Entrevista

Entrevista a Carlos Zíngaro / Interview with Carlos Zíngaro
2003/Jul/26
Versão Áudio | Versão Texto
Registo Videográfico
Edição
Observações
Acesso
1

ENTREVISTA A CARLOS ZÍNGARO (Versão Integral)

 

 

Carlos, gostava que falasses um pouco das diversas situações que enfrentas, porque é constatável que, por exemplo, quando compões para cena, tens uma utilização da electrónica mais directa, que não passa necessariamente pelo violino enquanto interface. Em palco, numa área mais improvisada, já isso é um facto. Eu queria que me explicasses um pouco como funcionas consoante cada uma das perspectivas em que te situas face ao trabalho da composição.

 

 

Eu começaria por dizer que me é difícil separar ou criar essa dicotomia entre improvisação e composição, porque na realidade quando estou a improvisar, principalmente a solo, estou a compor. Todo o meu trabalho de composição, ou quase todo, partitura, etc., é baseado inevitavelmente, como tantos outros compositores, no tentar, no experimentar, na improvisação. A diferença está em que a improvisação, como tu sabes, é feita em tempo real, não dá para emendar, não dá para reciclar, não dá para reaproveitar determinados elementos, enquanto que a composição é exactamente isso. O que me agrada nesse lado composicional a que se convencionou chamar de improvisação, é essa relação de risco, de espontaneidade. É um facto que desde há muito que só muito pontualmente, trabalho com partitura, com pauta para outros músicos. Porque não me sinto um compositor de obra, o que nunca me preocupou, porque a minha obra está na interpretação de mim próprio.

 

 

 

Portanto só usas partitura quando compões para outras pessoas?

 

Justamente. Mas não só. Pontualmente, quando faço determinados solos, tenho a necessidade de alguma estruturação para uma maior definição de percurso. Essa estruturação não passa necessariamente por uma partitura em termos tradicionais, de notas na pauta, passa mais por uma partitura gráfica que me permite estabelecer determinadas regras dentro desse percurso.

 

O que acontece sistematicamente ou quase sistematicamente, é que no decorrer do concerto, neste caso a solo, abandono a estrutura porque o trabalho ao vivo tem a ver justamente com determinados reflexos ou com feedbacks do espaço em que estou, do público que está presente, das reacções, etc. E isso é importante para mim. Por isso, abandono muitas vezes a estrutura para trabalhar com a macroestrutura que é o espaço – físico, arquitectónico, acústico – enquanto espaço público em que estou inserido.

 

 

 

Mas nessas situações em que utilizas partitura para outros músicos que não tu, tu não segues a partitura também?

 

Há muito tempo que não o faço. E a utilização sistemática da partitura para outros músicos, também não. Passou apenas para a música de cena, onde era realmente necessário ter um determinado tipo de instrumentação que obrigava inevitavelmente os músicos presentes à circunstância de serem músicos leitores e intérpretes; logo, era necessário estabelecer uma partitura em termos perfeitamente tradicionais.

Quando toco com músicos lá fora, raramente escrevo porque são músicos de tal forma extraordinários e tão bons improvisadores-compositores do seu próprio léxico, que me sinto privilegiado por estarem a dar um contributo pessoal que, na maior parte das vezes, transcende em muito o que eu poderia escrever ou conceber. Assim, sinto que é quase aberrante escrever uma partitura, por muito interessante que seja.

 

Na música de cena, é um facto que há músicas e músicas. Eu costumo quase sempre fazer uma destrinça mais ou menos clara entre teatro e dança. Infelizmente, a grande maioria das vezes em que compus para teatro em Portugal, a música acaba por ser uma música “de sistema”, funcional. Funciona como pano de fundo, para as mudanças de cena, as entradas, as saídas, etc. Por isso transforma-se em algo sistematicamente ilustrativo e, porque não, redundante, porque serve apenas de reforço a uma acção que já lá está em termos de movimento ou fala. Apesar disso, é evidente que o faço por questões de sobrevivência económica. E o facto é que aprendo sempre de qualquer forma.

 

De facto, é muito mais interessante a composição para dança do que para teatro que se faz cá (o teatro declamativo). As outras componentes assumem um papel meramente de décors, de acompanhamento daquilo que é principal: o texto em si, o dizer do texto e a acção. Na dança, a presença do som, da música, da composição, acabam por ter uma dimensão completamente diferente e, na maior parte das vezes, não é de modo nenhum ilustrativa.

