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Estigma
Estigma é uma obra que, como o próprio nome indica, é
uma chaga. A primeira coisa que acontece com Estigma, e que me motivou,
foi uma espécie de catarse na minha vida que eu tive que ultrapassar
– motivada precisamente pelo falecimento do meu pai. Portanto, entrei
num período difícil da minha vida, um período complicado,
e a única maneira que eu tive de me libertar de toda essa dor foi, de
facto, escrever. Coincide com essa altura a ocorrência de uma conversa
com o meu querido amigo Lopes e Silva sobre querermos fazer obras para guitarra,
e ele quer muito ter um repertório meu para guitarra. Foi o início
de uma colaboração que continua. A ideia do Estigma,
de uma dor que é nossa mas que a gente não pediu, é uma
dor que nasce de nós – a ideia da dor mesmo, do sofrimento, da
chaga – e, simultaneamente, a ideia da própria dor da guitarra,
do estigma que é a sua própria boca. Como se a guitarra fosse
uma mão que tem um estigma na sua própria boca – a ideia
da guitarra também estigmatizada. É claro que aí está
presente uma outra coisa importante, que é uma imagem franciscana –
a imagem da figura de S. Francisco, do homem com uma imagem universal que consegue
criar uma reforma mental no seu próprio tempo, mas que ao mesmo tempo
é um indivíduo capaz de se despir de tudo, até da sua própria
roupa, pelo seu ideal. Portanto, esta ideia é a ideia do estigma, da
dor, mas é a ideia da vitória sobre a dor. É também
um pouco isso. É uma obra pontilhista, completamente pontilhista –
eu diria que é uma obra super serial, em que a própria dimensão
do tempo de espera está prevista em várias possibilidades. Ou
seja, a minha primeira ideia era que o ataque da nota pudesse ser acutilante
ou suave, e que fosse capaz de fazer a pessoa mexer-se do lugar. Ao fazer, por
exemplo, um pizzicato de Bartok na guitarra, que é uma coisa extremamente
dura, a ideia que a gente tem é a de que a guitarra se partiu... Falo
de todo esse lado, mas do outro lado… Há os ecos do outro lado,
como um espelho de várias faces. Existe uma coisa, neste momento, que
é uma dor, mas, por outro lado, uma certa eternidade que se dissolve.
É um pouco essa a ideia da peça e por isso se torna muito complicada.
Há um problema complicado, que é a dominação do
tempo. Eu controlo todos os gestos, a multiplicidade de gestos, e digamos que
faço um catálogo de linguagem: trémulos, pizzicatos, copos
nas cordas, rasgados... Enfim, um conjunto de coisas que se têm que fazer,
digamos assim. Só que, depois, todo esse material e a sua organização,
está indissoluvelmente ligado aos intervalos. Qual é a ideia?
Por exemplo, o arpeggiato: temos uma referência, um “estigma”
de outra maneira, que é o arpeggiato à maneira de Tárrega.
Imaginemos o Tárrega com 8 intervalos que ele nunca utilizaria e com
prevalência de notas no arpeggiato. Nós sabemos o que
é um arpeggiato, mas nunca é aquele que estávamos
à espera. É essa a ideia do espectador ou do ouvinte, imaginar
que está a ouvir uma coisa que conhece mas “mal tocada”,
se é que podemos dizer assim, ou tocada de outra maneira. É de
notar que essa obra também tem influência de um trabalho que eu
fiz com o Ligeti, da análise dos Monumente, para piano, que tem notas
mais fortes em simultâneo nos cinco dedos. Ou seja, tocar mais forte com
os cinco dedos – é uma espécie de nova roupa na técnica
do piano, uma coisa que à partida parece contranatura. Mas quando eu
ouvi o instrumento tocado como se o pianista se tivesse enganado e em vez de
tocar a tecla tivesse tocado na madeira… É um elemento de que não
se está à espera na técnica do piano. Utilizo sempre isto
da mesma maneira na guitarra, procurando encontrar não só efeitos,
como por exemplo, harmónicos junto ao ponto, no outro lado. É
como se a gente estivesse junto ao ponto e fosse aqui encontrar um harmónico,
com outro timbre completamente diferente. Portanto, há um trabalho de
pesquisa profundo, que foi feito assim, a par e passo, com as minhas ideias
e sugestões. Fui então construindo a gramática da peça,
falando com o Lopes e Silva – “faz isto, faz aquilo, gosto mais
disto, gosto mais daquele” – e, portanto, todo este trabalho foi
um trabalho vivido e pensado. Claro que depois aconteceu um problema: como o
Lopes e Silva conhecia muito bem a peça, a sua interpretação
é fantástica. Eu diria que a interpretação que está
gravada e que foi feita por ele é “a interpretação”.
Outros guitarristas fizeram a peça, mas já não foram capazes
de ter o “sentido sem limites” daquele espaço como uma recta
sem cortes, uma coisa que está situada no infinito – e é
o que aquilo é, uma recta sem cortes. Não é um segmento
de recta, é uma recta sem ser segmento. Portanto é uma coisa que
nos ultrapassa, e nós não conseguimos dominar uma coisa que não
nos pertence. Uma recta sem segmentos é o infinito, por isso é
que temos que pôr o segmento.