Entrevista

Entrevista a José Luís Marques Ferreira / Interview with José Luís Marques Ferreira
2005/May/27
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Percurso Compositivo

 

A primeira etapa foi sem dúvida ter conhecido o Pedro Rocha, que foi meu professor de Análise e Técnicas de Composição na Academia de Amadores de Música. Ele realmente motivou-me bastante a experimentar. E depois de ter experimentado, o passo seguinte foi a minha entrada na Escola Superior de Música onde acabo por tomar um percurso idêntico a todos os meus colegas. A segunda etapa foi de certeza ter conhecido o António Sousa Dias; quer ele, quer as suas aulas exercem, ainda hoje em dia, uma grande influência na minha música. Não necessariamente a música de António Sousa Dias, mas sim aquilo que ele me transmitiu. Actualmente vou seguindo o meu caminho, vou procurando, vou estudando aquilo que posso, e por enquanto estou nesta fase.

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A importância dos meios electroacústicos

 

É muito importante para mim, mesmo na escrita instrumental, e claro que a própria música electroacústica sobre suporte; porque podemos fazer exactamente aquilo que queremos e não dependemos de ninguém.

Esta história é muito antiga – remonta ao próprio Schaeffer que coloca esta problemática e o facto para quem está a experimentar – e um jovem compositor cujas peças sejam para orquestra, sejam para solistas  ou peças  para instrumento solo não são tão amplamente tocadas. Isto porque é difícil, e muitas vezes há instrumentistas que gostam de tocar música contemporânea portuguesa, mas se lhe apresentam uma peça de um jovem compositor acham que é um bocado arriscado, pelo que é melhor pegar nos valores seguros. E a electroacústica surge assim como uma forma fantástica de sabermos imediatamente se isto resulta ou não resulta. A transformação electrónica permite, fabricar e construir sons que fazem parte da minha procura do tal objecto sonoro/musical, permite-me encontrar sons que não são possíveis apenas com instrumentos.

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Combinação dos instrumentos e meios electroacústicos: a electrónica em tempo real

 

É um método/instrumento: um instrumento que permite fazer mais do que só o instrumento e o instrumentista podem fazer. Mesmo que seja só a nível da espacialização. São coisas que no primeiro estudo serviram de teste, o segundo já foi um pequeno caminho, e hão-de surgir vários daqui por diante,  seja com oboé, saxofone ou até com fagote. Estou a planear uma série de estudos em que tento realmente fabricar esse método/instrumento.

Eu ainda estou na minha fase de programador inicial, ainda estou bastante verde, e há determinadas coisas de que eu próprio ainda não tenho grande conhecimento. Mas claro que a ideia do pitch-tracking [para a sincronização entre músicos e máquinas] seria ideal, mas eu sei que nem sempre funciona. Eu, por exemplo, na segunda peça de oboé, recorri a variações de intensidade de uma determinada gama, e quando essa variação era quebrada o Max/Msp accionava um determinado acontecimento. Na realidade, o ideal era que houvesse uma interactividade total entre o instrumentista e o computador e entre o computador e o instrumentista. Francamente - e isto é um aparte - a ideia de usar um “sampler” para accionar e reproduzir acontecimentos, agrada-me cada vez menos. Quero mesmo que o som seja transformado em tempo real com parâmetros que poderão eventualmente até virem a ser controlados pelo próprio instrumentista.

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Três obras electroacústicas sobre suporte

 

As três [peças] foram feitas em três situações muito diversas. A primeira foi baseada num trabalho de electroacústica que fiz para a escola, só que foi realmente bastante trabalhada e amplificada para o concurso e ficou quase com o dobro do tempo. Quanto ao objectivo, eu não sei se de uma forma clara eu tive o objectivo de ser original.

