que tinha técnica suficiente para ter um discurso musical: e agora o que é que eu tenho para dizer?
· Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho? ·
MRB: Claro que sim: a poesia de Fernando Pessoa, principalmente Álvaro de Campos, Eugénio de Andrade, que é o meu poeta preferido, e António Nobre. Identifico-me particularmente com António Nobre pela sua relação com o mar. Somos ambos portuenses que cresceram em Leça da Palmeira. O mar de António Nobre é o meu mar, com as mesmas praias e os mesmos rochedos, cujos recantos sei de cor desde criança. O cinema de David Lynch, pelo ambiente e escolhas musicais e sonoras, e Stanley Kubrick, pela perfeição formal e composição fotográfica, mas também pelo humor negro. As coreografias de Pina Bausch e Sidi Larbi Cherkaoui, cujo domínio da forma e da complexidade lhes permite chegar a momentos de impacto absolutamente visceral, sempre com uma musicalidade invejável, e Peeping Tom, cujas peças me causam particular inveja, pela capacidade de integração interdisciplinar e pelo ambiente criado. Hoje em dia, mais depressa recorro a este tipo de referências para procurar ideias e inspiração do que a referências musicais.
· No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da atualidade? ·
MRB: Sinto particular afinidade com os impressionistas e, de um modo geral, com aquele romantismo tardio que já se misturava com o impressionismo e o modernismo. Acho que aquele virar do século XIX para o século XX era um período um tanto simétrico do que vivemos agora. Ao mesmo tempo que havia compositores a abandonar por completo a tradição tonal, havia outros igualmente brilhantes que tentavam conciliar a sua formação romântica com as novas sonoridades da época. Estou a pensar em Leoš Janáček, Charles Ives, Alexander Scriabin, Richard Strauss ou Gustav Mahler, por exemplo. Na segunda metade do século XX, a música ocidental explodiu em tantas direções diferentes, deixando à nossa disposição uma infinidade de estéticas e recursos, ao mesmo tempo que o sistema tonal continua inevitavelmente por aí, já para não falar de influências de outras tradições musicais, que é praticamente impossível a estética de um compositor do século XXI não incluir aspetos das várias correntes do passado distante e do passado recente. Eu faço claramente parte de uma corrente que procura conscientemente essa síntese, essa reconciliação, se quisermos. É possível que isto não seja mais do que uma maneira complicada de dizer que já não há razões para ter medo de consonâncias, nem de ser doce, ainda que eu tenha particular aversão a demasiado açúcar. Tirando isso, tenho sempre muita dificuldade em classificar a minha música, para além do óbvio, que se trata de música portuguesa do século XXI.
· O que entende por «vanguarda» e o que, na sua opinião, atualmente pode ser considerado como vanguardista? ·
MRB: Considero que há várias vanguardas. As correntes da segunda metade do século XX deixaram cada uma a sua escola e atualmente há vanguardas do espectralismo, do microtonalismo, do minimalismo, da música concreta instrumental, da nova complexidade, da música improvisada mais composta ou menos composta, etc.. O grau de compromisso de muitos compositores (e de novos compositores) com estas estéticas é tal, que a meu ver não podem deixar de ser consideradas vanguardas. Há necessariamente uma vanguarda tecnológica, uma vez que a tecnologia continua a progredir e há sempre quem se dedique à exploração dos novos recursos tecnológicos para fazer música. Há duas vanguardas que eu considero mais características do nosso tempo: uma que vê todas as estéticas, incluindo músicas tradicionais de diversas culturas ou música pop/ rock e de dança, como uma palete de cores que pode ser combinada de infinitas maneiras; e outra que procura cruzamentos disciplinares com as diversas artes e se preocupa com a forma como a música é apresentada ao público, envolvendo, por exemplo, elementos cénicos e performativos ou multimédia, que não têm necessariamente de ser realizados pelo compositor – podem ser feitos em colaboração – mas certamente informam a composição.
