Musicalmente, e
durante o século XX, surgem uma pluralidade de correntes estéticas e musicais,
que desafiam qualquer investigador a realizar um estudo profundo das suas
origens. Em ruptura com o passado, conduzem a criação por novas vias de
desenvolvimento que se revelam, muitas vezes, inusitadas. Neste sentido,
constatamos, que, em Portugal, e ao longo do século precedente, a música se
desenvolve de forma diversa e significativa, sendo vários os autores que
utilizam as mais actualizadas técnicas de suporte à criação musical.
Pertinente, revela-se esta menção, constituindo este estudo uma breve reflexão
sobre a percepção do imaginário e do concreto na obra de um autor peculiar, o
compositor Filipe Pires. O seu
estudo, bem como a análise das técnicas de concepção e criação musicais,
leva-nos a vastos domínios da criação e da interpretação. Desenvolvendo-se em
vastos campos do conhecimento, tanto técnico como científico e artístico, a sua
música permite-nos a abordagem e o estudo de matérias e materiais diversos,
elementos que se revelam úteis na concepção de imaginários sonoros e de
universos empíricos concretizados simultaneamente na obra, uma obra que se
quer, e anuncia, de autor.
Embora a sua produção seja diversa e significativa,
abordaremos somente algumas das suas obras, e consequentemente, apenas algumas
correntes técnicas e estéticas. Assim, e neste sentido, cumpre-nos afirmar que
o acaso e a indeterminação surge em algumas delas em dicotomia com formas de
pensar e estruturar o discurso mais estruturalistas e rígidas. Este facto, leva
a uma duplicidade estrutural, técnica e estética, pois as suas obras, por um
lado, possuem o estruturalismo e o determinismo inerentes ao uso da série como
forma de organização discursiva, por outro, incluem na sua determinação o uso
de processos indeterminados na
definição e estruturação de alguns parâmetros e materiais da obra, designadamente
a sua forma. A perplexidade dita-nos algumas questões, nomeadamente aquela que
demanda o que terá levado o autor a opor dois universos de natureza díspar? Ou
qual o ideário e imaginário subjacente a esta atitude?
Dando origem a formas novas, formas que revelam uma
natureza aberta e móvel, o acaso e a indeterminação são, ainda empregues,
quando o compositor permite ao intérprete de participar na criação material da
obra, quando apela ao computador para a exploração sistemática de um programa
preconcebido, quando combina aleatoriamente vários elementos na criação e
elaboração da obra, ou quando concebe massas e nuvens de sons através de um
grande número de elementos sonoros que tendem estatisticamente para um
equilíbrio, um equilíbrio conseguido, através, e segundo, os princípios da
teoria dos grandes números[1].
Em Filipe Pires encontramos, assim, algumas obras
ditas abertas, obras cuja mobilidade se encontra, tanto na concepção dos seus
materiais como na definição da sua forma. Para Jean-Yves Bosseur “a questão da
forma aberta […] abrange diversificados campos de aplicação, campos estes que,
por vezes, se revelam contraditórios. Assim, se por um lado as noções de
mobilidade, de abertura, de indeterminação, de aleatório ou de acaso não
deverão ser confundidas, por outro, as obras que as aplicam, clarificam,
geralmente, preocupações estéticas diferentes e autónomas” [2]. No início do seu livro L’oeuvre
Ouverte, Umberto Eco afirma
que um grande número de obras de música instrumental “se caracterizam pela
extraordinária liberdade cedida ao intérprete no momento da sua execução. Este
não possui, unicamente, como na música tradicional, a faculdade de interpretar
segundo a sua própria sensibilidade as indicações do compositor, mas pode agir
sobre a estrutura da obra, determinando não só as suas durações, como a
sucessão dos seus diferentes sons num acto de pura improvisação criativa. [...]
