O Senhor Ludwig sonha com cornetas acústicas também se poderia ter intitulado “Beethoven, Mendelssohn, Bruckner, Mahler, Dukas e Shostakovich entram num bar e…”.
Tudo partiu da encomenda para uma peça orquestral feita pela Orquestra Clássica do Centro e de uma partida de 1 de Abril: aparentemente, Beethoven teria nascido não em 1770 mas em 1771 (a certidão de nascimento genuína fora “encontrada” durante umas obras na igreja paroquial onde Beethoven foi baptizado), e claro que esta mudança de data daria bastante jeito num ano em que as comemorações dos 250 anos do nascimento de Beethoven foram arruinadas pela Pandemia do Covid 19. Penso que a brincadeira terá nascido daí.
Na realidade, com ou sem nova data de nascimento, as ditas comemorações continuaram por 2021, embora tenham continuado só parcialmente, pois pouco ou nada melhorou neste segundo ano de pandemia. Quis assim não só comemorar Beethoven mas também associar à peça essa brincadeira das “fake news” relativas ao nascimento do Grande Surdo.
Como ponto de partida da peça lembrei-me do momento dramático em que o próprio reconheceu, quando questionado sobre o assunto, só “ter ouvido os tímpanos” de toda a estreia da 9ª Sinfonia, a sua obra mais icónica, tímpanos que, não por acaso, e pela primeira vez na história da Sinfonia, conduzem o discurso musical no 2º andamento, o “scherzo” (”brincadeira”, em italiano). Embora Beethoven o intitule “molto vivace”, estruturalmente é o “scherzo” da forma sinfónica.
Assim, usei esse “scherzo” da 9ª Sinfonia, em particular a secção fugada onde os tímpanos fazem a sua aparição respondendo às madeiras de forma dramática, como ponto de partida. A partir daí, a música incorpora nela outras citações, umas genuínas, outras falsas (as “fake news” do estilo…), citações de compositores que, ou foram afectados pela música de Beethoven, como Bruckner, Mahler e Shostakovich, ou cuja música encaixa no espírito (e na letra!) deste scherzo, como a música de outros dois “scherzi” célebres, a música de cena para
Sonho de uma Noite de Verão, de Mendelssohn, e
O Aprendiz de Feiticeiro, de Dukas. Descobrir quais as falsas e quais as verdadeiras pode ser um bom exercício de musicologia instantânea…
Por detrás deste espírito aparentemente ligeiro esconde-se porém uma verdade brutal: a do uso perverso da 9ª Sinfonia, esse grande hino à Humanidade, por algumas das ideologias mais nefastas da História, nomeadamente pelo Nazismo. Numa época em que a extrema-direita começa novamente a emergir em todo o mundo, urge relembrar os valores humanos que esta Sinfonia (e qualquer obra de Beethoven) celebra, e não é por acaso que a música de Mendelssohn, Mahler e Dukas (três compositores judeus proibidos pelo Nazismo), a de Bruckner (exaltado, com o alemão Wagner, e talvez ainda mais do que este, em “músico representativo da raça”, pelo também austríaco Hitler), e a de Shostakovich (vítima ele próprio de outro totalitarismo, o de Estaline) foram escolhidas para se justaporem e sobreporem ao “scherzo” original de Beethoven.
Na realidade, nada nesta peça é uma “brincadeira”, um “scherzo” mas antes, se a música falasse, um aviso: somos aprendizes de feiticeiro prestes a destruir o que de melhor construímos ao longo de milénios de evolução humana.
Sérgio Azevedo