Entrevista a Carlos Bechegas / Interview with Carlos Bechegas
2004/Jul/02
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Que caminhos te levaram à composição?
Aos
18 anos começo a dar aulas. Tinha acabado a António Arroio e a minha
perspectiva era ir para as Belas Artes porque os professores, desde a escola
primária, diziam à minha mãe: “É uma pena, este rapaz tem que ir para as Belas
Artes porque este rapaz tem um talento invulgar” - como sempre se tem para a música,
ou para isto ou para aquilo. E eu quando acabei a António Arroio, depois de lá
estar 5 anos, pensei: “Eu para desenhar não preciso que me ensinem nada, isto é
só ir andando, estar atento, fazer” e tinha começado a tocar umas músicas na
praia com os meus amigos freaks, não é?
Comecei
a ficar muito entusiasmado com o lado performativo - com a relação com as
pessoas.
A
pintura é uma coisa muito isolada, e então pensei: “Não. vou é seguir música e
como tal preciso de aprender música. ”E talvez um dia – pensei quando tinha 18
anos e comecei a estudar no conservatório – possa deixar as aulas e começar a
pintar, e então vivo da pintura e da música”, mas isso nunca foi possível.
Estão
estas fotografias aqui atrás que é aquele lado da exploração estética na praia,
umas fotografias, não é? E isso é o lado artístico da expressão, da linguagem,
da estética plástica. Mas ao mesmo tempo tive sorte, porque o facto de dar
aulas permitiu-me sempre ter uma estabilidade financeira, e pude fazer sempre
várias coisas, só que, como dava aulas, não tinha todo o tempo, e então uma
experiência que podia ter demorado 5 anos a fazer demorou 10! O conservatório
demorou mais tempo, fui tocando Jazz, não me dediquei só à flauta, etc. Tudo
isso se estendeu no tempo, mas neste momento sinto-me bem na minha pele porque
acho que valeu a pena.
Começando
pelo academismo, a passagem pelo Conservatório foi uma estrutura disciplinadora
do trabalho. Percebi que iam ser oito ou dez anos mas que eu não ia dar por
isso. Ou seja, eu já dava aulas, tocavai jazz simultaneamente, fiz os meus
workshops de improvisação mas à segunda-feira tinha que estar a tocar aquilo e
se não tinha estudado até sexta-feira, sábados e domingos eram sacrificados.
Depois,
foi muito importante a passagem pelos Encontros de Música Contemporânea da
Gulbenkian. Foi fascinante para mim, mesmo sem perceber nada daquilo, fiquei
muito atraído por aquele mundo. Paralelamente, a formação com duas pessoas de
uma forma mais aprofundada, com o Emmanuel Nunes - quase sempre como assistente,
mas onde pude acompanhar o seu trabalho -
e o António Pinho Vargas. Foram dos primeiros a começar.
Foi
muito interessante poder perceber a complexidade daquela música mas de uma
forma extremamente simples, de como se partia de um arquétipo simples para uma
maior complexidade. Isso para mim foi importante, no sentido em que já sentia a
improvisação porque já ouvia os discos de Berlim da FMP e sentia que havia
analogias entre uma coisa e a outra.
Também nessa altura, fiz alguns workshops com o Pierres-Yves Artaud. Percebi aí
o que era realmente tocar flauta com uma capacidade técnica impressionante, com
uma sonoridade e depois com uma abrangência de interpretação. Ele ali também
dava música barroca, também ensinava, mas depois fazia aquelas coisas que nós
esperávamos ouvir dele, ligadas exactamente ao contexto da música improvisada.
Depois,
foi também muito importante, na minha aprendizagem, o início no Jazz com o José
Eduardo, que teve a paciência de passar umas tardes de sábado comigo, a tocar
ao piano e eu a tentar trautear por cima dos primeiros blues. Fez os
apontamentos em fotocópias dessas páginas, que foram fundamentais, e
distribuiu-as a todos os elementos da Orquestra Girassol. Foi fantástico
durante um ano.