Assim, não nos encontramos perante obras que exigem ser repensadas e
revisitadas numa determinada direcção estrutural, mas sim, diante de obras
“abertas” que o intérprete termina no momento em que assume a mediação
criativa”[3]. A introdução da noção de momento no fluxo
temporal conduz igualmente à obra aberta, uma aspiração aporética de um desejo
veemente de uma ““quadratura do circulo”, ou seja, um tomar consciência de uma
forma teoricamente aberta em que o tempo unidireccional reúne, sempre, todos os
materiais sonoros dentro de uma forma fechada”[4].
A noção de obra aberta revela-se fundamental na
produção musical do século XX. Desenvolvendo uma linguagem múltipla e móvel,
permite diversas leituras devido a inúmeros factores, nomeadamente a
indeterminação de alguns dos seus constituintes. O uso de métodos aleatórios na
definição do processo de composição, concorrendo para uma pluralidade de
leituras e abordagens, determina que “uma forma aberta [...] permite escutar n formas fechadas”[5].
Aproximando um número significativo de obras nas recorrências perceptíveis de
um mesmo elemento sob a aparência da mudança e de diferentes combinações
músico-estruturais[6], revela,
através da forma, um dos seus aspectos fundamentais, ou seja, a sua
“reversibilidade múltipla”[7].
Esta mesma forma, cujas inserções e interpolações requerem do seu autor uma
certa “mobilidade interior”, ou seja, que tenha a “capacidade de sair e entrar
acrobaticamente na partitura ou no sistema. [Este movimento constante que faz
nascer a obra revela-se, assim, no] seu modo de unir o acaso e o determinismo
no seio deste conceito chave do pensamento do compositor – a coincidência”[8].
Por outro lado, “a proliferação de formas, anula a própria forma, que se torna
de novo matéria”[9]. Note-se,
igualmente, que a passagem da forma aberta às formas fechadas se faz pela
subtracção, pela redução, pela antecipação dos sons e dos ritmos num todo que
se quer original. Esta redução altera e suspende o decurso objectivo do tempo,
transmitindo a intemporalidade através da importância que confere ao instante.
Chega-se assim, a “uma audição longa e liberta de todas as contingências
históricas, uma audição que permite uma identificação da essência”[10].
O movimento contínuo das durações determina um universo de ressonâncias, de
movimentos vibratórios apoiados nas frequências que, por vezes, ao longo da
História, verificamos realizarem-se recorrendo à colagem. Em alguns autores, a
citação, excepcional, determina coincidências entre as diversas estruturas não
as tornando reconhecíveis.
A adopção, por parte do compositor, de uma estética
da obra aberta determina uma maior flexibilidade tanto discursiva como formal,
sendo o intérprete determinante, tanto para a sua efectivação-realização, como
no processo de selecção das suas escolhas formais e interpretativas. Segundo
Umberto Eco, uma obra aberta resulta numa “proposta de um “campo” de
possibilidades interpretativas, como configuração de estímulos dotados de uma
substancial indeterminação, de modo a que o ouvinte frua uma série de
“leituras” sempre diferentes de uma mesma obra. [...] Estrutura ainda essa
obra, como “constelação” de elementos que se prestam a diferentes relações
recíprocas”[11].
Filipe Pires inicia a composição de uma obra
estabelecendo o seu material-base - escalas, modos ou séries – o material que
determinará todo o conjunto dos seus objectos harmónicos e tímbricos. A sua
estrutura formal define-se, segundo o autor, nas suas proporções temporais, às
quais dedica “a maior importância”[12].
Filipe Pires emprega a indeterminação em várias obras, designadamente na
primeira obra que compõe o seu ciclo Figurações, ou seja, Figurações I, para flauta solo, obra composta em 1968[13].
O conjunto de peças agrupadas sob a designação de Figurações, iniciada em 1968, baseia-se, contrariando
os princípios inerentes ao uso da indeterminação, numa série dodecafónica. Esta
série é diversamente empregue em cada uma das peças, e enquadrada por esquemas
formais diversos. É a sua origem comum que lhes confere unidade, possibilitando
a execução simultânea de duas ou mais destas obras[14].
Embora em graus diferentes, o progressivo alheamento de muitos dos
condicionalismos impostos pelos esquemas tradicionais do dodecafonismo é uma
constante[15].
