João Rafael nasceu em 1960. Estudou Composição
e Piano no Conservatório Nacional de Lisboa, prosseguindo os seus estudos de
composição com Emmanuel Nunes, primeiro em Paris e posteriormente em Freiburg,
no "Institut für Neue Musik", onde também estudou Música Electrónica
com Mesias Maiguashca. Paralelamente a este percurso, Rafael teve uma formação
plural e várias experiências noutros domínios musicais, nomeadamente num grupo
de música rock ou na frequência de aulas na Escola de Jazz do Hot Club, para
além de experiências variadas no domínio do ensino da música.
Rafael diz: “no que respeita à minha formação
musical [em Portugal] – após um longo percurso, muito sinuoso e nada
ortodoxo, praticamente como autodidacta – ela foi feita essencialmente em
Lisboa no Conservatório Nacional e no Instituto Gregoriano com Christopher
Bochmann.”
[2]
Esta formação que teve início no ano de 1979, bem como o contacto posterior com
Emmanuel Nunes, primeiramente nos seminários na Fundação Calouste Gulbenkian,
em Lisboa (1984-85), posteriormente em França (1985-88) e na Alemanha
(1988-92), direccionaram, em certa medida, o pensamento do compositor para a
valorização da polifonia entre os vários elementos musicais na construção e concepção
de uma obra musical.
Sobre o processo de composição, relativamente
ao ponto de partida para uma peça, afirma que: “depende de cada obra e
finalmente acaba por ser uma mistura de muita coisa. Tanto ideias um pouco mais
globais podem aparecer primeiro, mas vão sempre aparecendo outras ideias
sucessivamente. Umas vêm mais do material, mais do concreto, do específico
musical, e às vezes também há outras ideias de um modo mais global. (...) o
processo (...) depende de cada peça. E efectivamente, de um modo geral, o
processo começa mais talvez do material, se bem que também haja outro tipo de
ideias.”
[3]
Na sua obra existe pluralidade no tipo de
escrita de cada peça, no sentido em que existe uma especificidade inerente à
construção dos materiais de cada uma. Sobre o tratamento tímbrico, espacial e
de outros parâmetros utilizados, o compositor diz: “em cada peça, ou em cada
momento duma peça, há sempre aspectos que são mais desenvolvidos do que outros”
[4]
.
Efectivamente, a sua obra não é constituída apenas por um número limitado de
características idiossincráticas que se verificam de obra para obra. O método
de trabalho e criação dos materiais de cada peça varia consoante a ideia
musical que se procura realizar.
O
arquétipo unificador da obra de Rafael é a construção ponderada dos vários
materiais musicais, privilegiando a interacção entre os vários parâmetros,
sendo que a ênfase dada a cada um deles vai variando em cada obra ou mesmo em
cada momento musical, criando “jogos de reconhecimento/não-reconhecimento dos
vários elementos musicais”
[5]
.
O compositor diz: “para o resultado final de uma peça, o mais importante (...)
[é], a cada momento, tornar visível, perceptível (audível!), o que se passa e
as relações mais importantes entre os elementos em jogo – claro que em
música a noção de importância não representa um conceito absoluto, mas pelo
contrário implica o assumir consciente de uma determinada posição estética.”
[6]
Relativamente a esta matéria, para dar um exemplo concreto, no mesmo texto
diz-nos algo que é um paradigma do seu pensamento musical e que expressa
quando, ao referir-se ao ritmo de Transition, diz:
“não deveria ser muito complicado – com valores irracionais bastante
complexos – devendo, pelo contrário, ter uma predominância de relações
rítmicas simples que lhe deveriam conferir um carácter de uma certa
transparência, assim como uma "aura" de claridade (ao nível rítmico),
para poder dar livre curso ao desenvolvimento mais tortuoso de outros
elementos.” Porém, também no mesmo texto, frisa que “o conceito de simplicidade
não pode de modo nenhum encontrar a sua justificação como suporte de um tipo de
música que pretende ser "simplista" (pobre) ou "acessível",
mas sim: como necessidade de redução do grau de complexidade a certos níveis
para permitir o pleno desenvolvimento de outros elementos; ou ainda, como uma
simplificação para tornar mais claras certas relações estruturais presentes num
dado momento – devendo então este tipo de situações adquirir uma função
adequada no contexto musical, e assumir, sem concessões, as necessárias
consequências formais.”