Ocorre-me
dizer uma coisa que foi fundamental, de que não falei há pouco. Disse só que
tinha ficado muito impressionado nas primeiras vezes que ouvi música
contemporânea na Gulbenkian e nesse momento o que me saltou - eu já tinha começado a ir aos
concertos de Jazz, e aos festivais de Cascais vou em 74 ou 72, já tinha ouvido
o Plexus em 74 e de repente, - foi a energia do Jazz, aquela capacidade de
interacção. Há uma certa complexidade para quem não conseguir dissecar aquilo
do ponto de vista teórico e chego à música contemporânea e penso: “Mas isto é
excepcional!” Mas depois havia ali uma parte que era muito fria, uma certa
frieza e eu dizia: “O que eu adorava um dia poder fazer isto!”. É verdade, foi
mesmo assim quando eu, no fundo, objectivei aquela emoção. Objectivei um dia,
depois de ouvir o Plexus que “O
que eu, um dia, gostava de fazer era conseguir transportar esta riqueza de
ideias e materiais para o Jazz e para a improvisação.”
Porque
já achava que na improvisação, o que havia em Portugal, as pessoas do ponto de
vista do domínio do instrumento, da técnica, eram um bocado… enfim, era o
possível, sem dúvida. Não é uma crítica, era o possível e as coisas que são têm
muita razão de ser como são. Achava que gostava de um dia percorrer o
Conservatório para tornar-me um instrumentista competente, para poder
transportar para a música improvisada e para o Jazz toda aquela riqueza que ali
era exposta, de uma maneira às vezes muito fria e disciplinada.
Portanto
no fundo sinto-me satisfeito, revejo-me um pouco no meu trabalho, e sinto um certo
conforto por ter encontrado um caminho, que foi sempre sistematizado e pensado.
Depois,
a propósito do ACARTE, através da Madalena Azeredo Perdigão, a criação dos
Encontros no anfiteatro da Nova Música - que na altura eram produzidos pelo Rui
Neves - onde pudemos ouvir a escola Inglesa, os Alemães e os Workshops feitos
com o Steve Lacy e o Evan Parker. Por exemplo aqueles feitos pela Constança
Capdeville e o grupo ColecViva, com o Fernando Grilo. Recordo-me de um, com o
Fernando Grilo, muito interessante. Mas reportando então à música, e à música
improvisada, foi interessante aí, poder estar de perto com o Steve Lacy e com o
Evan Parker. Percebi o que vim a fazer mais tarde. Esta possibilidade que eu
tenho de circular nalguns festivais e ter gravado com estas personalidades,
percebi que, como dizia o Steve Lacy, “ O problema agora é que se produzem
muitos tocadores de notas, esta gente nova tende a tocar muitas notas mas não
lêem, não vêem cinema” - disse-me no Hot Club depois de uma tarde na Gulbenkian.
E
essa dimensão é interessante porque a relação com estas personalidades, que eu
privilegio agora (tendo já sido acusado de ser demasiadamente deferente com
eles), - aliás no meu disco a solo eu dedico algumas peças (dedico porque me
inspiro a partir dali) -, este contacto de perto, para mim, é fantástico. Antes
de ir tocar com o músico, poder estar a jantar com ele e ouvir as suas
histórias para mim é entusiasmante, não é nada de especial, mas toca-me.
Por
exemplo com o Emmanuel Nunes, sentir que estou perante uma pessoa genial, quer
dizer, fora do comum, de uma dimensão…
E
portanto, hoje em dia costumo dizer: “Entre a cópia e o original, se eu tiver
oportunidade de tocar com o original e gravar com o original eu prefiro gravar
com os ‘cotas’ que têm para cima de 65 anos, para mim é um privilégio, e tenho
tempo para o resto nesse aspecto.“
Basicamente
foram estas as situações assim mais marcantes do meu percurso, até acabar o
conservatório. Acabo o conservatório, em 88, e aí decido deixar os saxofones e
começar a encarar a flauta na perspectiva das técnicas extensivas e a procurar
a minha linguagem e o meu discurso.