 

 

E as marcações também não servem como condicionantes, as marcações da própria coreografia?

 

Devo dizer que isso raramente acontece, ou seja, raramente se entra numa situação em que os bailarinos, a companhia ou o grupo já está marcado ou coreografado desta forma e em que é necessário que haja um acompanhamento musical, com um tipo de rítmica e movimento. Inevitavelmente, acabo por encaixar aí mas felizmente não é muito frequente porque quando isso acontece é bastante perturbador para mim. Aliás, os coreógrafos que me contactam e que conhecem o meu trabalho, dão-me uma abertura de composição que me é particularmente grata, porque tenho a possibilidade de experimentar a minha maneira de “coreografar musicalmente” aquilo que me é dado a ver, a sentir e a perceber o todo do espectáculo a partir do verdadeiro conceito do coreógrafo. E eu entendo isto como se fossem várias “camadas” de leitura de um espectáculo (porque na Nova Dança, o movimento também pode incluir o texto, a banda sonora, as luzes, o vídeo, etc.). Tento não ser redundante, não ser ilustrativo. Procuro justamente ter a minha própria leitura e compor a partir do meu modo de ver, perceber e sentir aquele objecto.

 

 

Mas, composicionalmente, quando esse trabalho não passa pela partitura e não passa pela composição imediata, no caso da improvisação, como é que compões, como é que é o teu trabalho composicional? É feito com as tecnologias, utilizando suportes?

 

É um facto que desde que a tecnologia tem evoluído e se tem tornado mais acessível, é fantástico poder utilizar esse material. Por exemplo, uma das coisas que sempre me fascinou desde os tempos da música concreta é a manipulação do material sonoro. Nesses tempos, eram quilómetros de fita cortados aos bocadinhos, colados e montados, etc., o que se tornava bastante complicado. Hoje em dia, com a vantagem da tecnologia, dos computadores, da informática musical, dos discos rígidos, etc., é possível manipular o material ou o objecto sonoro, quase como um material plástico. A ideia de esculpir o som é uma ideia que me agrada.

 

“Agarrar” numa nota, num som, andar ali à volta até conseguir um outro material é, para mim e hoje em dia, muito mais eficaz. Ajuda muito mais no trabalho de composição do que estar com papel, caneta e lápis. Não quer dizer que não os utilize para assentar ideias, preparar estruturas, definir timmings, etc. Mas, de qualquer forma, é realmente a informática musical que me dá ensejo a experimentar novos sons. Não vou ter de ir à procura de um instrumento, mas sim de um timbre específico ou de outras sonoridades partindo muitas vezes desses instrumentos reais. Muitas vezes o que faço é utilizar um violino como primeira matéria de um trabalho posterior dentro desta base.

 

 

Mas não é isso o que acontece no trabalho de composição de cena, em que geralmente tens uma utilização mais directa da tecnologia…

 

Mais para teatro, lá está. Porque talvez haja um maior “concretismo” (se posso utilizar a expressão)… mas às vezes é necessário recorrer a chavões. Por exemplo, numa cena em que um Rei entre em palco, podem ser necessários uns trompeteiros para darem entrada ao rei, que é uma daquelas coisas clássicas. É evidente que, muitas vezes, só tenho acesso a um trompete ou a um cornetim e então terei que ser muito mais definido. Se quero vários, uso a tecnologia, mas tem sempre que ser dentro daquele timbre, dentro dessa côr ou então utilizando samples. Aí utilizo mais a tecnologia, mas uma utilização que faço como se estivesse a tocar um piano, só que com outros sons. Posso também ter a gravação de instrumentistas, que depois trabalho e monto para a composição final. No caso da dança, ou pelo menos no tipo de trabalho que tenho feito, tenho um leque completamente alargado. Sou eu que escolho o tipo de cores que quero utilizar, e aí aproveito outras combinações, outras sonoridades e outros timbres.

 

 

E o que é que achas que tem maior peso nesse trabalho composicional, sobretudo o que fazes para cena em termos de sons? São mesmo os sons experimentais ou preferes passar para lá, ires buscar sons variados, de origens e fontes variadas? O que é que tem maior peso?