· Caracterize a sua linguagem musical sob a perspetiva das técnicas/ estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o início até agora. ·
MRB: Ao longo do meu percurso experimentei muitas técnicas e muitas maneiras de escrever diferentes, desde o serialismo, ao microtonalismo, ao espectralismo, à composição algorítmica, em diversas combinações. Aprendi o que cada uma destas estéticas tinha para me oferecer e o resto, por assim dizer, deitei fora. Continuo a gostar muito de ouvir a música, mas seguir este tipo de caminhos não encaixa com a minha personalidade. Creio que o mais importante para a minha linguagem foram as técnicas modais e harmónicas de Olivier Messiaen, por serem simples e fáceis de extrapolar para as minhas próprias técnicas. Também aprendi muito com Helmut Lachenmann, ainda que nunca tenha desejado compor como ele. Atualmente componho um atonalismo livre e intuitivo, por norma fazendo muito uso de técnicas estendidas (mas nem sempre), com ou sem eletrónica. Não tenho grande interesse em concertos acusmáticos e, por norma, só componho música exclusivamente eletrónica quando é acompanhada de cena ou dança, quase sempre em formato multicanal. Considero-me, acima de tudo, um formalista e um harmonista. Mesmo no atonalismo livre, há notas certas e notas erradas.
· Há algum género/ estilo musical pelo qual demonstre preferência? ·
MRB: A ouvir, rock e música sinfónica. A compor, música de câmara.
· No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro forma ou vice-versa? Como decorre este processo? ·
MRB: Por norma, tento sempre que os dois surjam em simultâneo e estejam dependentes um do outro. Como componho sempre segundo um processo a que se pode chamar de multivariação – sou muito Beethoveniano nesse aspeto – é muito importante para mim ter uma ideia-embrião. Um gesto, um motivo, uma frase, uma melodia, um ambiente. Por outro lado, é igualmente importante que essa ideia aponte para uma forma desde o início, que tenha essa informação já impressa no seu ADN. Isto, para mim, é a definição de uma boa ideia: não só tem uma identidade clara, como uma intenção formal. Quero deixar claro que isto não é uma questão calculável ou racional, é mesmo uma intuição. Essa forma pode estar mais ou menos definida à partida, sendo muito raro eu cumprir um plano formal à risca. A música tem sempre vontade própria, mas é muito comum as ideias-chave daquele plano inicial manifestarem-se de uma maneira ou outra ao longo do processo.
· Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os impulsos criativos ou a inspiração? ·
MRB: Por norma, o impulso vem primeiro e a inspiração flui a partir daí até se esgotar. Quando esta se esgota entra o raciocínio – a técnica. Convém que a técnica também se esgote, se não a música fica aborrecida, sem espontaneidade, sem surpresas. A partir daí, ou há um novo impulso, ou a peça vai um tempo «para a gaveta», como costumava dizer o meu professor Fernando Valente, até que eu perceba para onde o material quer ir. Claro que, se há um prazo a cumprir, impera a técnica, mas idealmente há uma tensão saudável e um movimento de vaivém entre as duas. Digo tensão, porque às vezes a inspiração quer ir demasiado rápido. Disse-me uma vez Helmut Lachenmann que não convém «compor a quente». Eu não vou tão longe, mas convém que a técnica aplique o travão quando a música precisa de ficar mais tempo num determinado lugar e a inspiração quer avançar logo.
· Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música? ·
MRB: Para além da atividade de compositor, atualmente também faço trabalho de gravação, mistura, produção discográfica e desenho de som, portanto boa parte do meu trabalho é necessariamente tecnológica. Há também uma componente de investigação e desenvolvimento que tenho feito, em parte em colaboração com a Digitópia, com grande foco na relação entre gesto físico e modulação tímbrica, utilizando técnicas derivadas da síntese por modelação física na criação e desenho de som de instrumentos musicais digitais. Como compositor, tenho ideias que são puramente instrumentais, outras que são puramente eletrónicas e, ultimamente com maior frequência, ideias instrumentais que só são plenamente realizáveis com recurso a meios eletrónicos – por exemplo, gestos e timbres instrumentais (por norma previamente compostos e gravados) que precisam de ser ampliados, modulados ou resintetizados – ou texturas claramente eletrónicas, mas feitas a partir de samples instrumentais. No meu caso, não é muito comum a escrita instrumental e eletrónica se imitarem mutuamente; pelo contrário, gosto do contraste entre os dois mundos e da sua coabitação. Se a ideia for instrumental, mas precisar de um timbre eletrónico, uso um sintetizador e trato-o como qualquer outro instrumento.