Na construção da primeira destas figurações o autor
utiliza, e como já referimos, uma série de 12 sons repetida de modo sucessivo.
A repetição da série, não sofrendo qualquer transposição ou interpolação, sofre
diversas transformações, nomeadamente a subtracção e adição sucessiva dos seus
constituintes[16]. O autor
divide a série-base em dois fragmentos de 6 sons, estando esta divisão presente
a vários níveis de realização da obra. A dicotomia presente na concepção da
série encontra-se, ainda, ao nível do tipo do grafismo. Neste sentido, Filipe
Pires propõe o uso objectos sonoros de natureza determinada e indeterminada. A
nível rítmico e temporal concebe dois tipos de notação, uma mais rígida e outra
mais livre, e duas indicações agógicas de natureza contrária, rubato e in tempo. A nível tímbrico, alterna dois elementos de
natureza igualmente contrária, ou seja, a forma de ataque flatterzung e o vibrato. A nível dinâmico encontramos, tanto a alternância
de dinâmicas contrárias, como a alternância de dinâmicas fixas e evolutivas.
Notamos, assim, que em Figurações
I, a alternância e a
dicotomia são constantes, designadamente a dicotomia presente na dupla
estético-estilística - determinação e indeterminação.
Para alguns autores o equilíbrio
determinação-indeterminação não é possível, nomeadamente para Michel Butor.
Para este autor “não existe equilíbrio entre determinação e indeterminação,
pois a indeterminação, não é fechada por definição. Por outro lado, podemos
combinar diferentes tipos de determinação, imaginar determinações negativas, ou
seja, escolher os elementos de forma diferente do habitual. [O autor refere-se,
neste caso, aos métodos estocásticos, recorrendo ao uso de programas
informáticos específicos.] Não se trata de indeterminação, mas de outras formas
de determinação, próximas das que nos são mais familiares mas invertidas.
Relacionando diferentes modos de determinação, somos capazes de produzir
outros. Não se trata de um equilíbrio, mas da ultrapassagem dos velhos métodos
de determinação”[17].
O uso simultâneo da indeterminação e da determinação
permite o uso, por parte de Henri Pousseur, do termo “sobredeterminado”. Assim,
apoiando-se numa prática terminológica, propõe “a noção de sobredeterminação,
afim de encontrar, num nível superior, um nível onde se sintetizem determinadas
propriedades de duas noções base: a riqueza da indeterminação e a precisão
implícita da determinação”[18].
Estudos de sonoridades (1993), para piano, revela as suas mais prementes
preocupações criativas. Esta obra é, como nos revela o seu autor, um conjunto
de 28 pequenos esboços de durações, progressivamente, mais curtas, as quais se
encadeiam sem interrupção. Estes esboços encontram-se distribuídos em 4 grupos,
cujas designações - Lento, Moderato, Allegro e Agitato - não correspondem à
tradicional divisão em andamentos separados, determinando, de modo quase
imperceptível, a gradual aceleração das unidades de tempo. Por outro lado, sob
a forma de variações livres, diferentes tipos de escrita surgem em momentos
diferenciados da obra. Estes momentos revelam a oposição de diversos planos
sonoros, um elemento essencial na estruturação da obra. São utilizadas, ainda,
diversas formas de ataque, de entre as quais sobressaem, a percussão das teclas
do piano, tanto com os dedos em posição vertical como com o punho fechado, ou,
o uso de sequências de “clusters” produzidos com a palma da mão ou com os dedos
esticados[19]. Verificamos que os procedimentos
descritos se encontram a vários níveis composicionais em várias obras de forma
aberta do autor, nomeadamente em Figurações II (1969), Figurações III (1969) e Figurações IV (1970) do ciclo Figurações, e, ainda, em Mobiles (1968-1969).