 

Depende do contexto. Na dança, sobretudo, como tenho maior liberdade (liberdade absoluta na maior parte das vezes), procuro aquilo que me interessa, que quero aprofundar e experimentar, dentro daqueles contextos.

 

 

Então não é necessariamente uma abordagem instrumental no sentido de utilização de sons instrumentais definidos?

 

Exactamente. Quer dizer, a abordagem acaba por ser instrumental com os instrumentos que eu crio. De uma maneira geral, as pessoas costumam preferir (e sobretudo os encenadores) uma situação mais clássica, em que se percebe quais os instrumentos usados. São aqueles instrumentos, e ninguém se ilude porque estão ali para servir uma função. E eu tento sempre perverter isso. Mas há alturas em que é necessário porque apelam a referências mais vastas, mais antigas e mais perceptíveis pelo grande público.

 

 

(Voltando agora ao princípio)

 

A ideia de compor, enquanto obra, enquanto objecto acabado, nunca me interessou muito. Talvez esteja completamente errado, talvez porque desde muito cedo tenha começado por ser intérprete de mim próprio  ou porque a minha aprendizagem académica da Música começou muito cedo e a abordagem que se fazia na altura à música erudita poderá ter-me traumatizado ou “violentado”: ela definia o que devia ouvir-se, o que tocar e como fazê-lo. Isso talvez me tenha afastado desse percurso e determinado o que faço agora desde há alguns anos. Daí que a ideia de obra acabada, ou de obra, foi sempre para mim uma ideia alheia. Tenho uma dificuldade em aceitar facilmente um disco, porque para mim a música é, dentro destas características, uma objecto ao vivo, em tempo real. Para mim a partitura é, neste caso concreto, como um disco. É um registo sonoro.

 

 

Portanto, resultado e não ponto de partida?

 

Absolutamente. Para mim, é essa situação do momento que é importante. E talvez o mais importante seja o work in progress, o processo de trabalho, do que propriamente a obra final ou o objecto final.

 

A tua abordagem da tecnologia e dos suportes informáticos ou outros difere também consoante o tipo de trabalho que estás a desenvolver. Por exemplo, a utilização que fazes da electrónica, dos dispositivos electrónicos, quando utilizas o violino para disparar os sons (em situações mais de composição imediata) é bastante diferente da tua utilização de electrónica na composição de cena? A que é que se deve isso?

 

Compor é para mim improvisar com a possibilidade de emendar. Quando estou em estúdio a trabalhar música de cena, seja ela qual for, estabeleço uma partitura, seja ela virtual ou real, e depois vou apagando, reutilizando, e deixo para o lixo o que não interessa.

 

 

Tens o caso do Cage of Sand, que é um disco que vai sair agora, um disco de estúdio, mas em que essa diferença acontece. Porquê? Porque aí também tiveste a possibilidade de apagar e de emendar…

 

Mas muito pouco. Não o considero um disco de estúdio. É um disco gravado ao vivo, com outros dois músicos.

O Cage of Sand é muito mais composição do que improvisação. É a tal situação dicotómica. Porque ao chegar a um palco, ter o público à frente e fazer um solo, mesmo que seja estruturado, há sempre a liberdade de alterar a estrutura, até porque há contingências que o determinam.

A acústica de um espaço, por exemplo… A maior parte das vezes não conheço os espaços antes de lá chegar. Portanto, há uma quantidade de condições que determinam que aquilo que eu eventualmente premeditei, não acontece. Depois, há o lado imediato, de uma certa espontaneidade, que dá um outro tipo de interpretação, um outro tipo de fulgor e, inevitavelmente, um outro tipo de música.

 

 

Não poderia ter acontecido, tal e qual como ouvimos no disco, se tivesse sido gravado no palco?

 

Era muito difícil, apesar do material usado ser igual ou muito próximo. Mas em termos do trabalho de manipulação que fiz para esse disco e apesar de ter deixado a maior parte do material em bruto, não poderei reproduzi-lo da mesma forma ao vivo.