Como
instrumentista começaste pelo saxofone, mas depois seguiste outros caminhos…
Toquei saxofone 12 anos. O que acontece é que senti necessidade, achei que para
mim era muito importante enriquecer-me fazendo, entrando dentro de diversas
coisas, e se possível, praticando.
Fiz
workshops de teatro e comecei com o teatro musical com a Constança Capdevile.
Tenho uma peça de teatro musical que se chama Despertando - que criei,
apresentei uma vez, filmei-a e ficou arrumada na prateleira, mas que vem
exactamente disso. Produzi dois espectáculos, um na Comuna em 1991, -
multimédia, com um escultor e com uma bailarina também, um espectáculo de 1
hora. Ou seja, senti necessidade de me enriquecer através de diversas
linguagens, não propriamente ligadas à música. Quando acabo o conservatório
percebi que, para fazer qualquer coisa - eu tinha um desejo de inovar, acho que
em arte só vale a pena inovar, correr riscos, interpelar, fazer reflectir -
tinha que me dedicar a um instrumento só. Eu quando tocava Jazz também tocava
flauta, tocava para aí um terço dos temas em flauta, mas foi apenas um tempo de
passagem, de aprendizagem, de enriquecimento.
Quando
acabei o conservatório disse: “Agora vais procurar o teu caminho e vais tentar
fazer da flauta um instrumento capaz de desenvolver uma linguagem, de ser
protagonista ou de, pelo menos, ter um papel na música improvisada. Esse vai
ser o teu desafio. Ou consegues ou não consegues.” E portanto, a partir daí
abri o manual que me tinha sido dado por aquele compositor que dava aulas no
Conservatório – que é um pouco mais velho que nós – o Paulo Brandão, andava eu
no sexto ano de flauta: “Ai queres? Então toma lá!” E deu-me o manual de flauta
contemporânea daquele americano, o Robert Dick.
Eu
disse: “Pois, muito bem, ainda não é a altura!” Arrumei-o 4 anos e só depois de
acabar o conservatório é que eu fui abrir aquilo e comecei a dissecar.
Admiro
imenso hoje um músico que faz num saxofone aquilo que eu faria, de um ponto de
vista estético, se o tocasse, que é o Gianni Gebia - um músico italiano, mais
novo (tem para aí uns 35 anos), que faz coisas excepcionais. O que é que ele
faz? Incorpora sobretudo as técnicas extensivas da música contemporânea.
Portanto no fundo é isso que eu faço na flauta.
Eu creio
que no fundo, no fundo, não se improvisa tanto quanto isso. Ou seja - e a maior
parte das coisas que existem na improvisação existem nas outras áreas de música
- eu acho que, basicamente, do ponto de vista dos materiais, do ponto de vista
da estética, a improvisação não trás propriamente [nada] de novo
Tu
sabes como é que nasceu a Globe Unit? É extremamente interessante, ele recebeu
uma encomenda, do festival de Jazz de Berlim, para organizar um grupo - um
quarteto ou um quinteto. Mas o festival de Jazz - já tinha uma certa abertura
mas era Jazz Jazz. E ele faz uma contra-proposta e pergunta se não poderia
criar uma orquestra mais aberta, um grupo mais alargado baseado na improvisação
com uma certa estrutura. Ele cria um primeiro grupo, faz a actuação, as pessoas
adoraram o resultado e a partir daí é que nasce a Globe Unit. E a
sistematização que ele vai buscar, e as ideias que ele lá põe, são as ideias da
música contemporânea. O Evan Parker, quando toca aquela quantidade de
harmónicos, tudo aquilo também já vem de trás. Toda a gente incorpora. O
Zíngaro quando faz também os seus efeitos com o arco - tudo isso vem da música
clássica.