Figurações II, para piano solo, é composta por 13 fragmentos
musicais. A sua execução exige a sequênciação dupla dos 13 fragmentos que a
compõem. O seu autor, determina que “le 2 volte: [deverá ter a duração de]
circa de 4’ 30’’”[20]
e que cada fragmento musical pode ser seguido de um outro de forma
ininterrupta, ou não, segundo a vontade do intérprete no momento exacto de
interpretação da obra. No entanto, um silêncio mais longo deverá separar as
duas versões da mesma. Segundo Filipe Pires, a obra pode ser interpretada,
tanto a solo como sobreposta a uma, ou várias, obras do ciclo Figurações[21]. Na realização dos diversos fragmentos que
a compõem, o autor utiliza, tanto a série na sua totalidade como a série
fragmentada. A sua fragmentação faz-se utilizando ora os primeiros, ora os
segundos 6 sons da série, ou, numa outra versão, pelo uso de dois segmentos da
série original constituídos pelas sequências de sons 1, 2, 3, 5, 7, 12, e 4, 6,
8, 9, 10, 11. O uso sucessivo ou simultâneo dos elementos propostos serve de
base à criação dos diferentes objectos sonoros e tímbricos que constituem o
material fruível. A concepção de elementos musicais com características bem
definidas encontra-se, igualmente, patente.
Figurações III, para dois pianos, utiliza uma notação mais
radical, permitindo a emergência de objectos sonoros de natureza diversa e
pouco habitual[22]. O uso de
um conjunto de objectos físicos diversos, como material a utilizar na execução
da obra, sendo inovador para a época, alude a preocupações técnicas, estéticas
e expressivas particulares, sentidas por diferentes compositores quer sejam
europeus ou americanos[23].
Com um grau de indeterminação superior à anterior, Figurações III permite que cada materialização da obra
seja única. O autor definiu, através do uso de linhas horizontais, 4 grandes
tessituras que correspondem a campos de acção no interior do instrumento, nos
quais se realizam diversos gestos que obtém correspondência em objectos sonoros
próprios. A ausência de linhas horizontais indica que a execução se realiza
sobre o tampo de madeira da caixa de ressonância do instrumento. Por outro lado,
a notação sobre pentagrama, corresponde à execução sobre o teclado do
instrumento.
Figurações IV, para harpa, é composta por cinco secções compostas
sobre a mesma série dodecafónica das Figurações anteriores. A série surge, no entanto, transposta uma 2ª menor inferior[24].
A peça surge na sequênciação, segundo um esquema predeterminado pelo autor, das
secções que compõem a obra, e que se encontram assim segmentadas: 1 secção A, 3
secções B e, 1 secção C. Segundo Filipe Pires, “a secção A inicia e termina
obrigatoriamente a execução da obra. Cada uma das secções B poderá ser
livremente escolhida pelo intérprete como passagem entre A e C, bem como entre
C e A. C situar-se-á, portanto, entre duas secções B, iguais ou diferentes.
Teremos, assim, a sequência - A, B, C, B, A, B, C, B, A, B, C, B, A. [...] Toda
a obra deve ser executada, fazendo suceder as secções sem maiores interrupções
do que as que se encontram indicadas”[25].
Analisando a obra, constatamos que sobrepõe, ainda, elementos de ordem
determinada a elementos de ordem indeterminada. A obra, permite a elaboração,
por parte do intérprete, de objectos sonorico-tímbricos utilizando um conjunto
diverso de objectos no interior do piano e, simultaneamente, a concepção de um
conjunto de objectos sonoros deterministas, nomeadamente quando o intérprete
utiliza uma série de alturas determinada e rígida. A indeterminação surge, não
só a nível formal, mas também, a nível da notação. Filipe Pires permite a
concepção de objectos sonoros de características indeterministas, quando usa
notação gráfica apropriada ao efeito.
Neste conjunto de obras, notamos que a construção do
discurso permite, através do uso da fragmentação, a fruição de múltiplas formas
de organização. No interior da arquitectura musical, o compositor age por
instinto, condicionado, unicamente, pela técnica e pelo devir musical. Esta
preocupação surge partilhada por outros autores, nomeadamente Pierre Boulez,
quando constata que “a música ocidental estabelece certas relações de tal forma
que, para o olhar, podemos ousar aplicar a expressão um certo “angulo” de
audição, graças a uma “memorização”, mais ou menos imediata e consciente, por
parte do ouvinte, do objecto fruído. No entanto, permanecendo com a
sensibilidade em alerta máximo, criamos relações cada vez mais assimétricas
entre os componentes sonoros.