 

 

Mas podes fazer numa gravação feita ao vivo…

 

E manipulá-la. No fundo foi o que fiz aqui. A diferença está que em vez de estar cinquenta minutos ou uma hora a tocar um concerto do princípio ao fim, e depois aproveitar o que aconteceu, aqui não. Toco três minutos, vou lá abaixo, preparo um café, atendo o telefone, depois estou dez horas seguidas a trabalhar. Portanto, há toda uma disponibilidade e uma interrelação com os materiais que é completamente diferente. Até mesmo na maneira de os ouvir. O ouvir e o re-ouvir. Usando a metáfora da escultura… lima-se aqui, põe-se um bocado mais de barro acolá. Ao vivo, é uma situação sem rede.

 

 

Esse disco é portanto mais “composto” do que a composição imediata feita no palco?

 

E também mais conceptual. Eu podia ter optado por fazer um disco como se fosse ao vivo. Instalo-me aqui e determino um solo de 50 minutos, com várias peças. Toco do princípio ao fim e o que ficar gravado ficou e não se mexe. Só que essa é uma situação é falseada, porque na realidade estou a tocar ao vivo, em tempo real, mas não estou a tocar ao vivo no sentido em que há um outro espaço e outras pessoas. Há outros elementos no tipo de abordagem que utilizo que inevitavelmente são importantes porque me afectam positiva ou negativamente. Alguém a tossir na terceira fila pode não ser profundamente traumático, mas é um elemento sonoro que interfere. Aqui isso não acontece. Pode eventualmente tocar o telefone. Mas quando gravo, desligo o telefone. Ao vivo há uma outra tensão, uma outra maneira de sentir o espaço. O trabalho de estúdio é um trabalho de laboratório, onde me posso dar ao luxo de ter tempo para experimentar e fazer grandes asneiras, o que não acontece ao vivo. As asneiras vão para o lixo, ou no dia seguinte posso ouvir aquilo que achei ser uma asneira na véspera e achar que é fantástico, que se pode aproveitar. Portanto, é esse tipo de jogo com os materiais que é diferente.

 

 

Nesse trabalho de estúdio que realizas, que é o mesmo que dizer nesse trabalho de composição que realizas, abstrais-te da tua condição de violinista ou isso é difícil?

 

É muito difícil.

 

 

Ou não queres que isso aconteça, tentas abstrair-te mesmo e achas difícil, o que é que se passa? Porque é a tal questão: há um trabalho que desenvolves directamente com a tecnologia, directamente com o estúdio, e há o outro trabalho que passa precisamente pela tua condição de violinista.

 

Costumo dizer que quando estou a compor para mim próprio, para violino, estou a utilizar uma prótese com a qual tenho uma relação de amor-ódio, apesar de todas estas décadas. Faz parte de mim. Isto talvez soe a um certo romantismo serôdio mas é um elemento que conheço bem, que quero conhecer melhor; de facto, quase nasci com ele, aos 4 anos já tocava. Mas quando se usa outros materiais, é como se estivesses quase a utilizar outros músicos, ainda que obviamente não seja a mesma coisa.

 

Especificamente em relação à tecnologia… todos os dias aparecem coisas novas, há upgrades sistemáticos e uma pessoa tem de estar sempre a fazer uma readaptação e uma reavaliação daquilo que parece um dado adquirido mas que não o é, no fundo. Daí o paralelo que estabeleci em relação à utilização de outros músicos; porque hoje podemos ter um trombonista com determinadas características (dentro da interpretação, entenda-se) e amanhã, para a mesma partitura, temos outro. O som é diferente e a maneira de tocar também. É esta readaptação dos materiais que utilizo na tecnologia. Já no violino é diferente.

 

Lembro-me que nos anos 70 tive de fazer uma série de peças para teatro onde tive de compor para trompa, trompete, clarinete, clarinete baixo, fagote, piano, guitarra, contrabaixo e onde também tocava duas ou três peças (aliás, foi uma peça para teatro e para um filme, em que tinha mais ou menos uma instrumentação idêntica). Nesse processo de composição nem sempre tinha acesso a um piano e não tinha nenhum teclado em casa. Havia momentos, (principalmente para o filme) em que era urgente ter-se o material pronto;  ficava até às 4 da manhã sentado na cama a compor com o violino em várias partes, de um quarteto de sopros, de piano, etc. Foi difícil e muito perturbador. Depois constatei que, em algumas peças, a linha, a construção melódica, o paralelismo da harmonia e alguma forma derivavam do violino...