Portanto, partiu de um trabalho da electroacústica em que tive como objectivo criar um único instrumento de síntese que me pudesse fazer uma gama muito variada de sons e foi realmente a partir daí que tudo começou. O nome surgiu como piada, curiosamente, e para quem conhece a peça, ela começa com um impulso grande e grotesco ao centro, à esquerda, à direita, e depois varia. Eu não tinha muita fé nessa peça e ainda há muitas questões que me ponho em relação à peça como música. Como obra electroacústica, sem dúvida, mas há aquela vertente musical que, não sei, me faz com que continue a considerá-la como um estudo. Eu acho que a trabalhei de uma forma musical, mas até ser chamada uma obra de música… - eu próprio tenho algumas dúvidas.  Mas disseram-me que devia participar no concurso e que devia enviar a peça, e ao saber que Jean-Claude Risset estaria no júri, pensei – bom, eu conheço a obra de Risset, ele vai ouvir isto e vai achar perfeitamente ridículo. E então decidi divertir-me um bocadinho – dei este nome exactamente por causa dos impulsos que sugerem, talvez, uma cela, ou uma célula pequenina, e o título acaba por ser uma pequena brincadeira. Depois apanhei uma grande surpresa no dia em que soube que tinha sido escolhido, e fiquei muito contente com as palavras do Risset, porque ele foi muito sucinto - tal como de certa maneira a peça também o é. Ele disse-me só isto “Very minimal, very original. Congratulations” não disse mais nada. E eu achei bastante piada. De certa maneira a minha música é muito influenciada por certos aspectos da música minimal. Não o central, que considero ainda exactamente que é o desfasamento, mas a ideia de repetição e da lenta evolução, de certa maneira é uma gestão do tempo. E acaba exactamente por ser esse desfasamento, mas não tão lento, como o que acontece na verdeira música minimal, como por exemplo a do Steve Reich.

A obra que apresentei em no festival Música Viva em Coimbra foi uma tentativa de me libertar exactamente do “Le Bruit…”. Tentei usar o som baseado num efeito sonoro da minha voz, a dizer “Why?”, não fiquei nada contente com a peça - fiquei contente com aquilo que me propunha e não com o resultado final. E como tal vou rescrevê-la, se ficar completamente diferente será um “Why II”, se se basear nas mesmas ideias e se realmente evoluir, substituirá a versão anterior, porque não estou contente com o original. Em relação ao “Le Bruit d’une porte qui…”, que é a mais recente, de algum maneira apresenta algumas alusões (aliás o “Why?” tem também algumas alusões à primeira peça, mas discretas, mas no caso de “Le Bruit d’une porte qui…” as alusões são muito óbvias, os impulsos  agora são portas, mas a nível de síntese já uso, a chamada convolução, ou seja, trabalho num recheio sonoro e vou como que re-sintetizá-lo com determinados sons o que permite ter uma gama variada de sons e de movimentos; nessa peça continuo a trabalhar muito com a esquerda e com a direita; aliás é algo que é comum às três peças e que vai deixar de acontecer na próxima peça, já que estou a trabalhar numa peça em quatro canais.

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Influência de técnicas e conceitos próprios da música electroacústica para a escrita instrumental

 

O “Certain point of view “ pode ser considerado música electroacústica porque – não é referido, por acaso, mas há-de ser – a peça tem dois fagotistas, e um “ensemble” normal com um instrumentista de cada, menos o fagote que são dois; e os fagotes têm um microfone de contacto, estando ligados a um amplificador que está mesmo ao lado do fagotista. O fagotista tem a possibilidade de ligar e desligar o microfone e basicamente a ideia é misturar os sons eólicos do fagote com “stacatto“ simples sob um pequeno impulso sem palheta, que por acaso tem muita força. A ideia é fundir esses sons com os sons produzidos pelo restante “ensemble”. Existe uma grande secção em que a divisão de pulso é constante, criando assim outras pulsações e batimentos devido aos diversos padrões rítmicos utilizados. A ideia é fundir, tanto quanto possível, esse som eólico com a orquestra - claro que em princípio, eu estarei numa mesa de mistura a controlar o equilíbrio entre o som dos fagotes e o resto da orquestra. No caso da “ Synthesis “ – que é um quarteto de saxofones – o próprio título afirma a ideia de síntese. Foi escrita para o Apolo Sax Quartet e resultou de uma proposta que o Luís Tinoco fez a vários compositores - e de acordo com as escolhas do próprio Apolo Sax Quartet, as peças propostas seriam ou não tocadas. Infelizmente, a minha peça não foi tocada, se bem que tive alguns elogios de alguns membros do Apolo Sax Quartet. E claro que a ideia aí era escrever um quarteto de saxofones - portanto não podia usar electrónica - mas a nível conceptual usei-a (conceitos de síntese, claro), individualizando os sons no que poderia chamar um tipo de síntese aditiva e assim fabriquei um instrumento que, por acaso, são quatro saxofones.