· Defina a relação entre a música e a ciência e como esta segunda eventualmente se manifesta na sua criação. ·
MRB: Não sei quanto a definir, mas o som tem uma componente física, cujo conhecimento é certamente muito útil para a criação musical. Como a harmonia é um elemento particularmente importante para mim, nunca tendo enveredado seriamente pelo espectralismo, estou sempre muito atento ao timbre e registo de cada nota, uma vez que as interações entre as séries dos harmónicos das várias notas que perfazem um acorde ou textura são determinantes para a sensação de maior consonância ou dissonância, de maior ou menor tensão. Por outras palavras, o mesmo conjunto de notas surte efeitos completamente diferentes, dependendo da organização vertical e da distância entre as notas, bem como das escolhas tímbricas de arranjo ou de técnicas estendidas.
· Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso? ·
MRB: Falando exclusivamente de composição musical, o primeiro ponto de viragem foi a peça “Trio” (2016), para piano, violino e saxofone barítono. Foi a peça em que senti que comecei a descobrir a minha linguagem. Outro marco que considero importante foi a peça “Três poemas de Eugénio de Andrade” (2020), para coro e piano, composta para o mpmp. Senti que essa peça foi outro passo para me conhecer melhor a mim próprio e à minha linguagem. Em relação ao tipo de projetos que quero realizar, diria que o principal ponto de viragem foi o “Vórtice (para o fim de um tempo)” (2022), que apesar de não ter sido o meu primeiro projeto de criação ou composição colaborativa, foi o mais complexo e em maior escala. É também o primeiro projeto que faço, que continuou (e continua) em evolução bem depois da estreia. Ainda recentemente recompus uma grande parte da eletrónica, porque a que tinha realizado originalmente não satisfazia as exigências e intenção da música.
· Em que medida a composição e a performance constituem para si atividades complementares? ·
MRB: Não só são complementares como é frequente os intérpretes fazerem escolhas que fogem um pouco do que está escrito porque têm uma ideia mais interessante do que a que eu tinha em mente. Nesses casos aceito sempre a sugestão do intérprete como válida. Às vezes a ideia adequa-se tão melhor à música do que a minha, que passa a fazer parte da partitura. Outras vezes, aceito simplesmente como uma interpretação perfeitamente válida do que está escrito. Cada vez mais, deixo ambiguidades propositadas na partitura, ou dou pouca informação, para dar aso à imaginação do intérprete e o obrigar a fazer escolhas. Se a intenção musical for clara, o resultado é quase sempre mais interessante do que se eu tivesse escrito mais informação. Quer a partitura, quer a linguagem verbal são instrumentos toscos, sempre insuficientes para transmitir a totalidade de uma ideia musical. Eu organizo as ideias, dou sugestões e tento que a escrita musical exprima acima de tudo uma intenção, mas quem faz a música é quem a toca e essa pessoa está lá para fazer escolhas tão importantes como as minhas. Nem eu conheço sempre, na sua totalidade, a intenção musical que está por detrás da notação que escrevo. Haverá sempre aspetos da minha própria música que permanecerão para mim um enigma e eu preciso impreterivelmente de alguém que veja nela coisas que eu não vejo.
A partir do momento em que a partitura chega às mãos do intérprete, a música já não é minha, é dele ou dela. E é bom que seja, a música fica a ganhar.