Eu
acho que o que a improvisação trás de novo - de novo, isto é, de diferente - é
mais a atitude da composição no momento, da catarse emocional que existe, não
só entre os músicos mas entre o público, e essa emoção advém também de um certo
risco. Agora, acho que há sempre uma estruturação, mesmo para aquele que não
improvisa estruturadamente, ou seja que a improvisação estruturada pressupõe a
organização do tempo de determinados pedaços/ciclos da narrativa. Pode-se
sugerir, em determinados momentos, fazer isto ou aquilo, mas quando um músico
está em palco pela primeira vez com outros a improvisar, ele tem uma noção do
tempo, tem uma noção do que é uma boa ou má improvisação e sabe, em determinado
momento, que seria interessante deixar aquele tipo a solo e ostensivamente para
de tocar. Aqui há uma nítida intenção de composição, isto é, deixar ou de
repente interromper, não é?
Basicamente
as pessoas improvisam partindo de interiorizações, e essas interiorizações
podem ser mais ou menos explícitas para quem as ouve. Podem perceber que aquilo
já é um cliché daquele músico, mas na verdade, aqueles músicos que se afirmam
hoje como as grandes referências da improvisação, são sobretudo singulares na
sua linguagem pessoal, começando pelo som e pelos tiques, pelos clichés. Se nós
ouvirmos o Steve Lacy, por exemplo, para mim a grande força da sua linguagem
começa na interpretação, que é aquele som, ou seja, aquela melodia tocada de
uma certa forma. Com uma acção, uma interpretação, que não tem aquele som,
aquele ataque, não tem nem metade da força. Tentar tocar Steve Lacy na flauta é
redundante, a não ser que lhe ponhas sopro e que sujes com a voz, porque aquilo
precisa de ataque e de corpo, e aí há logo uma personalidade. Isso é estrutura,
isso é determinismo. A linguagem
do Steve Lacy é extremamente estruturada, são um esquema de arpejos que ele vai
repetindo, há ali um módulo, há ali uma coisa que é muito, muito racional e
muito erudita.
Para
mim a improvisação tem como significado o facto de eu, a determinada altura,
ter chegado à conclusão que podia dar, com o património que tenho, mais de mim
- ser mais relevante para as pessoas se improvisasse - do que se tocasse música
escrita. Isto também tem a ver com o facto de eu ser completamente despojado de
memória e passa, também, pela música. Portanto isto entra tudo, eu leio umas
coisas - depois já esqueço - mas fica aqui um senso qualquer, que depois eu
debito quando improviso.
Mas
por exemplo, retomando a improvisação,
quando eu faço concertos a solo é tudo muito preparado do ponto de vista
da organização, da sequência.
Ou
seja, à improvisação não está alheia a necessidade de haver uma forma, uma
estrutura? Que diferenças existem entre o tipo de agrupamento em que se está?
Que diferenças há entre o tocar a solo e em grupo? E de que forma é que isso
limita ou não o teu trabalho?
Para
mim, o solo atrai-me porque é a situação de maior exigência para um músico, do
ponto de vista performativo, do ponto de vista físico, técnico, e do ponto de
vista estético.
Aguentares
sozinho uma narrativa de uma hora significa que tens que ter património para
fazer isso e então isso, no fundo, acaba por ser um desafio enriquecedor para
ti. Portanto a solo, estás à vontade, estabeleces a narrativa, o percurso,
enfim.
Quando
toco num conjunto, num Ensemble, sobretudo em determinados momentos,
interessa-me focalizar, explicitar mais… - faz parte de mim a diversidade,
atrai-me. Eu tenho um panóplia de materiais e posso estar consciente, em função
daquele grupo, daquelas características, do que posso fazer mais interessante.
Fico mais atento à utilização de determinados materiais, de determinadas
respostas, consoante o contexto onde vai ocorrer. E muitas vezes - como o
atleta que antes de fazer o salto toma consciência do que deve fazer - eu, para
aquele concerto, consciencializo-me que será interessante expor mais este
material ou aquele, ou tentar estar atento à possibilidade de deixar mais
aquele a solo, como ouvi em disco, e portanto já vou com esses fundamentos
interiorizados e, normalmente, quando estou em palco isso vem.