[...] A audição tende para o instantâneo, perdendo, assim, referências, razão
de ser e existir. A obra deixa de ser uma arquitectura dirigida de um “início”
para um “fim” [...]: as fronteiras são eterizadas, o tempo de escuta torna-se
não direccional convertendo-se inesperadamente em instantes de tempo.
Isto leva-nos a uma concepção do processo de criação
onde o “acabado” não é assumido pelo autor. Assim, o acaso é introduzido na
obra que se torna indefinida – uma questão fundamental e que, por vezes,
permanece incompreendida. O acaso não é um jogo sobre os objectos que a definem
assumindo uma relação tempo-instante empregue num tempo não homogéneo, pronto a
ser alargado ou comprimido em diferentes momentos da obra, e, a ser
condicionado de forma livre. A ele, equivale uma obra pensada como um circuito
não fechado, não resolvido”[26].
Por outro lado, para György Ligeti “a música,
enquanto processo inicialmente temporal, é, em essência, movimento (o caso da
música estática é considerado um caso limite). Assim, não é possível criar uma
analogia entre música moderna e escultura móvel. [...] Como a mobilidade se
revela motor e parte integrante do processo musical, e como esta mobilidade se
reflecte na forma musical, a qual determina, a mobilidade é inerente à forma,
embora a forma não seja móvel. Neste contexto, as variadas e sucessivas
realizações musicais de um texto polivalente tornam-se numa sucessão de
fotografias de um Mobile de Calder”[27].
A organização de um conjunto de obras em ciclo
resulta, muitas vezes, de um pensamento estruturante que o criador desenvolve
numa fase anterior à criação. Este pensamento constrói um sistema gerador que
unifica o todo potenciando desenvolvimentos particulares em cada uma das suas
estruturas de formação – a obra individualmente. A ideia de estruturar as suas
obras em ciclos preservando elementos que unificam essas mesmas obras,
reflecte-se na linguagem do compositor que, embora em permanente evolução,
deixa transparecer, sempre, as suas características.
Por outro lado, o autor desenvolve as suas primeiras
experiências dodecafónicas no seu Quarteto de cordas (1958). Em Regresso Eterno (1961) anima uma escrita essencialmente
cromática e desprovida de intuitos de organização serial. Em Akronos (1964) compõe uma série através da
ordenação de intervalos, contendo os 12 sons da escala cromática distribuídos
por três células, tanto de forma independente como permutando-as de forma
diversa. Encontramos um serialismo não dodecafónico em Perspectivas (1965), uma obra baseada numa série de 9
sons e 9 durações. Estudo para um percussionista (1966) combina séries de timbres, durações e
intensidades, nas suas versões originais e inversas, com aumentação e
diminuição de valores[28].
Metronomie (1966)
desenvolve de forma plena, coerente, eficaz e abrangente, as técnicas inerentes
a uma escrita dodecafónica. Construída sobre uma série de 12 sons,
compreendendo a inversão, retrogradação, retrogradação da inversão e diversas
transposições da série de base, associa a aumentação e diminuição de valores a
uma fórmula rítmica base. Alguns destes procedimentos são, igualmente,
utilizados em Mobiles
(1968-1969). Esta obra revela 15 variações de um material-base, cuja
sequênciação é estabelecida pelos intérpretes[29].
Não obstante a sua filiação em princípios dodecafónicos, Ostinati (1970), afasta-se de qualquer propósito de
organização serial, revelando um carácter improvisatório aparente.
Dodecafonismo, serialismo, ou qualquer outra técnica de composição ou
organização do discurso musical são, para o autor, meios de expressão que
utiliza alternadamente, ou não, estando desvinculados dos seus significantes e
significados.
