Entrevista a António Ferreira / Interview with António Ferreira
2003/Aug/21
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Como se deu a sua aproximação à Composição?
Não sei quando é que me tornei compositor.
O processo foi surgindo, não direi naturalmente, mas ao sabor da vida.
Posso dizer, muito claramente, que por alturas de 1981, senti uma vontade,
aliada a uma grande curiosidade, em avançar para uma ideia de composição.
Eu costumava ir de férias com amigos à Holanda, e em 81 adquiri
um disco editado pela INA-GRM do Bernard Parmegiani, o De Natura Sonorum,
ainda em vinil. Lembro-me que quando vim para Portugal e o ouvi, não
percebi nada do que era aquilo. Não fiquei irritado, fiquei completamente
intrigado e provocado, a perguntar-me sobre o que aquilo era.
Havia uma intuição de que havia ali uma ordem, uma ordenação,
uma vontade de composição, mas aquilo era completamente diferente
daquilo que eu achava que era a música. Pretensiosamente, como todos
os jovens com 19 ou 20 anos, achava que já tinha ouvido muita coisa
e que já conhecia as coisas mais avançadas e mais "fora".
Só que aquilo era completamente diferente. Foi a partir daí,
que se iniciou o difícil começo: buscando os livros nos cantos
mais esconsos da Buchholz; ou tentando, cada vez que alguém ia ao exterior
de Portugal, pedir um ou outro livro; lendo bibliografias de livros, como
um pequeno livrinho de Michel Chion: La Musique Électroacoustique,
que surgiu na colecção Que sais-je? da Presse Universitaire
de France em 1982. Esse livro ajudou-me imenso, porque tinha recensões
de muitas peças que se fizeram até 1980. Tinha bibliografia,
tinha indicações discográficas, e então comecei
lentamente a achar "que engraçado, há aqui uns senhores
que utilizam um conjunto de maquinaria, ou um conjunto de objectos que eu
pensava que tinham uma utilidade um pouco mais funcional, ou um pouco mais
reprodutiva". Porque o que eu conhecia da música, de facto, era
da música mais de cariz popular, rock, ou então da música
dita mais académico-clássica, mas supostamente essa tinha outra
maneira de ser executada mas que depois utilizava as técnicas do pop
e do rock para fazer gravações e discos. Aqui havia um campo
em que parecia que os meios utilizados, não eram simplesmente os de
reprodução, mas sim meios de geração ou criação.
Este foi o meu primeiro salto paradigmático.
Tive um choque ao perceber que havia ali uma estrutura, e que ela não
era um coisa antiga. A estrutura existe sempre, eu acho isso inescapável,
de uma maneira ou de outra. Evidentemente, mudam-se as regras e mudam-se as
maneiras expressivas da música, e essa é que é a questão.
Ali, o que eu sentia, era que havia estrutura, havia regras que eu não
conseguia ouvir porque a superfície da música era completamente
opaca para mim. Foi esse salto que a pessoa que tinha feito o disco, neste
caso o Bernard Parmegiani, já tinha feito, e eu sentia que também
podia fazer. E ao fazer esse salto, talvez eu alargasse a minha maneira de
ouvir e de escutar, e melhorasse. É que eu tenho um certo conceito
do perfeccionismo individual da pessoa, em termos individuais, não
em termos sociais, que acho que só dá desastres e chatices.
Portanto, pensava que podia talvez avançar mais, alargar mais.
Como surgem as ideias para a Composição?
Pois, se eu soubesse... Isso agora, é essa mesmo a minha questão.
Vamos fazer assim: quando em 1998 eu pude relançar-me novamente na
composição, foi precisamente por uma questão técnica.
Os computadores Macintosh tornaram-se suficientemente rápidos para
eu poder de certa maneira recriar o estúdio da Holanda em casa, tal
como eu o imaginava. E de facto foi isso que eu fiz, e as minhas primeiras
peças, que não existem, ninguém ainda as ouviu, desapareceram,
e têm o tal sabor dos anos 80. Depois fiz o que achei que devia fazer,
foi ouvir o que se fazia actualmente, em vários campos, e descobri
que estava um pouco mudado em termos de sonoridades e atitudes. As coisas
estão mais elásticas, mais frescas. Então, foi um certo
tempo de reaproveitar, porque neste campo da electroacústica a única
maneira que eu vejo de uma pessoa aprender é ouvindo, ou então
por exposição. Não há nenhuma maneira formal,
podem fazer-se descrições, com melhores ou piores metáforas,
mas é simplesmente por audição. Não há
outra maneira. É ouvir, dezenas e centenas e centenas de CD's até
começar a entender como se faz o encadeamento dos sons. Como é
que fazem a transformação de A para B, quais são as ligações
entre um som e outro, como é um som com uma imagem-metáfora
e outro som com outra imagem-metáfora passam de um lado para o outro...
Comecei aí a perceber, a aplicar novamente as técnicas, e essa
é a minha situação actual. Vejo agora que é um
processo que eu podia ter continuado, mas estando eu numa situação
precária - não estou ligado a nenhuma instituição,
infelizmente não tenho encomendas... Porque quando uma pessoa tem encomendas
regulares acaba por entrar num sistema para produzir material - eu posso arriscar,
porque não tenho nada a perder. Portanto, não vou ficar simplesmente
onde estou. Já tinha o meu sistema montado e poderia fazer agora a
minha carreira, mas não.
Há também um contributo fundamental de uma reflexão técnica
e estética que nos marca e que aponta caminhos. Há um conjunto
de textos que eu gostei bastante de ler, do compositor neo-zelandês
Denis Smalley, em que ele elabora um pouco as teorias do Pierre Schaeffer
e de outros, às quais ele dá o nome de espectromorfologia. Ou
seja: morfologia é a forma, e os espectros são os sons. Portanto,
ele achava que os sons têm uma forma dada pelo seu espectro, pela sua
composição. E essa forma, essa transformação de
forma, é uma das maneiras de dar progressão a uma estrutura
(neste caso da música electroacústica ou acusmática)
de maneira a poder fazer a progressão, de modo a fazer contrastes,
de ter pontos de paragem. Portanto, dar uma estrutura e, de facto, criar uma
forma. Esse foi um campo que vem já desde os finais dos anos 80 mas
que tem sido, não direi validado, que não é bem assim,
mas que tem sido elaborado por um conjunto de compositores. Começaram
pelo Jonty Harrison, que também era contemporâneo e colega de
Denis Smalley e, posteriormente, pelos alunos deles - principalmente os ingleses:
Peter Stollery, Natasha Barrett, Andrew Lewis, que agora já estão
todos bem estabelecidos. Todos eles criaram um conjunto de peças electroacústicas,
que eu acho que têm uma poética e uma força que eu ainda
não tinha ouvido desde que ouvi o primeiro disco do Bernard Parmegiani
em 1980. De certa maneira, esse tem sido o campo onde eu me tenho concentrado
para reaprender e ver como é que eu poderia fazer isso. Acho que isso
eu já consegui, quer no aspecto técnico, quer até no
aspecto estético, de como ligar os sons e de como os ordenar, acho
que mais ou menos consegui. Agora, por mim, acho que devia ultrapassar um
pouco esse aspecto.