Por entre monumentos ancestrais da cidade de Tomar passa o rio Zêzere, lugares emblemáticos que envolvem de vida a sua história e as suas populações ao longo dos séculos. O filósofo escreveu que ninguém se banhava duas vezes nas águas do mesmo rio, mas o rio vive e corrre, imutável, ao lado desses lugares.
Dos monges, dos templários, do clero , da nobreza e do povo, de tudo à volta da região de Tomar o rio guardou memórias ao longo dos séculos, as águas o tempo as levou, mas o rio e as suas correntes permaneceram no seu ritmo inexorável. Época de cruzados em viagens de guerra sagrada, épocas de pandemias que assolavam a terra (até hoje...), o rio de tempos imemoriais foi testemunha e protagonista da impassível passagem do tempo. A água - a água! sempre a água! e a sua memória na obra do compositor - irriga estes minutos de som e de imagem, aos sons de uma passacaglia que nos envolve em cantos que se ouviriam nestes espaços de Tomar medieval. Homofonias de natureza religiosa em longas rezas e salmodias do tempo, o rio o testemunhou em épocas efervescentes de vida, de guerra, de religião e de calamidades. É este o simbolismo evocativo do subtítulo memórias do Zêzere.
Esta espécie de coral para orquestra de cordas a 18 vozes (18 partes...) que se constrói por encadeamentos e sobreposições de acordes deslizantes, é um retorno ao organum da Ars Antiqua, aos motetes de Léonin ou Pérotin, às estruturas elementares de intervalos de um Hucbaldo ou de um Guido D’Arezzo (homofonias de tradição popular, em Portugal também, e sem falar da teoria grega). A harmonia primitiva estruturada sobre os primeiros harmónicos da ressonância natural (da série dos harmónicos, 8, 5 e 4) em uso na época, são nesta obra dispostos e sobrepostos em tetracordes formando agregados de dois intervalos de quarta perfeita (terceira inversão dos acordes de 7.ª futuros) que nos transportam para cidade dos templários. O título principal,
Passacaglia, encerra o conceito de repetição, neste caso, uma mesma sequência a 4 vozes (violinos, violas, violoncelos e contrabaixos) formada por aqueles agregados de intervalos que viajam, como ecos, de naipe para naipe, de estante para estante. Assim, essa sonoridade aparece nos primeiros violinos e projecta-se nas violas, das violas projecta-se nos violoncelos, dos segundos violinos projecta-se nos contrabaixos, entre outras combinações e sequências que cria uma envolvência estática e ambulante de vários coros a 4 vozes. Das hierarquizações da harmonia e da melodia das históricas passacaglias de Bach ou de Webern o compositor escreve uma passacaglia no estilo da Ars Antiqua do séc. XII como espécie de passacaglia «avant la lettre»...
A conciliação entre a identidade individual e a identidade colectiva no caso de uma obra musical concebida para uma terra estranha sua anfitriã, foi sempre um imperativo do compositor. Ao buscar em terras desconhecidas elementos que se integrem na sua linguagem do homem contemporâneo o músico simulará, em música, ouvir o cantar e o tanger dos tempos medievais, que a tradição escrita ou oral a história conservou. Dos balbuciamentos de técnicas e formas de tempos ancestrais foram surgindo, entre intuições e práticas de compositores e de teorizadores, corpos de doutrina que foram condensando e alargaram o pensamento musical de séculos. Esta breve partitura é uma espécie de extensão, como o título invoca, de harmonia retro recuperada de arcaísmos agora revisitados à luz de um olhar moderno como uma homenagem ao lugar. Grandes compositores europeus do séc. XX o fizeram, recriando essas épocas em obras de grandes alianças entre o mundo antigo e o mundo novo.
PASSACAGLIA – memórias do Zêzere nasce do convite do maestro Brian Mackay para compor uma obra a estrear no Zêzere Arts Festival, no quadro do programa Artistas em Residência dedicado, este ano de 2023, ao compositor. A partitura deveria ser escrita para coro ou para orquestra de cordas, esta com de cerca de 30 músicos, e a sua duração deveria ser à volta dos seis (6) minutos, com a possibilidade de utilizar partes a solo. Cumpri as linhas-alicerce de representação instrumentalda obra, e pensei que honraria o Festival, o seu criado e mentor, assim como a terra que abraça o compositor durante uns dias, lançar um olhar para os tempos antigos da região, aos lugares e culturas que caracterizam a história da cidade, fontes de inspiração e de estruturação da partitura. Estes pressupostos aliados à circunstância de se tratar de uma orquestra formada predominantemente por jovens, foram factor determinante para a aplicação de técnicas convencionais servindo o hibridismo entre processos antigos interpolados por alguns momentos longe das vozes medievais de sabor contemporâneo.
Tudo o que fica dito nasce da postura do compositor perante contextos que determinam caminhos que ele cria, aceita e se impõe. Independentemente das transformações gramaticais e de linguagem operadas nos últimos dois séculos, esta obra para Tomar é um regresso e uma confirmação da existência de arquétipos no espírito do compositor: aliança dos opostos, convergência dos contrários, de tempos e de espaços sem fronteira, apenas a liberdade criadora.
Textos medievais, de cancioneiros a sermões de Eckhard, ou textos de S. Tomás de Aquino, ou textos de Fibonacci, todos da época, poderão ser ditos durante a audição da obra, pelos músicos da orquestra, ou por alguém, ressoando na envolvência de silêncios cores e vozes extasiantes de abóbadas de vitrais. Seria um retorno às paisagens medievais contidas na obra dos 750 anos do foral de Viana do Castelo (1258)
MÚSICAS DE VILLAIANA - coros oceânicos. Ponte entre duas regiões com histórias comuns em alguns dos arquétipos da história de Portugal.
Cândido Lima · março de 2023