A obra Epos (1989-1991), encerra, segundo o autor, um ciclo
criativo[30]. A obra
compõem-se de 9 painéis descrevendo a epopeia marítima dos descobrimentos
portugueses. O mundo musical traduz o mundo descrito por Luís Vaz de Camões em Os
Lusíadas, encadeando-se os
painéis de forma contínua e sem interrupção[31].
Cada um dos painéis descreve uma epígrafe da obra[32].
Musicalmente, Epos
desenvolve uma sucessão de gestos (“ondas” segundo o autor), com uma duração e
amplitude que progride obedecendo à proporção, respectivamente, de 1, 2, 3
(cerca de 4, 8 e 12 minutos cada). Estes gestos originam texturas sonoras de
densidade variável, sendo variadas e encadeadas tendo em conta a natureza dos
seus constituintes. A obra divide-se em 2 partes. Na primeira, painéis I a IV,
Filipe Pires utiliza como elemento gerador dos seus materiais melódicos e
harmónicos, um núcleo de 3 sons cromáticos que se desenvolvem, segundo o autor,
em leque. Assim, o processo origina diversos “círculos concêntricos que alteram
o seu diâmetro, expandindo-se e contraindo-se nos seus diversos parâmetros e
regressando, por fim, a um ponto zero, no extremo agudo da tessitura. [A
segunda parte, painéis V a IX, desenvolve um único gesto (“onda”), constituída
por uma lenta progressão musical chegando por fim ao clímax final. Segundo o
autor, a organização sonora compreende, ainda,] uma vasta gama de ordenações
intervalares, desde fórmulas melódicas primitivas, que depois se fixam em
diversas combinações pentatónicas ou heptatónicas, até disposições de 9 ou 14
sons, extravasando os limites da oitava. Algumas destas escalas híbridas,
transformam-se e fragmentam-se, originando ornamentadas sobreposições
heterofónicas ou polifonias de simulada improvisação colectiva. Assim se
estabelecem livres incursões em diferentes domínios das músicas étnicas, em
particular no do ritmo e da métrica, onde predominam a alternância dos
compassos, os ritmos irregulares e estruturas polirrítmicas daí decorrentes.
Estas alusões alternam com citações e colagens de rituais africanos e
asiáticos, em parte incluídos em Canto Ecuménico. A forma repetitiva do discurso é aqui, por vezes,
um dos aspectos mais salientes”[33].
A obra de Filipe Pires desnuda as diferentes
percepções do imaginário e do concreto na obra de arte, percepções estas que se
encontram no subconsciente de quem cria. Mesmo que o compositor desenhe a obra
segundo pressupostos técnicos, estilísticos e estéticos precisos, e que
traduzem preocupações criativas de ordem diversa, em última análise, estes
encontram-se subjugados a um ser e ter que é do criador. Dignificada pela
criação e pelo acto criativo, a obra vive no espaço tempo de uma existência
frágil que é a sua, traduzindo o imaginário e o ideário do seu autor, a
vivência e sensibilidade de quem frui. A obra de todo o compositor,
nomeadamente a de Filipe Pires, dignifica-se no som, e pelo som, construindo-se
no espaço e fruindo-se pela vida.
Junho 2005
[1] Estes métodos referem-se, de uma forma mais ou menos, consciente à teoria da informação e ao cálculo das probabilidades.
[2] Salientamos, que, desde o início do século,
que diversos compositores sentem necessidade de utilizar formas abertas para
melhor exprimir as suas necessidades criativas, designadamente Charles Ives no
seu quarteto Halloween
(1911-13) ou Henry Cowell, no seu quarteto de cordas, nº 3, Mosaic (1934). Nesta obra, o compositor permite aos
intérpretes a organização da forma de sequênciação de um conjunto de elementos
propostos por si.
[3] ECO, Umberto, L’oeuvre Ouverte, Le Seuil, Paris, 1965, pp. 15-18.
[4] FAUST, Wolfgang Max, “Im gespräch: Emmanuel Nunes”, entrevista com
Emmanuel Nunes, Berliner Künstlerprogramm
der DAAD, Berlim, p.3.
