Jovem compositor que em abril completou 30 anos, sendo uma das vozes mais ativas no contexto da música contemporânea em Portugal - Pedro Lima está Em Foco no MIC.PT em setembro.
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Entidade/Evento 9ºs Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea
Local Fundação Calouste Gulbenkian - Grande Auditório
Localidade Lisboa
País Portugal
Notas Sobre a Obra
Para a maioria de nós, Don Juan será apenas uma mera personagem, um mito, um nome mais que preenche as vastas galerias onde repousam as lendas dos homens, num sono tranquilo, quase eterno porque transcendental, até que o despudor de um artista - pois só ele é capaz de tamanho ultrage - tem a ousadia de as fazer despertar.
Existem outros, no entanto, que, resguardados pela couraça de uma ciência tautologizante, definem as imagens das nossas mitologias como sendo o reflexo divinizado de nós próprios, a expressão de um inconsciente descontrolado e descontrolador. De facto, Don Juan não está contido em nenhuma destas visões parciais. Ele é simultaneamente as duas... mas não só. Mais do que uma mera representação mitológica, mais do que uma visão reveladora dos abismos profundos onde jorram as nascentes dos nossos pensamentos, esta personagem (se é que de uma personagem se trata) é o verdadeiro retrato do Homem. Não daqueles para quem o dia a dia se transformou em obscenidade existencial, mas dos que trilham a senda da redescoberta de si próprios, dolorosamente, pois que o seu caminho é o do amor - o continuum espaço-tempo-afectivo da entrega, da libertação escravizadora que, através dos outros, nos conduz a nós...
O ponto de partida de Don't, Juan não é ele em si próprio, mas os mitos que em cada um de nós existem em relação a Don Juan. De facto, somos nós que estamos representados no palco, é sobre nós que o espectáculo fala - se alguém estiver a ser posto em causa, não duvide... trata-se de si! Porque o verdadeiro Don Juan nunca chega a aparecer - como o poderia se é só um mito, e mesmo porque, tal como você sabe muito bem, Don Juan não existe. Mas, no final, apercebemo-nos de que ele esteve presente a assistir ao espectáculo, tal como assistiu ao desenrolar da sua própria "existência". E talvez tenha estado presente bem junto de nós, de si... talvez na cadeira imediatamente ao lado ou, quem sabe, como parte integrante dessa consciência incomodativa que nos acusa insistentemente de mentirmos e fugirmos - ... estranha cobardia - a nós próprios.
Don't, Juan desenrola-se ao longo de onze pequenas cenas: onze "instantâneos". Sendo o "instante assumido plenamente, brevíssima iluminação do eu", ele é-o como único espaço habitável, numa "condenação do Homem ao efémero". Por esta razão, a obra necessita de espectadores-participantes para viver - no contexto de Don't Juan, em que as cenas jogam com a dualidade instante / eternidade, cada um de nós terá que ter uma parte activa na decifração dum enigma que, em última análise, só a nós diz respeito... o da existência.
Nesta obra, onde os intérpretes e os objectos cénicos são personagens, concretizam-se diversas conotações que, mesmo quando implícitas, devem ser tomadas em consideração. Elas são:
Don Juan / Sísifo - a condenação (?) ao infinitamente recomeçado; mas também onde, entre cada uma dessas maldições divinas, o Homem pode assumir a sua plena e mais natural dimensão: a da felicidade... (o que pensarão Sísifo, enquanto sobe de novo a montanha, e Don Juan, no alívio angustiado do entre-acto de duas paixões?).
Don Juan / Narciso - Imbuído por um "estranho" misticismo do Eu, "Don Juan é insaciável porque a sua trajectória o conduz ao oposto daquilo que procura..." - a si próprio.
Don Juan-Dona Ana / Dali-Gala - No fundo, Don Juan e Dona Ana são uma mesma e única personagem, tal como Romeu e Julieta são uma única e mesma pessoa. Neste contexto, o "espelho" de Dali é Gala e o reflexo de Gala é Dali. Este conceito de simbiose entre dois seres tem, necessariamente, duas dimensões diferentes e opostas (ou complementares?). Por um lado, o Amor conduz a uma união para-material em que duas pessoas são uma, em que Masculino e Feminino (Positivo e Negativo) - como tal, imperfeitos e "incompletos" - são transportados a um estado de totalidade primordial, porque não, "proto-histórica". Por outro, os sentimentos - e, neste caso, não só o amor como também a raiva, o ódio ou a bondade - são o caminho, a ponte de união entre o divino e o mortal, para um homo sapiens que esquece tantas vezes a sua origem deificadora.
Don't, Juan (Capdeville) / Don Juan (Mozart) - Talvez a única e mais importante relação conotativa entre as duas obras seja a proximidade conceptual que as correlaciona, visto que "a verdadeira natureza de Don Juan é a música". Don Juan é "um viajante no interior dos sons" - e de si próprio..
Perante uma obra como Don't, Juan, a primeira ideia que nos surge é a de uma estreita correlação temática ou/e musical com a quase homónima obra de Mozart, Don Juan. No entanto, a única citação (ou melhor, não-citação) não se chega a ouvir: trata-se da Cena 1003, ou Ária do Catálogo. Em Don't, Juan, os movimentos do bailarino estão construídos sobre aquela ária mas, na realidade, ele ouve-a por meio de auscultadores. O público apenas assiste ao movimento. Um outro tipo de citação, indirectamente relacionada com Mozart, diz respeito à utilização de um estilo de acompanhamento daquela época: o baixo de Alberti, só que tocando em "Temple Blocks", os quais apresentam um outra citação importante: a do recitativo de Don Juan, Sentir Odor di Femmina, na subida de Ana em Tu És Ana, Tu És Ana.
Os textos utilizados em Don't, Juan são de vários autores e foram escolhidos de acordo com necessidades estético-expressivas. Perante uma obra como Don't, Juan, não basta assistir, é imprescindível participar. É fundamental e urgente tomar uma "parte activa" num espectáculo que não vive por si, antes para nós e através de nós. Só assim poderemos alcançar o verdadeiro significado de um Don Juan, tal como nós, à procura de si próprio, do amor e do eterno.
José Manuel Andrade (segundo notas fornecidas por Constança Capdeville)