Isto não é uma Passacaglia é, na verdade, uma passacaglia! A ironia do título presta homenagem a um dos meus pintores favoritos do movimento surrealista, René Magritte (1898–1967), e à sua icónica obra
La Trahison des Images (
A Traição das Imagens), mais conhecida como
Ceci n’est pas une pipe (
Isto não é um Cachimbo). O refinado e mordaz humor criativo de Magritte sempre me fascinou, e ainda que a minha obra musical não tente de forma alguma representar aquela (ou qualquer outra) pintura do mestre belga, encontro alguns pontos de convergência da minha linguagem musical com características de Magritte e do surrealismo em geral, nomeadamente a utilização de elementos tradicionais, mas não alinhados de forma ortodoxa. Assim, a minha
Passacaglia que não o é mas é, está formalmente assente no tradicional princípio de repetição de um baixo
ostinato sobre o qual se vão sucessivamente construindo variações, ainda que eu não utilize essa técnica de forma linear nem estrita. Por exemplo, o próprio ciclo do baixo
ostinato que serve inicialmente de base à construção musical vai sendo livremente adulterado ao longo da peça, não só circulando entre instrumentos e mudando de registo, mas também metamorfoseando-se na sua estrutura, tempo, ritmo, direcção, etc., chegando mesmo a transformar-se em sumptuosa melodia num longo solo de flauta alto. Ao revisitar no séc. XXI esta forma musical tão antiga (as origens da
passacaglia remontam à Espanha do início do séc. XVII), procurei uma simbiose entre tradição e modernidade que, tal como o cachimbo de Magritte, propõe um jogo de ilusões. Afinal, sendo intrinsecamente etérea, a Música é, porventura, a mais ilusória das artes.
Luís Carvalho