Um outro sítio
por Pedro Gomes, Jul 2006
em Público, Y
Que a História chegará a Sei Miguel – produtor e músico sem paralelo na música nacional – não há dúvidas. Que nós lhe cheguemos no seu tempo, é uma questão cuja resolução é de total urgência. Revisão de percurso, a propósito do lançamento de The Tone Gardens.
“Sou um ‘performer’. O meu negócio é o acto estético, o facto estético. E o mistério é a essência desse acontecer.” Este mistério de que nos fala Sei Miguel, é, na sua música, contínuo e eterno.
Diz-nos:“Eu pretendo com a minha música, sem retrocesso social ou tecnológico, escapar ao comércio e à cultura. Não é preciso sequer aboli-los, basta ser. Mas é preciso conseguir eticamente e tecnicamente suficiente coerência para existir de facto, independente do comércio e da cultura.”
Sei Miguel, trompetista, arranjador, produtor e músico sem paralelo na música nacional, como, provavelmente, no jazz mundial, acaba de lançar “The Tone Gardens”, pretexto para esta breve revisão do percurso do músico.
Há algo que é imperativo esclarecer: um corpo de trabalho que tanto adensa, acrescenta e inova num género – o jazz –, corre o risco de, quando não acompanhado com regularidade (e, salvo raras excepções, nos últimos 15 anos muito pouco se tem escrito em português com o mínimo de propriedade sobre Sei Miguel), nos parecer difuso e longínquo. As opções de afastamento ou do fascínio, são, então, nossas.
Nascido em 1961 em Paris, Sei Miguel, antes de assentar em Portugal decorridos os primeiros anos da década de 80, passou a infância no Brasil antes de voltar à capital francesa. O início do seu percurso público enquanto líder deu-se com o trio Moeda Noise, com Fala Mariam (que o acompanha até ao presente) e Bruno Parrinha.
“Procuro desde os tempos do Moeda Noise desenvolver possíveis escritas e procuro denominadores comuns entre as escritas. Depois, o que procuro também é modificar de forma sensível e definitiva os conceitos de afinação, para isso inferferindo na noção de escuta. Isso também é importante. Defini que Moeda Noise era uma banda rock-jazz, noise q.b., antes da onda cá chegar, e a banda formei-a vencido pelas circunstâncias. Se queria reunir condições para os músicos trabalharem a sério e para eu trabalhar a sério, tinha que criar essas condições e tinha que as fazer respeitar. Foi o começo de uma aprendizagem no duro. Eu não sabia suficiente sobre trompete, sobre música para assumir um terreno 100 por cento jazz. Precisava de trabalhar estruturas simples, precisava de tempo para pensá-las, para percebê-las. E a música foi-se jazzificando desde aí.”
Terminados os Moeda Noise, Sei Miguel iniciou percurso em nome próprio.
contrato humano
“Existe um ponto de universalização permanente e acolhedor do indivíduo. É um assunto que foi sendo cada vez mais o assunto do jazz e não de outros territórios. Convém que esse assunto não se interrompa.”
Afastando-se dos prendimentos do músico num contexto de banda de rock, viu no jazz um universo mais vasto para a expressão tanto individual como colectiva em música. “Fui encontrando pessoas em graus diversos de envolvimento com a música, pessoas de horizontes diferentes que eram em certa medida horizontes lisboetas dos anos 80. Pessoas com algum conhecimento do jazz, pessoas com umas noções básicas de rhythm’n’ blues, pessoas ligadas à música erudita e completamente intuitivas na relação cultural com a música. Nunca fui exclusivo nisso. Nunca procurei tocar com os legítimos músicos do jazz.”
Enquanto a designada Música Moderna Portuguesa encontrava a sua primeira e última grande casa, a Ama Romanta de João Peste editava os três primeiros álbuns de Sei Miguel: “Breaker”, “Songs Against Love and Terrorism” e “The Blue Record”. Do legado discográfico dos Moeda Noise a esta documentação sonora, alguns esclarecimentos: “Comecei a gravar tarde. O facto de ter começado a gravar há anos não quer dizer que comecei cedo. Quer dizer que já não sou novo... só comecei a documentar quando achei que não era contraproducente, que era uma sobrevivência e que seria uma referência para os músicos que trabalhavam comigo e uma referência para os músicos que viriam a trabalhar comigo.”