No
fundo essa estrutura vem e organizo-me dessa forma. O que não quer dizer que a
coisa não possa ser conduzida noutro caminho. Tem que haver sempre um senso
entre as tuas “intenções” e o aleatório do que se está a passar, e que tu
desconheces de momento para momento. Mas há essa previsibilidade, ou seja, eu
próprio nos meus discos, por exemplo, o último disco que fiz - o Right Off com o Derek Bailey - ele tinha a electrónica, aquilo é um
bocado ele atrás de mim, percebes? Eu a disparar ideias e sempre… Foi um bocado
precipitado. Mas achei interessante porque ele fazia coisas impressionantes com
a sua guitarrinha amplificada. Por exemplo, interiorizei agora com o
Schlipenbach dar-lhe sempre a iniciativa e estar sempre a repousar. É estar
sempre atrás e, não sei, seria interessante se as pessoas notassem isso. No
próprio disco eu noto já o resultado dessa decisão, dessa opção de ficar mais
atrás, de dar sempre a iniciativa ao piano.
Portanto
basicamente é assim, há sempre uma maneira de tu estabeleceres previsões e de
preparares um certo discurso. Isto é como no futebol - por isso é que o futebol
é tão bonito - tu preparas uma táctica e depois só é genial se tu conseguires,
perante essa táctica que está a ser redundante e que os outros se aperceberam
que não está a resultar, tu fazeres as opções na altura, as alterações. Isso é
que é improvisação. O futebol tem muito de improvisação por causa disso. E no
seio de um grupo também, no fundo a improvisação é um trabalho de equipa.
O
Jazz fica um bocado a meio caminho entre a música completamente escrita e a
improvisação porque tem mais regras e tem aquela escola, aquela sistematização.
Mas eu devo-te dizer que, tem acontecido, num concerto ou outro, por exemplo
agora o sétimo disco que estou a preparar, aquilo não houve muita
sistematização. Sente-se que é tudo com muita tensão, muito nervo, sempre a
andar, sempre a andar, não houve assim muito tempo para pensar e isso também é
interessante.
Mas
o que noto de muito curioso é que quando somos novos há uma certa densidade,
uma certa precipitação, há uma certa pressa em expor as coisas, em não dar
tempo a que as coisas se explicitem. E para mim, a improvisação é a capacidade
de tu, no meio de uma coisa que não é clara, de repente focalizar coisas,
tornar essas coisas claras para quem as está a ouvir, formar sensos que depois
desfazes, depois formas outro senso e voltas a desfazer - isso é uma
improvisação com qualidade.
Na
improvisação é impossível ter qualidade sempre. Numa obra escrita tu podes
dominar isso, podes ter essa pretensão, numa improvisação não. Mas o que é
interessante é que a determinado momento a pessoa fica apanhada, percebes? E
agora para onde é que eles vão, e agora como é que isto acaba? O público, não
é? E os próprios músicos, não é? E de repente desfaz e está ali 5 minutos em que
não se passa nada e está um a puxar para cada lado e de repente… Isto são
ciclos, não é?
Conheces
o Peter Kowald? É que eles não têm pressa em chegar àquele ponto, em
clarificar, percebes? E depois não só clarificam a estética, clarificam o que é
a composição e depois ainda acrescentam mais da emoção e aquilo que nós
despachamos em 5 minutos ou em 3 minutos aquilo demora com eles 10 minutos, se
for preciso demora meia hora… Isto é a diferença. De coisas que já não é
necessário interiorizar, este tempo de composição já está lá, tem a ver com a
vida, com a vivência.
Tens
vindo a colaborar com nomes sonantes da improvisação: Derek Baley, Kowald,
Schlipenbach, o Michel Édlin, e com isto já vão 4 discos, para além do Flute
Landscapes. São todos bastante diferentes, porque o resultado é diferente em
função de cada músico com quem te relacionaste - poderias apontar para cada um
desses 4 discos qual foi o tipo de linguagem que utilizaste, nomeadamente o CD
com o Michel Édlin que é claramente diferente dos outros.
Vou
começar pelo aspecto que acho que é similar e, no fundo, tem a ver com a minha
procura de conseguir que a flauta tivesse uma voz possível na improvisação, que
conseguisse dar respostas ao contexto dos materiais da música improvisada.