Nas notas de programa de Kreuzgang (obra composta entre 2001 e 2002), Rafael indica que a “peça tem como
referências longínquas o concerto grosso barroco (contraste entre um grupo de
solistas e um "tutti", orquestral ou não) e a técnica renascentista
dos cori spezzati (grupos vocais e/ou
instrumentais colocados em vários pontos no espaço), assumindo-as no contexto
de uma linguagem musical contemporânea, sem retomar, portanto, as suas formas
tradicionais – estreitamente associadas à linguagem modal ou tonal da
época – o que constituiria um anacronismo estilístico conduzindo a uma
estética inevitavelmente "neo-qualquer-coisa".” O compositor
evidencia que não se trata de uma referência ao conteúdo musical, mas meramente
ao efectivo instrumental e à disposição espacial dos músicos. Isto constitui
uma marca do seu pensamento e orientação estética.
Uma característica importante do seu
pensamento musical é a reiteração de elementos, mas na medida em que “a
reiteração não significa a repetição mas sim a recorrência de certo tipo de
elementos, e isso é uma coisa que dá forma ao discurso musical”
[7]
.
Na mesma entrevista, continua esclarecendo que “não é só o débito rápido de
ritmos e de notas, ou o débito lento, que muda a velocidade do discurso. Pode
até criar situações paradoxais em que resulta o contrário. A recorrência de
elementos mais ou menos reconhecíveis, para mim, tem efectivamente muita
importância. E a própria variação desse tipo de recorrência – mais próxima,
mais afastada, muito mais repetição, nenhuma repetição – consoante as
peças, isso pode ser um dos elementos principais que dá forma ao
desenvolvimento do discurso temporal da peça.”
A
propósito de outro tipo de situação paradoxal, neste caso relativamente ao que
o compositor refere como o paradoxo da mobilidade/imobilidade do tempo –
isto é, que “quando ocorrem mudanças (e só quando?), a eternidade também está
presente”, quer dizer que “a eternidade (e a atemporalidade) não existe nem no
vazio temporal nem na ausência de tudo. Pelo contrário, ela é constituída pelo
todo existente e mutante. E é precisamente isto que cria simultaneamente a
percepção de mobilidade e a de imobilidade.” – Rafael escreve, em 1996,
num texto sobre as "semelhanças" entre o Paradoxo de Zenão e a
experiência musical
[8]
:
“(...)
este estado paradoxal não surge por si mesmo, em função apenas de uma simples
dependência dos conceitos musicais, vulgarmente utilizados, de música
"activa" e música "passiva". Nem uma acção musical intensa
põe automaticamente o tempo "a passar", nem um certo tipo de música
"estática" força o congelamento do fluxo do tempo. Na verdade nenhuma
delas deveria jamais ser confundida nem com eternidade, nem com Música.”
Em Ode, obra
escrita entre 1993 e 1994, apesar de Rafael ter como base a “Ode Marítima”, de
Fernando Pessoa, e de esta peça poder apresentar semelhanças com um poema
sinfónico, não era intenção do compositor criar um “discurso musical (...)
essencialmente constituído por uma sequência de quadros descritivos.”
[9]
Assim como também não era intenção do compositor associar, de forma taxativa e
absoluta, momentos musicais a estados de espírito. Continua dizendo: “o que me interessava era criar um
desenrolar temporal na peça que fosse uma consequência directa do poema e da
maneira como eu interpretei as associações entre os "arquétipos" [do
poema] e os elementos musicais.” Neste caso, apesar de também existirem
momentos de carácter mais ou menos descritivo, associados às denominadas
“entidades-arquétipos” do poema, como “o cais”, “o navio (o paquete)”, “o rio”
ou “a manhã”, não se trata de tentar criar uma “sequência de quadros
descritivos”, mas sim outro tipo de associações entre a peça e o poema. Rafael
explica qual o tipo de relação existente, quando diz: “inicialmente analisei
detalhadamente o texto do poema e fiquei surpreendido pela intensidade que
certos elementos centrais adquiriam no poema, mas acima de tudo pelo tipo de
recorrência temporal, quase cíclica, destes mesmos elementos, que eu
interpretei como "entidades-arquétipos"”. Prossegue expressando que
“a recorrência destes elementos é uma dimensão fundamental na construção do
discurso no poema.”