[5] “Notations-Souvenirs-Fragments”, p.17.
[6] Cfr. Cessed III ou Musik der Frühe onde nos da capo por vezes sobressaem tanto vozes imersas em texturas, como prisioneiras de um contraponto sempre presente.
[7] “Notations-Souvenirs-Fragments”, p.17. Em Lichtung, um reverso da dramaturgia musical onde a obra não se constrói passo a passo, mas se desconstrói nos elementos iniciaticos, reveladores de virtualidades escondidas.
[8] MACIAS, Enrique, “Tif’ereth de Emmanuel Nunes: o esplendor emblemático do espaço.”, entrevista com Emmanuel Nunes, Fundação de Serralves, Porto, 1991, p.9.
[9] Pierre SHAEFFER, La musique concrète, Presses Universitaires de France, Paris,
1973, p. 26.
[10] MACIAS, Enrique, “Tif’ereth de Emmanuel Nunes: o esplendor emblemático do espaço.”, entrevista com Emmanuel Nunes, Fundação de Serralves, Porto, 1991, p.5.
[11] ECO, Umberto, Obra Aberta, Difel, Lisboa, 1989, pp. 173-174.
[12] Incluído em texto inédito do autor.
[13] Filipe Pires nasceu em Lisboa, onde inicia os seus estudos musicais. Inicia a sua carreira como pianista em 1950 após obtenção do 1º Prémio da Juventude Musical Portuguesa. Mais tarde conclui os Cursos Superiores de Piano e Composição no Conservatório Nacional de Lisboa estudando em seguida na Alemanha e na Áustria, enquanto bolseiro do Instituto da Alta Cultura. Em 1960 regressa a Portugal, fixando residência no Porto onde ingressa no Conservatório de Música como professor de Composição. Como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian segue diversos cursos de verão em Darmstadt com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. Em Paris efectua um estágio de dois anos com Pierre Schaffer para estudar música electroacústica. Entre 1975 e 1979 exerce o cargo de Especialista de Música no Secretariado Internacional da UNESCO, tendo representado esta organização, em diversos países da Europa de Leste, África e América Latina.
[14] A possibilidade de sobreposição de várias peças de figurações, permitida pelo compositor, advém do uso da mesma forma de organização sonora de base e de um procedimento previsto pelo autor.
[15] Como nos afirma o autor: “A título de exemplo, os dois últimos números de Figurações – VIII e IX, respectivamente para fagote (1995) e clarinete (2001), - insistem em “ostinati” de curtas células, com repetição dos mesmos sons da série fragmentada. Como curiosidade, o ponto de partida da peça de fagote é o mesmo “dó” da frase inicial do Sacre, cujo ritmo é mantido nesta citação”. Nota fornecida pelo autor.
[16] A série composta pelos sons – dó 3, sol b 3, fá 3, si b 3, si 3, mi 4, dó # 4, ré # 3, lá 3, ré 4, lá b 3 e sol 3, servirá de material-base à realização da série de obras designadas de Figurações.
[17] Entrevista com Jean-Yves Bosseur.
[18] BOSSEUR, Jean-Yves, Vocabulaire de la
Musique Contemporaine. La
Flèche, Minerve, 1996, p. 74.
[19] Cfr. PIRES, Filipe, Estudos de Sonoridades, Cd – NUM 1053 – Música Portuguesa séc. XX, s. p.
[20] PIRES, Filipe, Figurações II. Edizioni curci, E. 9935 C., Milano, 1975,
s.p.
[21] Sofia Lourenço realiza uma versão para piano
solo da obra, registado no cd numérica 1077, seguindo as sequências descritas:
1ª sequência – fragmentos 9, 8, 7, 10, 2, 3, 1, 13, 12, 11, 5, 4, 6; 2ª
sequência –fragmentos 10, 13, 7, 12, 2, 5, 1, 6, 11, 4, 3, 8, 9. Os numeração
por nós efectuada segue, de 1 a 13, a ordem sequencial, segundo o grafismo
estabelecido na partitura editada pelas Edizioni Curci – Milano com o número E.