 

 

“Violinocêntrico…”

 

De facto, aquilo tinha uma referência do instrumento. Se se tem um piano, o leque de possibilidades é maior, daí ser o privilegiado entre os compositores. Com o violino, por seu lado, podem fazer-se cálculos matemáticos de harmonias, conjugações, vozes, ritmos, mas não é a mesma coisa. Isto serve para explicar que, apesar de tudo, até nessa situação o violino era o meu instrumento.

 

 

Mas actualmente, tens precisamente uma espécie de dupla personalidade enquanto músico. Por um lado, és um violinista, acústico na maior parte das vezes, sobretudo em situações de improvisação, em situações de concerto, e depois tens o outro lado, em que também utilizas a electrónica. E, necessariamente ou não – tu dirás o que pensas sobre isso – aquilo que tu fazes numa abordagem ou numa área e noutra, é diferente, distingue-se de alguma forma. O que é que tu pensas sobre isso? Ao vivo e não só…

 

Isto tem muito a ver com a tecnologia e com as opções que são tecnologicamente possíveis. Nunca abdiquei do violino e do som acústico do violino, por muita electrónica que estivesse presente. Há muitos anos atrás tocava violino eléctrico, que não tinha um som acústico (e está ali guardado, nunca mais lhe mexi). A madeira, o acústico do instrumento, sempre teve um papel muito importante para mim.

 

Acho que posso talvez dividir a coisa mais ou menos vagamente em quatro fases da utilização do violino com a electrónica. A primeira fase era muito primária; na altura, estabelecia fundos, texturas, espaços sobre os quais tocava com a electrónica (ao vivo e pré-gravado ou pré-programado). Era muito mais um aspecto composicional do que posteriormente, até porque tinha de pré-programar ou pré-estruturar determinadas peças sobre as quais ia tocar. Acabavam por ser peças para violino e electrónica ou banda magnética. Eram peças rígidas, determinadas, mesmo quando utilizava situações de sequência que podia interromper ao vivo. Mas de qualquer forma, essa sequência estava pré-estabelecida.

Ainda posso recuar a uma fase mais primária: a utilização de pedais, efeitos e manipulação do som, de que estava a querer fugir desesperadamente na altura. Depois surgiu uma fase que tem a ver com aquilo que eu já referi sobre a evolução tecnológica e que me permitiu, com um sistema Pitch-to-Midi, passar a ter uma interacção muito mais próxima e mais directa com o violino. Essa tecnologia permite, ao tocar no violino, determinar sequências pré-programadas ou não; disparar, “triggar” samples, síntese; e mais tarde, quando se começa a utilizar o computador pode manipular-se qualquer coisa que eu fizesse com o violino. O termo Pitch-to-Midi, significa a transcrição dos parâmetros de velocidade e altura para código Midi. E isso entrava em sequenciadores, computadores, samplers, sintetizadores e ajudava a criar uma quantidade de situações que não passavam pelo efeito e que interagiam, eram interactivas. Todavia, essas coisas tinham de estar pré-programadas em termos do Midi, não todas, mas pelo menos algumas. Hoje em dia, posso fazer algo idêntico com o áudio, com o som do violino. Foi justamente o que fiz no Cage of Sand. A manipulação do que faço em tempo real é graças à tecnologia, graças ao computador e aos programas que utilizo, em que quase abandonei qualquer som que não fosse originado num instrumento, neste caso no violino. E todos os sons do disco têm como base o violino, sons que toquei e manipulei em tempo real ou que “samplei”.

 

 

Mas houve uma questão que não me respondeste: sentes que a música, ou que as músicas que fazes com e sem electrónica são diferentes…?

No sentido em que te moves inclusive em espaços diferentes?

 

São bastante diferentes… mas continuo a ser eu. E uma peça para violino solo é apenas aquilo, é apenas o violino.

 

 

Mas mesmo com outros músicos, por exemplo aquilo que fizeste com os Voicecrack e vai sair agora em disco, ou aquilo que fizeste com o Mats Gustafson ou com a Joëlle Léandre…

 

Mas aí eu não estou a ser compositor autónomo, é diferente… aí estou a ser compositor com outros compositores.