No que diz respeito ao que pensa relativamente
à percepção da música em geral, Rafael diz: “a maneira como se considera a peça
e o modo como ela vai ser percepcionada pelo ouvinte (...) é um problema muito
delicado porque se pode chegar facilmente aos domínios da música ligeira, em
que se fazem coisas de uma certa dimensão só para serem facilmente percepcionadas
pelo público, ou aceites pelo público. De qualquer maneira, uma peça tem a ver
com determinados elementos musicais, que existem, que vivem e que se
desenvolvem de determinado tipo de modo. E o desenvolvimento global do
discurso, de um certo modo, tem a ver com a maneira como se dá a reconhecer,
mais ou menos, esses elementos.”
[10]
Falando da obra Ombres Croisées, composta em 1990-91/99, o compositor afirma: “do ponto de vista da
construção da peça, a relação entre cada ponto no espaço e cada um dos elementos
rítmicos, tímbricos, de alturas, ou cada escala micro-interválica, é por vezes
tão forte que se torna mesmo facilmente audível.”
[11]
Refere que, “do ponto de vista da construção da peça”, existe uma preocupação
em tornar audíveis as relações entre os materiais. No caso específico desta
obra, um dos objectivos musicais foi criar “uma relação muito íntima entre os
vários pontos rítmicos, a construção das escalas micro-interválicas e os vários
pontos no espaço.”
[12]
Para o compositor, não faz sentido utilizar
construções numéricas que até podem dar, por exemplo ritmos complexos, sem
perceber qual o seu significado num contexto musical. Rafael diz, como exemplo,
“no serialismo, se uma pessoa faz uma série (...) tem que saber o que é que
isto é, e o que é que isto vai produzir como resultado musical. E, se isto vai
ser aplicado às alturas, o que é que isto significa, ou se é aplicado aos
ritmos, o que é que significa, como realidade musical. Senão não faz sentido
nenhum. Seja o que for que uma pessoa tenha à sua frente, o que é importante é
que isso corresponda, por um lado, àquilo que a pessoa está a querer fazer, e
que, por outro lado, uma pessoa esteja sempre a ver o que é que está a resultar
(musicalmente) daquilo que se está a utilizar – quer sejam números, quer
seja inspiração divina.”
[13]
Esta
ideia está presente em várias das suas obras. No que diz respeito ao aspecto
rítmico de Transition, obra composta em 1989,
Rafael tem como base uma sucessão numérica extraída da série de Fibonacci
[14]
.
Esta série já foi utilizada de diversos modos, por compositores como Xenakis ou
Stockhausen, não obstante, o compositor tem propósitos muito específicos para a
utilização desta sucessão numérica. Na entrevista realizada por Madalena
Soveral, o compositor diz: “a minha ideia inicial era fazer uma
"exuberância de erupções (ou irrupções) de ritardandos". E por isso escolhi a figura 1 1 2 3 5 8, que é um ritardando, se isto for aplicado aos ritmos. E depois recomeça de novo, se se
repetir sempre esta figura. Temos sempre uma coisa que irrompe e depois começa
a "descair", e depois irrompe novamente, etc.”
[15]
Explica o processo de desenvolvimento utilizando a série de Fibonacci dizendo:
“na primeira parte da peça eu escolhi duas figuras rítmicas "que
irrompem": 1 1 2 3 5 8 e 1 1 2 3 5 8 13. A primeira tem uma duração global de
20, e a segunda de 33 unidades. Quando sobrepomos as duas, e que cada uma delas
se repete "en boucle", após um início síncrono elas começam
imediatamente a desfasar-se, até atingirem de novo a situação inicial
(síncrona) após 660 unidades.”
[16]
Ainda na mesma resposta, clarifica no entanto que “os elementos rítmicos
derivados da série de Fibonacci não estão aqui, como "subalternos", a
articular duas periodicidades rítmicas. (...) eles são mesmo o ponto de partida
e os elementos principais da construção rítmica”.
Continua
dizendo: “Se analisarmos o resultado da interacção destas duas figuras, assim
como o ritmo global que resulta da sua sobreposição, apercebemo-nos
imediatamente da grande riqueza da irregularidade resultante desta sobreposição
regular.” Este é justamente um dos aspectos mais importantes do pensamento
musical do compositor – a ideia de “criar uma irregularidade a partir de
uma regularidade.”
[17]
Nomeadamente, criando “uma forma irregular, mas rica, a partir de uma coisa que
é regular. E isso é que me interessa na música: é criar um tipo de situação a
partir de outra que é o oposto.”