Sendo
a flauta um instrumento com um som mais delicado, com um timbre com menos
harmónicos, uma das hipóteses que eu achei para resolver o problema seria a
diversidade, e porque me atraia obviamente, me atraía aquilo que ouvia na
música contemporânea. Há um aspecto que atravessa o meu trabalho como
intérprete de flauta que é a diversidade. Essa diversidade fica patente no meu
primeiro trabalho, por isso é que eu lhe chamo a Bíblia, - tudo aquilo pode ser
muito mais desenvolvido ao longo dos próximos anos. O Flute landscapes, tal
como o nome procura relevar, são as paisagens da flauta na sua diversidade.
Esse disco são também takes curtos - é a ideia de que não são tanto narrativas
mas sobretudo caminhos possíveis, matrizes.
O
Flute landscapes, o segundo disco, significa a libertação da electrónica, que
até aí, para mim, tinha sido sempre um suporte, uma forma de eu me apoiar
perante a fragilidade que eu sentia de apresentar-me em palco só com o
“palitozinho”. Sentia-me desnudado, sentia-me desapoiado. E então, quando eu
acabo de gravar exactamente o Carlos Bechegas Projects, que tem 4 temas com
flauta electrónica com o Pitch to Midi e também com o grupo X, eu disse: “Vou
tentar encontrar uma saída com a flauta acústica.” E então nasce esse trabalho.
A seguir aparece o disco com o Kowald. O disco com o Kowald vem na sequência de
um convite para o Festival “Ó da Guarda”, em que eu fiz a proposta ao Kowald de
tocar também, usando a electrónica. Fiz um concerto na Guarda e depois em
Lisboa, e simplesmente propus-lhe também gravar um disco. Aí ele disse: “Não,
se tu não te importas eu gostava - ele já me tinha escutado num workshop - mais
se nós experimentássemos primeiro só contigo a tocar flauta.” Muito bem. E esse
disco, olha, esse disco é excepcional do ponto de vista da improvisação.
O
disco tem 13 takes, nós gravámos 15 takes, todos à primeira! Só não usamos
dois! Gravávamos 4, ouvíamos, segue. Gravávamos 4, ouvíamos, segue. E começou
desta maneira. Ele fez uma coisa no contrabaixo, 15 segundos: “Vê lá se
arranjas algo que dê com isto!” Eu fiz, já está. Um nome. Aliás, fizemos 3
seguidas, "o melhor é começarmos a apontar!" Ou seja, ali rapidamente
definimos logo 7 takes, 3 ou 4 baseados em coisas dele e 3 baseados nas minhas
“manigâncias”. Ficou logo ali 7 takes. Gravámos tudo seguido, fomos almoçar, e
gravámos o resto. Fomos a correr para o CCB às 5 da tarde, pois à noite
tínhamos um concerto.
São
13 takes, se tu fores olhar esses temas vais reparar que mais de metade deles
são exactamente as tipologias que eu tinha utilizado a solo no Flute
landscapes. São mais ou menos 12 matrizes simplesmente, ou 13. Simplesmente, no
Flute landscapes ele dobra, são 28 takes
porque eu faço de 12 ou 13 interpretações e depois dobro mais 12, em
segundos takes, tem uma abordagem ligeiramente diferente. Portanto, até aí vai
tudo mais ou menos com um percurso. Entra depois, claro, a singularidade e a
acção do Peter Kowald - no seu tempo, na sua tranquilidade, na sua forma de
tocar, no seu apoio, que me permite voar e aí há uma dinâmica muito mais
intensa, do ponto de vista emocional, há o tal pico, em relação ao disco da
flauta que era mais frio. Depois aparece a hipótese com o Derek Bailey - aí
achei interessante voltar a meter a electrónica - e surge esse disco onde a gravação
foi completamente espontânea. Foi começar a gravar e o primeiro take teve 20 e
tal minutos, depois o outro teve também 15, e depois mais 15, e depois
aproveitámos as partes melhores.
O
disco não é gravado ao vivo mas é seguido de um concerto ao vivo no festival de
Serralves.
