2021.02.28
CD “Estudos Literários – Retratos” · João Madureira
Ana Telles (piano) · ed. MPMP (melographia portugueza 25)
Diálogos e evocações: o universo pianístico de João Madureira interpretado por Ana Telles
PEDRO M. SANTOS
Pedro M. Santos
Capa do CD · “Estudos Literários – Retratos” (ed. MPMP)

“Estudos Literários – Retratos” é o 25.º disco da chancela Melographia Portugueza. Esta chancela discográfica foi criada em 2012 pela associação Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa e em menos de 10 anos conta já com um assinalável conjunto de edições dedicadas à música de compositores portugueses, desde o período barroco até à contemporaneidade. Igualmente digno de realce é o facto de uma grande parte das edições contemplar a música de compositores portugueses em atividade, desempenhando assim uma importante função de divulgação da música erudita portuguesa contemporânea. O disco “Estudos Literários – Retratos”, editado em dezembro de 2020, é mais um importante contributo nesse sentido, dando a conhecer parte significativa da obra pianística de João Madureira interpretada, neste caso, pela pianista Ana Telles.
De entre as obras incluídas neste disco destaca-se precisamente a que lhe dá o título – “Estudos Literários – Retratos” – que resulta de um desafio lançado por Ana Telles ao compositor, no ano de 2011, aquando do centenário da composição dos “Études-Tableaux Op. 33” de Sergei Rachmaninov. Para além de homenagear o compositor e virtuoso pianista russo, Ana Telles pretendia que a obra se enquadrasse no género Estudo, proporcionando desafios interpretativos específicos que contribuíssem para o desenvolvimento da técnica pianística. A estes dois pressupostos João Madureira acrescentou uma terceira intenção, de natureza extramusical e de certo modo autobiográfica, a de dedicar cada estudo a uma pessoa importante no seu percurso artístico ou pessoal. As relações pessoais são evidentes não só no título das peças, mas também na representação musical de características particulares de cada um dos dedicatários, como se de um retrato se tratasse. O plano musical definido pelo compositor aproxima-se em certa medida dos processos de criação literária, nomeadamente da poesia, pela sua capacidade de retratar o mundo exterior. É precisamente neste ponto que compreendemos o título da obra na sua plenitude. Esta multiplicidade de referências e versatilidade criativa é natural em Madureira que afirma que o impulso composicional reside na relação que estabelece com o mundo que o rodeia.
A conjugação destes propósitos transparece em cada um dos nove estudos. Por exemplo, o estudo “Carlos”, o segundo do ciclo, consiste numa “homenagem ao traço certeiro de Carlos Martins Pereira”. A relação com o pintor parece ser estabelecida através de uma analogia entre as linhas melódicas da escrita contrapontística e os traços de uma composição pictórica. São duas as linhas melódicas que iniciam um discurso musical semelhante a uma invenção (na tradição de J. S. Bach ou de B. Bartók) que se desenvolvem nos registos agudo e médio-grave do instrumento, espaçadas no teclado. A partir deste bicinium deriva outro par de linhas que preenchem o espaço que havia sido propositadamente deixado em branco na textura musical e inabitado no teclado. Ao pianista exige-se que projete, no espaço e no tempo, esta pequena tela sonora, algo que Ana Telles realiza de forma exemplar através de uma interpretação equilibrada e eloquente.
Um outro exemplo é o estudo “António”, dedicado a António Pinho Vargas e “à forma como sabe juntar mundos diversos na sua música”, algo que é igualmente caro a João Madureira. De estrutura rapsódica, insinuando uma improvisação, este estudo apresenta ideias musicais distintas em cada uma das suas quatro secções. Na primeira secção uma serena melodia desenvolve-se sobre um baixo contínuo parecendo evocar a música de J. S. Bach. Já a segunda secção, que funciona como transição, apresenta harpejos de quintas perfeitas com recurso ao pedal de ressonância, proporcionando uma sonoridade ampla e envolvente. A terceira secção baseia-se numa figura polirrítmica em perpetuum mobile que se projeta gradualmente ao longo do teclado e que culmina na quarta secção, a conclusão do estudo, na qual é produzida uma sonoridade ainda mais imponente, através de uma textura próxima de Rachmaninov, baseada em harpejos rápidos no registo grave que sustentam um motivo melódico no registo agudo. Neste estudo Ana Telles alia ao seu apurado sentido formal um claro entendimento das peculiaridades sonoras de cada secção e uma resolução natural das dificuldades técnicas propostas. A sua interpretação, para além de muito expressiva, define um claro fio condutor num discurso musical propositadamente heterogéneo e expansivo.
Em cada um dos restantes estudos João Madureira cria igualmente universos sonoros particulares, de acordo com o desafio técnico e expressivo proposto e o retrato pretendido: a alusão à harmonia de Olivier Messiaen em “Ana” (em homenagem a Ana Telles), uma reflexão sobre a cor e a densidade harmónica em “Eurico” (dedicado a Eurico Carrapatoso), a obsessão pela velocidade em “Ivan” (dedicado a Ivan Fedele), inquietas figurações guitarrísticas em A. H. (dedicado a Ana Hatherly), a ressonância em “Morton” (dedicado a Morton Feldman), o irrequieto espírito de uma toccata em “Marta” (dedicado a Marta Wengorovius) e um discurso caleidoscópico em “Cristiana” (dedicado a Cristiana Vasconcelos Rodrigues).
A obra “Coroa”, originalmente composta para piano e recitante, é aqui interpretada apenas por Ana Telles, recitando ela própria o fragmento de um texto de Maria Gabriela Llansol “sobre o qual se circunscreve esta peça”, tal como explica o compositor no livrete do disco. Também aqui João Madureira propõe um diálogo entre a música e a literatura, aproximando-se neste caso do melodrama. O discurso musical fragmentado e onírico proporciona um adequado enquadramento ao texto de Llansol, ele próprio aparentemente descontínuo e não linear. As ideias musicais sucedem-se como fulgurações mais ou menos intensas que calmamente se projetam no tempo e no espaço sonoro até à entrada da voz, recitada praticamente a solo. Ao piano a interpretação de Ana Telles demonstra grande sensibilidade poética, saboreando o discurso musical como se de um poema se tratasse, tal é audível na delicadeza do som, na gestão do tempo de vida dos gestos musicais e das suas ressonâncias, assim como na intencionalidade expressiva. A recitação é clara e cuidada na dicção e na articulação das frases, embora contida na expressão.
Para além destas duas obras, de maior fôlego criativo e composicional, o disco oferece a oportunidade de escuta de algumas peças mais breves, também elas dedicadas a pessoas próximas de João Madureira – “Ana. Parabéns”, “JS” e “Para Inês”. Este disco é assim uma janela para o imaginário de João Madureira, dando a conhecer uma seleção coerente de obras para piano do compositor, compostas entre 2009 e 2014, através de um conjunto de excelentes interpretações de Ana Telles, algo a que a pianista nos tem habituado ao longo da sua carreira concertística e discográfica, nomeadamente na interpretação de repertório moderno e contemporâneo.
Concluo referindo dois aspetos menos positivos desta edição discográfica. O primeiro, quase irrelevante, é um pequeno erro editorial: as faixas 6 e 7 do disco não correspondem à ordem referida no livrete (estão trocadas). O outro, com influência direta no conteúdo musical, é o desequilíbrio da afinação do piano no registo agudo, particularmente audível em alguns dos “Estudos literários – Retratos”. Tal não diminui o valor do repertório nem a qualidade da interpretação, estes sobrepõem-se indubitavelmente a estas vicissitudes.

O Autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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