Histórias, pandemias e flores
Na época, meses e ano, em que esta obra começou a ser escrita, Abril e Maio de 2020, tempo de dramas e de tragédias, marcou um novo estado de espírito para exprimir, por música, uma luz ao fundo do túnel. Outras obras a antecederam no mesmo período, ora em oposição, ora em sobreposição às emoções deste período inumano:
NEUMAS-pássaros invisíveis,
BAGATELA-1770-2020/Beethoven,
DIAFONIAS-vozes da terra, entre outras actividades de escrita e projectos de diversa natureza (Documentário para a televisão, acompanhamentos académicos, edições de obra, etc.). No meio destas criações que me ocuparam os dias, flores e gestos do quotidiano, trocados à distância, conversas telefónicas de amigos e de conselheiros foram sublimando as imagens com que os meios de comunicação nos iam inundando o olhar. Após uma atitude mental de disfarce reflectida nas obras compostas durante os meses de Março e de Abril, sobre o que ia acontecendo no mundo à volta, soou o Maio dos tambores.
O privilégio de um compositor poder dispor de um grupo de 7 percussionistas e de dezenas de instrumentos, com a relevância de esse grupo de instrumentistas ser constituído por jovens de várias escolas do país, criou um frenesim interior no compositor pela conjunção da vertente pedagogia e da vertente criação, que na vida concreta colidiram com a resistência individual de mestres e discípulos ancorados na comunidade escolar com tendência para a aversão colectiva à mudança. Com a vitória de compositores e de agentes culturais esta obra, criada neste “Ano Santo” da Pandemia para o projecto de concerto da Associação Arte no Tempo, é uma demonstração da extraordinária revolução operada nos últimos anos em Portugal no mundo da música.
Graças à proposta feita em 2019 pela Associação, pela voz de Diana Ferreira, sua criadora e Presidente, para escrever uma obra para septeto de percussão, cimenta-se essa reviravolta com uma dessas ideias improváveis de utopias e de realidades possíveis num país onde elas, apesar de tudo, foram acontecendo ao logo dos anos. Os destinatários desta partitura são 7 jovens estudantes de percussão vindos de vários pontos do país, de Escolas de Ensino Superior de Norte a Sul. Esta circunstância, as recomendações sobre as condições de preparação da obra, o escasso tempo de preparação conjunta devido à pulverização geográfica dos 7 músicos, a autonomia dos músicos, separados pelas grandes distâncias, tudo isto definiu estratégias de escolha de instrumentos, de gramáticas, de preparação, de composição, de princípios de coordenação quer na estruturação interna, quer na estruturação externa da obra, assim como a sua realização em concerto. Esta obra, partindo das partes para o todo na mente do compositor, é um desafio à teoria da Gestalt. O público vai ouvir o todo, mas a construção do todo partiu da construção das partes como blocos ou como cenários autónomos. A existência possível de uma partitura não é mais do que um exercício a posteriori para o próprio compositor. A compatibilidade estética e musical dessa fragmentação instrumental e orquestral obedece a princípios de orientação que não cabe aqui descrever e analisar. Longo caminho de pesquisa.
Uma das suas dimensões é, por imposição e natureza do projecto, a multi-espacialidade das suas fontes sonoras, a sua distribuição e projecção no espaço, sendo que o conjunto dos 7 percussionistas está estruturado em grupos autónomos, como peças de um puzzle. Interligadas por métrica, a 4 tempos no interior dos quais tudo se passa, e por tempo de metrónomo uniforme do princípio ao fim, estas peças permutam entre si protagonismos e cenários de fundo ora de partitura, ora de instrumentos, ora de lugares, na imobilidade de atmosferas e na mobilidade dialéctica de percursos. Estamos em presença de processos interactivos à distância que inundaram os três meses de confinamento mundial, do mês de Março ao mês de Maio. Estes 7 instrumentistas poderiam interligar-se à distância através de uma plataforma on line sem qualquer constrangimento, sem necessidade de maestro convencional ou outro processo de coordenação. Postulados presentes em várias obras do compositor.
HOQUETUS (“soluço”, perturbação fisiológica, não choro!), por um lado, técnica medieval de composição (interrupção abrupta de frase e de passagens de voz para voz), definiu processos internos rítmicos, entre outros; o subtítulo
tambores de Maio, por outro lado, apela ao simbolismo do “tempo que passa” e à expressão teatral, por música, de um coral de percussões a 21 vozes (cada um dos músicos dispõe de três ou mais instrumentos), para celebrar a vida após dois meses de solidão, de silêncio e de expectativa colectivos como ficou descrito acima. Inspirada por amigos, emoções e afectos presentes na vida do compositor durante estes três meses de deserto onde, em Maio, tambores anunciam, como metáfora musical, o aparecimento de um oásis, ao longe, paisagem real ou miragem, esta obra, homenagem à vida, convida o ouvinte a um contacto aberto, imediato,
cúmplice, à margem de considerações de ordem estética ou filosófica de gramáticas genuinamente contemporâneas.
Cândido Lima