 

 

Com os Voicecrack também?

 

Exactamente. Há uma relação completamente diferente porque, na verdade, quando estou a tocar a solo, quando preparo um concerto a solo, só dependo de mim.

 

 

Mas o que eu quero dizer é que a utilização da electrónica...

 

A utilização da electrónica dá-me outros parâmetros com os quais tenho que contar. Tenho que doseá-las e aí a situação de composição tem outro tipo de risco ou outro tipo de abordagem, de conceito. Com a tecnologia há falhas e eu vou aprendendo a trabalhá-las e a utilizá-las.

 

 

Portanto, sentes mesmo que estás a trabalhar em duas áreas diferenciadas, uma de improvisação acústica de uma forma mais convencional, se quiseres chamar assim, e uma outra, que está marcada de facto pela utilização, ou por determinado tipo de utilização, da electrónica... Em tempo real.

 

É inevitável que haja alguma diferença mas não separaria tanto isso assim. Qualquer utilização que faça da electrónica, é inevitável que tenha de ter feito um trabalho prévio de programação, de preparação dos materiais electrónicos, ou criando um novo patch ou uma coisa qualquer do género, que vai condicionar o que vou fazer com os erros, com os parâmetros mais ou menos alargados, etc. Mas esse trabalho que faço, que posso preparar previamente, para um concerto de violino acústico, é distinto. Posso determinar estruturas, percursos, sequências de peças, mas na altura posso mudar completamente ou, inclusive, não respeitar nada a estrutura que estabeleci – porque sou apenas eu e o violino. O máximo que pode acontecer é cair o arco, partir-se uma corda, o violino desfazer-se nas mãos, mas é apenas isso. Eu sei o que está ali. São aquelas quatro cordas, dependendo da afinação ou da desafinação. Com a electrónica, são outros os elementos que preparo previamente.

 

 

Mas quando estás a tocar violino também há uma série de elementos que já estão preparados mesmo que não tivesses acabado de fazer isso, não é? Designadamente, toda a tua formação, a tua experiência...

 

Apesar de, como costumo dizer, por deformação académica, combater algumas situações que possam ser determinadas por uma formação ou por outras... Quando estou numa situação ao vivo, de violino acústico, sinto que caí numa situação parametrada – subconsciente ou não, determinada, idiomática, como alguns gostam de dizer. Eu tenho de combater isso. Há coisas que eu gostaria de fazer naquele momento e que não posso, porque tenho vir para casa reprogramar o esquema para me permitir fazer isso. E depois há outro elemento: trabalhar com electrónica possibilita-me tocar menos e isso dá-me espaço de manobra e inevitavelmente de reflexão, de distância em relação ao instrumento ou aos instrumentos do que se estiver num concerto.

 

Por isso, quando trabalho com computador, há outra distância, outra postura, porque há uma série de outros instrumentos que também estão ali a tocar e que eu posso manipular. Posso pousar o violino e ir agora trabalhar apenas com o computador, baseado naquilo que acabei de tocar. Mas essa distância levou-me algum tempo a digerir; de alguma forma era estranho porque eu estava habituado a estar sempre agarrado ao violino.

 

 

Utilizas os pedais...

 

Já utilizei mais os pedais do que utilizo hoje. Eu prefiro tocar violino em pé e rapidamente percebi que quando tinha muitos pedais, parecia que estava a fazer ali um step dancing ridículo, com um pé para um lado e um pé para outro, a arriscar o desequilíbrio. Portanto, era obrigado a tocar sentado. E eu,  sentado a tocar violino… não me convence grandemente! Fui tentando eliminar os pedais, apesar de ser evidente que continuo a utilizá-los.

 

 

Ainda mesmo com o computador?

 

Mesmo com o computador, e às vezes só para situações de input e output de material sonoro. Eu estou a tocar e há coisas que não me interessa que entrem no computador para serem posteriormente manipuladas ou manipuladas em tempo real. E então aí eu corto a via ao violino para dentro do computador. Há material que está a ser preparado no computador que não me interessa estar imediatamente a sair para fora e tenho outro pedal... Essencialmente, não são tanto pedais para manipulação de parâmetros mas mais pedais de controlos de volume, de entradas e saídas; no fundo, é estar a fazer uma mistura, uma composição em tempo real.