Entrevista a Isabel Soveral / Interview with Isabel Soveral
2004/Jan/16
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O Ciclo "Morphosis"
Essa tendência foi sendo depois
alargada a aspectos como por exemplo os tímbricos. Por isso as Metamorphoses,
as Morphoses e as Anamorphoses... De onde é que o
nome vem? O nome vem, exactamente, de valorizar a questão da morfose.
Nós não sabemos onde estamos, porque foge e se transforma, e
não conseguimos agarrar porque o material é vivo. É uma
das características da minha música. É como se eu criasse
às vezes monstros, outras vezes não... mas o material que está
lá é vivo.
Há uma maneira de trabalhar que é muito orgânica e que
em todo o ciclo de Morphoses está muito presente. A própria
ideia musical está "intelectualizada" para isso. Ao serviço
dessa tendência, desse processo. E, portanto, eu vou trabalhar isso
assumidamente. O material evolui, como se estivesse quase vivo, de uma maneira
muito orgânica - mas, aí sim, já muito estruturado. Depois,
essa constante alteração tímbrica é alargada,
é muito influenciada pelo mundo electrónico que está
presente e não está, e que, quando damos conta, já passou.
Portanto, é alargada para outros parâmetros, e hoje está
presente na minha música, mesmo de orquestra.
Quando olho para a minha música
instrumental, por exemplo, para grupos mais alargados - como a obra Anamorphoses
VII - acho que está bastante presente o imaginário electrónico
no mundo sonoro. Sonoramente, sente-se que na obra há opções
que têm a ver com todo esse trajecto, de influência da electrónica.
Isso até quando nós falamos com um instrumentista, quando dizemos
ao percussionista, que está a tocar o xilofone, "no agudo, não
faça crescendo, não faça nada" - isso é electrónico.
E se fizer um crescendo, isso é como... como um crescendo numa mesa
de mistura, que sai e entra. Tem a ver com aspectos de expressão, do
músico, que vai mexer, vai trabalhar. O músico tira-lhe alguns
aspectos humanos e põe-lhe alguns da máquina, entre aspas. Tem
a ver com a própria escrita. Só que o músico, o intérprete,
tem que perceber, e às vezes não sabe, que da ideia inicial
e da ideia primeira, há essa vontade da minha parte, de que sonoramente
o mundo esteja bastante na fronteira entre o mundo electrónico e o
mundo instrumental.
O material das Anamorphoses, que inicialmente é bastante conciso,
um grupo de intervalos e de ritmos que são aplicados de uma maneira
- agora não vale a pena entrarmos nesses pormenores todos técnicos
- e começam a criar, fragmentos de material, e conforme as Anamorphoses
vão surgindo, eu já trabalho fragmentos que começam a
ter uma identidade própria. Aquela frase já não tem,
aquele material já não tem... É como se fosse outra vez
o "um" dos elementos de trabalho. É claro que a densidade
vai aumentando, porque é uma questão de escala. Eu vou aplicar
um processo de morfose. Vou aplicar uma norma, uma equação de
morfose, que aplica elementos curtos e simples a elementos complexos. E isso
acontece pelas Anamorphoses fora. Tudo isso também vem da electrónica.
Quando eu fui para estúdio, compor, quando eu fui para lá, aquilo
era um mundo completamente diferente. A própria aprendizagem de reagir
ao material, a maneira de estar do compositor é diferente... O tempo
de trabalho é diferente... Eu, durante toda essa fase, sentia-me como
uma escultora de sons. Sentia-me, quando entrava em estúdio, muito
mais como uma escultora do que como uma compositora... que está a esculpir
massas sonoras.
E tive necessidade - independentemente de todos os sons que eu faça
de início, em estúdio, começando pelo oscilador e indo
por aí fora até criar o som que quero, ou os "instrumentos"
que quero - de começar a trabalhar o material das Anamorphoses,
portanto comecei a transformá-lo em material já alargado. Então
comecei a ter uma maneira de trabalhar diferente, que veio influenciar toda
a minha música posterior. Isto é, hoje em dia, quando parto
para uma obra, quando tenho a ideia de uma obra, ou quase uma ideia de uma
obra, eu começo a trabalhar o material. E trabalho imenso material,
paredes de material, a casa cheia de material! É um trabalho que demora
imenso tempo, e que é difícil, é muito difícil.
É, para mim, a fase mais complexa do trabalho. Depois, quando tenho
todo esse material base, começo a escrever a obra. E então percorro,
formo a obra... vou lidar com esse material de uma maneira diferente. E ele
prolonga-se.
Há uma tendência para fazer ciclos. É claro, há
ciclos, porque eu produzo tanto material e depois quero fazer obras com ele!