O
que eu tenho feito, com estes nomes, é que normalmente estas vindas a Portugal
dos estrangeiros, sou eu sempre que produzo tudo. Surgiram possibilidades para
tocar em Portugal e eu disse: "Olhe eu tenho oportunidade de tocar com
este músico, como é que é?” “Ah, interessante, isso era muito interessante, mas
já temos o budget para…” “Não te preocupes que eu faço a gestão.” “Quanto é que
têm vocês, para esta situação?” “Temos tanto.” “Então não te preocupes que eu
trato do resto”. Muitas vezes prescindindo de uma parte do meu cachet eu faço a
gestão do global financeiro. Portanto com o Derek Bailey foi mais ”Deixa cá
voltar à electrónica”… E a situação foi assim.
Isso
foi o quarto disco. O quinto e o sexto, eu tinha conhecido o Edlin através de
umas mensagens no computador, e ele mostrou-se muito interessado no meu
trabalho, na forma como eu usava o pitch do Midi e pela linguagem que eu
desenvolvia. A determinada altura vou a Paris para fazer um concerto com a
Joelle Léandre, no Jazz Nomade - que é um festival relativamente recente - onde aliás tenho uma malapata porque já
tenho 3 situações em que vou para tocar com essas pessoas e, ou faleceram -
infelizmente como o Peter Kowald -, ou estão doentes e não podem comparecer -,
e então aproveitei a situação e fizemos num teatro a gravação deste disco com o
Michel Édlin.
Na
verdade está lá também a minha matriz experimental, que ele muito aprecia. Ele
é um músico, que dá aulas e toca com a nata francesa do jazz, em projectos
normalmente que ele assina. Toca com o Daniel Humair, com o François Méchali,
que é um contrabaixista muito conhecido também, mas sempre teve uma grande
atracção pela música mais experimental e não consegue entrar nessa caixinha.
Diz-me ele: “Tu é que me vais fazer entrar nessa caixinha.” Porque isto aí,
como em todo o lado funciona, dizia ele: “Tu aqui és considerado como o le
super flutiste portugais”. Enfim também não há muitos e eu fiquei espantado com
o epíteto… De qualquer maneira ele, de repente num encontro, apresenta-me uma
série de flautas, flautinhas e fazemos um ensaio prévio em casa dele. No dia
seguinte era a sessão de estúdio e então ele aparece com uma série de
flautinhas e até daqueles sons para atrair os patos. Eu achei aquilo
fascinante: “Vamos embora!” e tivemos ali durante uma tarde um pouco a definir
hipóteses de sistemas partindo de determinadas matrizes de material com esta
flauta e com aquela e gravámos 20 e tal takes e escolhemos 15 ou 16. Tocámos um
pouco de tudo, como tu dizes e muito bem, abordando muito a linguagem étnica, e
acho que é interessante este cruzamento, porque, para mim, não bastou
improvisar. A mim importa-me uma estética dentro da improvisação, uma
determinada história. Acho que a improvisação está num impasse, porque hoje em
dia já se teoriza, já se toca "à maneira de" e já está tudo muito
perto do impasse.
O
que ficou por dizer do teu trabalho?
Estabeleço
uma relação muito grande com a pintura. Para mim é muito importante essa
relação, pois a pintura ajuda-me muito a ouvir os sons e os sons ajudam-me a
ver a pintura e a interpretar. Por outro lado houve um aspecto também
fundamental no meu percurso, no final dos anos 80, que é a minha entrada na
multimédia, através dos workshops com a Colectviva, com a Constança. Fiz também
um workshop interessante com os Wellfare State International - uma companhia
inglesa que depois fez um espectáculo no jardim cá fora da Gulbenkian.
Essa
dimensão foi muito interessante do ponto de vista da aprendizagem, da relação
com as outras artes, e só deixei porque percebi que tinha que optar por uma
dedicação exclusiva à flauta e a um discurso.
Ocorre-me
só dizer que, apesar da internet e da facilidade de passar a informação e de
descobrirmos coisas, apesar de tudo, ainda é preciso estar lá, ainda é preciso
estar no centro, conhecer as pessoas e poder falar olhos nos olhos.