No caso do “Kyrie”, foi um convite do Ricercare para fazer uma peça religiosa e decidi realmente fazer um Kyrie, usando os dois Kyries - aliás a peça chama-se “Kyries” - da  Missa em si menor do Bach.  Faço uma fusão entre os dois, não soa a Bach, felizmente,  e consigo usar os dois materiais para fundir num só.

A  peça é harmonicamente baseada no segundo Kyrie – intervalo de segunda maior e uma segunda menor descendente. Portanto, é bastante como um cluster praticamente de três notas, e existem três secções harmónicas e duas secções em fugatto – exactamente um pouco em homenagem ao próprio Bach, porque ele usa esses temas como tema de fuga. Eu fiz exactamente o mesmo,  só que com outras regras harmónicas e rítmicas.

 

Posso falar de “Unbroken”.  Esta é uma peça que foi escrita em 2000/2001, uma encomenda do Centro Cultural de Belém e é uma peça que marca também o início da minha procura – e isso tem tudo a ver com a minha ideia de objecto sonoro e de objecto musical. Isto é exactamente o que me interessa: que o ouvinte, ao reconhecer aquilo que possa ser na sua mente um objecto musical,  compreenda a sua evolução. A minha música assim o é e eu componho  assim a narrativa. Segue uma linha que as pessoas – eventualmente se tiverem atenção – poderão seguir e perceber a evolução de algo que começa de uma certa maneira e quando chega ao fim já é diferente, já é outra coisa.

No caso de “Unbroken”, foi a primeira peça em que eu realmente me preocupei com a percepção, só que eu exagerei deliberadamente, porque arranjei cinco objectos muito diferentes uns dos outros. A peça é dividida em duas partes. Digamos que existe um discurso sonoro que se pode considerar até típico, um contínuo harmónico que vai evoluindo, e esse discurso é quebrado – cinco vezes por acaso – por vários tipos de sons: glissandi, sons eólicos, sendo que o último de todos é uma cadência perfeita. Isto porque o discurso,  apesar de ser harmónico, não é tonal, mas existe realmente um acorde de sétima dominante e depois um acorde de uma tónica realmente muito explícito que termina a primeira parte. E portanto digamos que esses pequenos objectos vão cortar, vão partir o discurso principal e toda esta concepção se inverte nesta segunda parte em que os objectos começam a evoluir e começam a ter uma vida própria e se sobrepôem e de vez em quando são cortados, o discurso é interrompido por determinados acordes - que vêm exactamente do discurso principal da primeira  parte. Na peça é difícil de ouvir – esta minha concepção é difícil de ouvir - mas digamos, foi uma primeira tentativa que acho que soa bem.  Eu nunca sei dizer se uma peça minha é boa ou não, só posso dizer que soa bem ou não – e para mim realmente a peça soa-me bem e já pensei algumas vezes em modificá-la mas não vou fazê-lo. O título “Unbroken” é explicado exactamente por causa disto: o nome da peça está relacionada com o que se passa na composição. Escolhi o inglês simplesmente porque foneticamente soa muito melhor e é uma palavra só. No caso de “From a certain point of view “, esta já foi feita cerca de dois anos e meio depois, já com uma ideia um pouco mais simples, porque já são dois objectos que interagem e um transforma-se no outro e podemos realmente pensar se o tal objecto é sempre o mesmo, ou se são dois, ou se  é o mesmo em tempos diferentes de vida, por isso é que o título “From a certain point of view” faz todo o sentido.