· Conforme a sua experiência, quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo? ·
MRB: Eu só posso falar dos países por onde passei: Chéquia, Holanda e Alemanha. Em comparação com estes países, Portugal tem apenas algumas (poucas) grandes instituições com grupos residentes e os poucos que há raramente fazem turnê. Fora das grandes cidades, auditórios municipais multiusos crescem como cogumelos, mas são apenas casas vazias cuja programação é guiada por politiquices locais e cujos orçamentos são gastos em artistas demasiado caros. No papel, fica muito bonito trazer os grandes nomes nacionais deste ou daquele género musical para tocar numa pequena cidade ou vila no interior – vejam a bonomia do poder político, que traz gente famosa à nossa terra! Na realidade, isto não só é altamente condescendente para com a população, como impede a criação de um tecido cultural sustentável e a fixação de público. O objetivo é somente tirar ganhos eleitorais imediatos, impressionando uma população faminta de uma vida cultural saudável. Isto faz com que a quase totalidade dos músicos portugueses trabalhem em regime freelance e seja obrigada a dar aulas para se sustentar, mesmo que essa não seja a sua vocação. Demasiados músicos são obrigados a travar o seu desenvolvimento para fazer um mestrado em ensino (que bem podia ser uma pós-graduação) e obter a profissionalização. Uma grande parte acaba por deixar por completo de trabalhar como músicos e fica só a dar aulas, sendo pouquíssimos os que vão conseguindo fazer uma carreira baseada em concertos. É uma injustiça muito grande para com os músicos portugueses – que neste momento são de um nível extraordinário – e para com o público.
Vou dar só o exemplo da Alemanha, onde mesmo as cidades pequenas mais industriais têm o seu teatro com grupos residentes (por exemplo orquestra, companhia de ópera, companhia de dança ou companhia de teatro) e os artistas recebem um salário fixo. Como os artistas vão sendo os mesmos ao longo da temporada (ou mesmo das temporadas) e as grandes produções têm todas várias repetições – em Portugal, mesmo os maiores sucessos de bilheteira são feitos incompreensivelmente só uma vez – há uma relação de convivência que é estabelecida com o público, que faz com que as pessoas se sintam valorizadas, voltem e chamem mais pessoas. Os artistas passam a ser pequenas celebridades locais cujas caras e nomes estão visíveis em cartazes espalhados um pouco por toda a cidade. Há pessoas que ficam particularmente fãs deste ou de outro artista e é feita uma grande festa quando estes se despedem para outros lugares. Os espetáculos e os artistas nem sempre são brilhantes (às vezes são mesmo sofríveis) e é normal haver pouco público para um espetáculo que já foi repetido quatro ou sete vezes, mas o mais importante é que há uma oferta consistente e sustentada, que respeita não só o trabalho de artistas, diretores e programadores, mas também o seu papel na comunidade.
· O que, em seu entender, distingue a música portuguesa no panorama internacional? ·
MRB: Eu sinto que há definitivamente uma sonoridade portuguesa. Não quero dizer que todos os compositores portugueses têm essa sonoridade, nem sei dizer objetivamente quais os elementos que a formam, mas a verdade é que sinto que há qualquer coisa que os compositores que estão no ativo em Portugal têm em comum que é diferente dos compositores portugueses que vivem no estrangeiro e já não vivem em Portugal há muito tempo, por exemplo. Há certos contornos melódicos que eu acho mesmo que estão relacionados com a nossa fonética e há, claro, o fado, a saudade e a depressão crónica coletiva muito característica do nosso povo, que certamente contribuem para a sonoridade portuguesa. Depois há compositores que têm mais a herança de Fernando Lopes-Graça e outros a de Jorge Peixinho e há claramente compositores que são mais influenciados pela música inglesa ou pela música francesa (a eterna situação dos artistas portugueses).
Outro aspeto que diferencia e molda atualmente a música portuguesa é o panorama que descrevi na resposta anterior. Há poucas orquestras, poucas companhias de ópera, já para não falar de dança, portanto é natural que não haja compositores que trabalhem sobretudo estes géneros como há noutros países. Mas como quem não tem cão, caça com gato, há em Portugal uma maior proliferação de projetos de grande escala que fazem uso de formações mais pequenas, muitas vezes camerísticas, acompanhadas de eletrónica e cujo processo envolve algum tipo de cruzamento disciplinar. Este facto vai para além da criação de novas obras: já me encomendaram várias reduções de obras orquestrais e até óperas inteiras para ensembles de câmara ou pequenas orquestras exatamente por este motivo. Talvez seja o único ponto positivo da precariedade que se vive no nosso meio em Portugal: somos obrigados a fazer muito com muito pouco e a encontrar soluções artísticas (às vezes verdadeiramente vanguardistas) para uma realidade que só nós vivemos.