9935 C.
[22] A execução da obra faz-se mediante o uso de um conjunto diverso de objectos que passamos a enumerar. O 1º pianista necessita, para além de um cronómetro, de 2 baquetas de feltro, 2 baquetas de madeira, 2 vassouras metálicas (Jazz), 1 plectro, 1 corrente metálica (de cerca de 50 cm de comprimento) e de 1 bola de borracha (pequena e leve). O 2º pianista precisa de 1 cronómetro, 2 baquetas de feltro, 2 vassouras metálicas (Jazz), 1 plectro, 1 corrente metálica (de cerca de 50 cm de comprimento) e de 1 bola de borracha (pequena e leve). Segundo a nota explicativa da partitura, “as correntes metálicas devem ser muito leves e podem obter-se entrelaçando molas vulgares de prender papéis”.
[23] O nome de John Cage, encontra-se, inevitavelmente, presente, nestas afirmações.
[24] Obtemos, assim, a série dó b 3, fá 3, mi 3, lá, si b 3, mi b 4, dó 4, ré 3, lá b 3, ré b 4, sol 3, fá # 3.
[25] Nota explicativa da partitura.
[26] BOULEZ, Pierre, Points de Repère, Seuil, Paris, 1981, pp. 177-178.
[27] LIGETI, Gyorgy, “Del la forme”, VH101, nº 1, 1970, p. 88.
[28] Escrita para um grupo de 7 instrumentos de som indeterminado, esta peça prescinde do uso de uma série de alturas.
[29] A obra não é determinada ao nível da sequência dos seus constituintes formais sendo, por isso, uma obra aberta.
[30] Portugaliae Genesis (1968) e Canto Ecuménico (1979) utilizam igualmente materiais heterogéneos na sua concepção e produção. Provenientes, alguns, da tradição oral, e sendo utilizados em novos contextos e formas execução, traduzem um novo universo sonoro e musical, consequência da sua manipulação por parte do criador. Salientamos ainda que, na primeira das obras o conteúdo literário determina os processos de escrita e linguagem empregues, e que na segunda, é o material musical que sugere diferentes analogias com diversos universos extramusicais. Note-se ainda o processo de montagem inerente à produção da banda electroacústica.
[31] Os textos camonianos escolhidos pelo compositor são unicamente ilustrativos de um ambiente poético-musical.
[32] As epígrafes descritas são: Painel I – “Já a vista, pouco e pouco, se desterra/ Daqueles pátrios montes, que ficavam” (V, 3); Painel II – “O duvidoso mar num lenho leve, / Por vias nunca usadas...” (I, 27); Painel III – “... o grande império, / De selvática gente, negra e nua,” (X, 93); Painel IV – “... Cometendo os duros medos / Do mar incerto,” (IX, 16); Painel V – “A noite se passou, na lassa frota,” (I, 57); Painel VI – “... a ilha Barém que o fundo ornado/ Tem das suas perlas ricas e imitantes/ À cor da Aurora;” (X, 102); Painel VII – “Já a manhã clara dava nos outeiros/ Por onde o Ganges murmurando soa,” (VI, 92); Painel VIII – “... pelos mares do Oriente/ As infinitas ilhas espalhadas:” (X, 132); Painel IX – “Assifomos abrindo aqueles mares,” (V, 4) e “... o imenso lago/ Do salgado oceano,” (V, 9).
[33] PIRES, Filipe, Epos, 17º Encontros de Música Contemporânea de
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, vol. 16, 1994, s.p. A nível
orquestral Epos utiliza um
efectivo sinfónico tradicional, desenvolve um discurso tímbrico que enfatiza
diversas e novas associações instrumentais. O uso de grupos de solistas no seio
da orquestra transforma a sua natureza. A percussão, num total de 20
instrumentos distribuídos por 5 executantes, salienta-se, segundo o autor, pelo
uso da associação instrumental específica, a associação dos instrumentos:
xilofone, vibrafone e marimbafone.