Tenho que me realizar, realizar esse lado, em que é importante explorar
e potencializar. Daí essa tendência para os ciclos. E aliás,
nunca sei terminar um ciclo. Eu interrompo. A ideia que tenho é que,
para mim, mesmo na própria obra, se me disser assim: "mas como
é que você termina uma obra?"... Não me faça
essa pergunta, que eu não sei. Eu interrompo a obra, e depois é
claro que a minha experiência como compositora e técnica... sabe
como interromper, não é? Interrompe, dando-lhe um fim, naquele
momento. Mas para mim não fechou completamente a obra, a obra podia
continuar. Quando estreei as Anamorphoses VII, a primeira coisa que
eu disse ao Chagas Rosa, que estava ao meu lado, foi: "Bem, isto podia
continuar mais dez minutos..." Quer dizer, podia perfeitamente continuar!
Por vezes são circunstâncias externas ao processo, que não
têm nada a ver, como o tempo da encomenda que se tem que entregar, ou
não sei quê... portanto eu interrompo. Mas eu tenho necessidade
de continuar. E depois logo se vê como é que vai ser!
Vamos então pensar na própria palavra Anamorphoses.
Talvez isso ajude a explicar... Imagine um objecto que está deformado.
Quando se olha para ele, não se tem a certeza exacta do que é.
Ele está desfocado, está deformado... Depois colocamos um espelho,
com um corte, e é esse corte que se faz no espelho, é esse traço,
é esse corte no espelho que nos vai corrigir o objecto e nos vai dar
o objecto perfeito. Isto é o conceito de Anamorphoses.
Eu não sou da Física, portanto explico isto e lido com isto
de uma maneira poética. Mas é esta a ideia das Anamorphoses,
em que a relação entre o instrumento e a electrónica...
Normalmente, quando ouvimos uma peça para electrónica e para
instrumento, temos a tendência para pensar: "Aqui está o
instrumento e aqui está a electrónica que está a contracenar
com este instrumento". Comigo, isso nunca se processou dessa maneira,
a não ser quando não era conseguido, não é? Isto
durante a fase das Anamorphoses, porque depois altera-se, a partir
da sexta obra do ciclo. Mas na maior parte, o que se processou, foi que eu
queria que para o material sonoro, todo ele, não se tivesse uma noção
clara onde é que ele estava - se na electrónica, se no instrumental,
ou na fusão dos dois, e qual o momento. Há momentos com mais
luz, porque o material aparece mais transparente, e momentos em que ele está
como se estivesse a transformar. É aquela noção do "estar
vivo", de que eu lhe falei antes, que é o estar a transformar-se
ali na sua frente. Trata-se de uma verdadeira metamorfose, no sentido de se
estar a transformar de uma coisa para outra. E isso eu obtenho, exactamente
na relação muito próxima entre o que é que o instrumento
acústico e os instrumentos electrónicos dizem. Portanto, o que
é que cada um diz. E está muito próximo, funde-se e por
vezes não se tem noção, não se consegue separar.
Isso está muito presente em todas as Anamorphoses, especialmente
a partir da Anamorphoses VI, para saxofone e electrónica,
que é a primeira obra em que esse processo começa a ser diferente.
Porquê? Porque antes, a fita, ou a electrónica, tinha sempre
uma atitude muito instrumental. Para mim, é como se estivesse a criar
instrumentos imaginários, no sentido em que nós podemos imaginar
o músico a tocá-lo. A partir da Anamorphoses VI, por
vezes, esse aspecto está tão presente, que nós imaginamos:
"Mas isto é quase... Isto não é um violino? Isto
é quase um violino. Isto é o Buchla, isto é um sintetizador
analógico". Só que nós conseguimos imaginar um violinista
a fazer um staccato. Eu pretendo que isso desapareça a partir das Anamorphoses
VI. A peça de saxofone e electrónica é a primeira
que tem outro conceito por trás. Consegue-se perfeitamente perceber
a atitude da electrónica, a atitude do instrumentista e do instrumento
da música escrita. É, portanto, absolutamente diferente. Eles
estão próximos, sim, porque a electrónica é quase
como que uma sombra.
Eu comecei a fascinar-me pela ideia da sombra. Por vezes, aquela ideia do
estar também próximo, mas já não é a mesma
coisa, é uma projecção do objecto principal numa circunstância
em que a luz é diferente, em que isto é assim... Portanto, eu
comecei a trabalhar a electrónica de outra maneira, ainda de uma maneira
muito experimental em Anamorphoses VI. E agora tenho seguido essa
linha.
O discurso instrumental é muito claro. E esse discurso não interfere
com o da electrónica, mas há uma presença desta a envolver,
como se fosse uma pele, a envolver o que é apresentado pelo instrumentista.