· Quais são os seus projetos decorrentes e futuros? ·
MRB: Atualmente estou a terminar uma peça para piano que vou oferecer a um amigo e a preparar uma nova versão da instalação sonora que faz parte do Vórtice, que será apresentada no final deste ano, no lançamento do disco. Estou também a gravar, produzir e misturar um álbum de canções rock da autoria de Bernardo Pinhal, que está quase concluído e cujo lançamento também está previsto para este ano. De resto, tenho várias propostas de projetos para os próximos dois anos, mas ainda estão numa fase inicial e é demasiado cedo para dizer.
· Poderia destacar um dos seus projetos mais recentes, apresentar o contexto da sua criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas? ·
MRB: Deixo aqui a sinopse de “Vórtice (para o fim de um tempo)”, criado com o Coletivo Caleidoscópio, do qual faço parte: «Criado durante a pandemia, este projeto multidisciplinar conjuga música (composição, eletrónica e performance), luz e encenação, evocando aqueloutra obra musical que se confronta com os mesmos temas: “Quarteto para o fim do tempo” de Olivier Messiaen, composta durante a II Guerra Mundial. Do Quarteto de Messiaen, retira também a instrumentação-base, piano, violino, violoncelo e clarinete, e uma pergunta primeva: e se nos esquecêssemos de tocar instrumentos? E se a música deixasse de ter ritmo? E se desaparecesse? Abordando conceitos como a finitude, a revolta e a tecnologia, o concerto toca em aspetos negros da atualidade, que a invasão russa da Ucrânia, a aceleração da inteligência artificial e o agravamento da crise climática só vieram agudizar.»
O espetáculo começa com uma instalação sonora eletrónica, programada em SuperCollider, que idealmente já é possível ouvir no foyer antes de entrar na sala. A música foi composta em colaboração por mim e pelos compositores Catarina Sá Ribeiro e Daniel Moreira, num processo que foi informado por escolhas de encenação e desenho de luz. Quase todas as peças incluem ou secções compostas em conjunto (às vezes ao telemóvel num café), ou material roubado sem pudor aos outros compositores (que obviamente só foram informados do furto quando já era tarde demais), ou alterações estruturais vindas de opiniões particularmente veementes de outro membro do coletivo. Ainda assim, a identidade de cada compositor vem naturalmente ao de cima – algo que foi confirmado por vários membros do público.
Do ponto de vista técnico, é de destacar o uso de algumas técnicas de eletrónica em tempo real, como a delays e modulação, bem como de diversos tipos de síntese analógica e digital (aditiva, subtrativa, FM e granular), gravação e manipulação de cerca de três centenas de samples, recurso a sistemas caóticos de controlo e difusão multicanal em formato 5.1.
Miguel Resende Bastos
agosto de 2025
© MIC.PT
Três poemas de Eugénio de Andrade (2020) Gravação da estreia, na interpretação do Ensemble MPMP com Duarte Pereira Martins no piano. 30 de Outubro de 2020, Igreja de São Roque, Lisboa |
Dona Fea, Velha e Sandia (2016) Agostinho Magalhães O Galego (declamação), Cantores do Coral de Letras da Universidade do Porto, Bernardo Pinhal (maestro). |
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VÓRTICE (para o fim de um tempo) (2022) Conversa com os Compositores Daniel Moreira, Miguel Resende Bastos e Catarina Sá Ribeiro no Ermo do Caos, sobre o processo criativo do projeto VÓRTICE (para o fim de um tempo) com o Coletivo Caleidoscópio. |
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Trio (2016)
Gravação da estreia, na interpretação de Maria Inês Ferreira (violino), Nuno Silva (saxofone barítono) e Bernardo Pinhal (piano). 20 de julho de 2017, Porto.
NOX (2017)
Gravação da estreia, na interpretação do Codarts Opus 111 Ensemble, sob a direção de Hans Leenders. 26 de janeiro de 2018, Roterdão, Países Baixos.
Bear in Mind Everything May Change (2018)
Gravação da estreia, na interpretação de Vincent de Ridder (órgão). Março de 2018, Roterdão, Países Baixos.
Fantasia (2019)
Gravação da estreia, na interpretação de Telma Mota (oboé), Francisca Tomás (clarinete), Gonçalo Melo (violino), Rita Carreiras (viola d’arco) e Daniel Aires (contrabaixo). 14 de setembro de 2019, Mondim de Basto.