Desse trio de discos, documento vivo do que Sei Miguel realizou na segunda metade da década de 80, surgiu um novo ponto de viragem. “Enquanto que o vinil era vinil, não tive aquela noção de produtor, se me posso exprimir dessa forma, de querer um disco determinado, pré-determinado, ‘aquela coisa assim’. Isso aconteceu nos anos 90, quando as coisas pioraram, não só para mim mas para muita gente. Foi o desmantelamento dos magros circuitos ‘underground’ e menos ‘underground’ que existiam. Foi o começo desta marcha triunfante que nos levou a um Portugal europeu, todo orgulhoso de poder criar porcarias ‘mainstream’ ao nível da porcaria ‘mainstream’ do resto da Europa. No começo dos anos 90 os [meus] discos começaram a ser mais do que meros documentos para serem efectivamente discos pensados, para serem objectos sonoros com um signifi cado em si. Ou seja, do ‘Portuguese Man of War’ [o quarto disco] em diante.”
Nesta época, para além do trombone de Fala Mariam, os músicos de Sei Miguel passavam jornadas de diferente duração no grupo, alguns acabando por o acompanhar durante algum tempo. “Tenho um contrato para com os meus músicos sempre em aberto e sempre activo. É um contrato profissional mas também é um contrato humano, e insisto nisso. É um contrato de partilha de conhecimentos e é uma jornada cujo fim gosto de pensar que não está nas minhas mãos, nem nas mãos dos músicos. Mas é um compromisso. Sei que se não funcionasse assim para com os meus músicos provavelmente o meu trabalho seria mais compreensível para terceiros. Por outro lado a música seria sensivelmente diferente e não para melhor.”
Ao longo da década de 90 que se seguiu a “The Portuguese Man of War”, com “Showtime” (1996), “Token” (1999), e, já neste século, com “Still Alive in Bairro Alto” (2002) e “Ra Clock” (2003), esta abordagem ao trabalho colectivo mantém-se. “No tempo em que um músico me frequenta há direcções no trabalho que são dadas por mim, mas que também são ditadas, procuradas, pela permanência, ou por determinado interesse técnico do músico. Ou seja, não tenho a mínima hesitação em mudar o plano de trabalho por razões que se prendem com as necessidades de uma pessoa. Eis uma característica que não é minha, que é característica em jazz. É a eterna disputa entre uma direcção com as suas prioridades, e por outro lado aquilo que são as necessidades particulares dos músicos que trabalham connosco. E só podemos avançar fazendo um compromisso entre as duas coisas. Essa dialéctica está no âmago de todo o bom jazz.”
tratado monumental
“The Tone Gardens” é a materialização de um longo período de preparação e feitura, natural progressão do que Sei Miguel foi realizando. São três peças (os “Gardens” 1, 2 e 3) que encerram em si três distintos ecossistemas, pertencentes a um percurso “aparentemente técnico, na verdade poético”. Trabalhando depuradamente a definição tímbrica, a exploração cuidada do espaço acústico, a dinâmica orquestral (de um quarteto), encontramo-nos perante aquilo que Miguel chama “acontecimento sonoro em bio-mecânica”. É edificada uma existência sonora tanto individual quanto colectiva, que, não permanecendo estática, leva a cabo uma narrativa, ao mesmo tempo que desenha, constrói e habita os seus alicerces. Miguel, no “pocket trumpet”, faz-se acompanhar de Fala Mariam, em trombone alto; de Rafael Toral, em ondas sinusoidais tratadas, feedback de amplificador portátil e ruído branco modulado; e de César Burago, em temporizadores de vária estirpe, de percussões à base de sementes, a um tamborim, a “dead radios” (rádios sintonizados numa nuvem de estática). Expostos ficam um [e]laboradíssimo trabalho de fraseado de cada músico, uma noção temporal e rítmica que transcende o compassamento passando a existir no domínio da acção arquitectónica e discursiva, com controlo absoluto de volumes. O desempenho de todos, quer enquanto instrumentistas pela total distinção de qualquer acontecimento musical prévio, quer pela hiper-condensação de ideias, quer pelo entendimento do sistema de Sei Miguel, é para lá de brilhante. Estamos perante um trabalho imaculadamente registado que, de tão transgressor e novo, existe na sua própria esfera de área infinita em forma, género e conceito. Um tratado monumental, complexo (mas também intuitivamente simples), de como o jazz, a música no geral, as ideias na órbita e o cósmico no eterno e infindável, nos continuam a oferecer concretizações de liberdade que nos parecem inimagináveis.
Que a história chegará a Sei Miguel, não há dúvidas. Que nós lhe cheguemos no seu tempo, em número condizente do feito, é uma questão cuja resolução é de total urgência.