[18]
Acrescenta também a motivação específica que o levou à escolha de apenas alguns
valores da sequência de Fibonacci para esta obra: “Como eu penso sempre em
termos musicais, criei este tipo de irrupções e parei na série onde já
estávamos muito próximos da proporção de ouro. No início da série de
Fibonacci 1:1 = 1 ou 2:1 = 2 não são proporções de ouro. Ritmicamente são muito diferentes de
1,618… Mas se temos um ritmo de 5
e de 8 semicolcheias temos uma proporção entre estas durações que é
praticamente a proporção de ouro. Se continuamos agora a utilizar como durações
o valor 13, o 21 e o 34 etc., quando temos a duração 34 – que é enorme, e que já não se consegue
perceber que duração é – e a duração 21, a proporção entre elas é
praticamente a mesma que entre 8 e 5. Portanto já não faz sentido – é uma
redundância – estar a utilizar isto como valores rítmicos. Esta proporção
não tem valor qualitativo nenhum – já não traz nada de novo –
porque já estava lá, nos valores anteriores. Estamos a repetir o mesmo.
Enquanto que, quando temos os valores 1, 2, 3, 5 e 8 eles são muito diferentes,
e as proporções entre eles têm uma diferença qualitativa musicalmente muito
relevante.”
Tal
como noutras peças, também aqui os pressupostos musicais têm como objectivo
criar um resultado musical com um certo grau e tipo de complexidade, se bem
que, para Rafael, o conceito de complexidade não é de índole quantitativa, mas
sim está associado a uma riqueza de relações entre o vários elementos musicais.
Não
é possível perceber o pensamento musical deste compositor sem perspectivar a
sua visão de complexidade – do que é valorizado numa obra e da forma como
Rafael a procura atingir – num contexto e estética musicais específicos.
Jaime Reis, Setembro de 2005.
[1]
Gostaria de agradecer a João Rafael pelo apoio, dedicação e gentileza
prestados durante todos os contactos que temos efectuado ao longo dos últimos
três anos. Expresso também a minha gratidão a António Tilly, pelas longas horas
que passámos a discutir a estrutura e conteúdo deste texto e a Miguel Azguime,
por me ter proporcionado esta participação em tão interessante projecto.
[2]
Entrevista realizada por Madalena Soveral a 14 de Junho de 2003 em Rio
Maior; in: Quatre compositeurs. Quatre œuvres: La musique portugaise pour
piano aux années 90,
thèse de doctorat, Université Paris 8, 2004. Pergunta 8.
[3]
Entrevista a João Rafael, conduzida por
Miguel Azguime, no dia 19 de Agosto de 2004, na Miso Music Portugal (Parede).
Pergunta 2.
[4]
Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 10.
[5] Entrevista a João Rafael, conduzida por Miguel Azguime... Pergunta 5.
[6] Rafael, João. “Análise de Transition”. Publicação de um excerto em italiano, a partir da versão original em francês, em: Nuovi Spazi Sonori News, Anno 3, Numero 1, Brescia, Itália, Janeiro de 1991.Publicação em português da versão integral (tradução de João Rafael), em: Azevedo, Sérgio. A invenção dos sons. Editorial Caminho, Lisboa, Janeiro de 1999. Pp: 333-338.
[7] Entrevista a João Rafael, conduzida por Miguel Azguime... Pergunta 4.
[8]
Rafael, João. “Texto sobre as "semelhanças" entre o Paradoxo
de Zenão e a experiência musical.” Publicação em sueco, a partir da versão original em inglês, em: Borderline – publicação da temporada de concertos do Ensemble Ars Nova
–, Malmö, Suécia, concerto No. 3, 30 de Setembro de 1996. Publicação em
português da versão integral (tradução de João Rafael), em: Azevedo, Sérgio. A
invenção dos sons. Editorial Caminho, Lisboa, Janeiro
de 1999. Pp: 331-333.
[9]
Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 20.
[10]
Entrevista a João Rafael, conduzida por
Miguel Azguime... Pergunta 5.
[11] Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 18.
[12] Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 17.
[13]
Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 24.
[14]
Para mais informação sobre esta série, é possível consultar:
http://www.mcs.surrey.ac.uk/Personal/R.Knott/Fibonacci/fibFormula.html#formula
(site consultado em Julho de 2005).
[15] Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 24.
[16] Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 23.
[17] Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 24.
[18] Entrevista realizada por Madalena Soveral... Pergunta 24.