A obra é dedicada ao
Sond'Ar-te Electric Ensemble, a Nádia Murad, Nobel da Paz, ativista de direitos humanos e primeira Embaixadora da Boa Vontade para a dignidade dos sobreviventes de tráfico humano das Nações Unidas e a todas as ‘Murad’ que lutam pela dignidade humana, pela dignidade das mulheres e pela proteção dos direitos das mulheres, particularmente vulneráveis aos fundamentalismos e às discriminações étnicas, políticas e religiosas em todo o mundo.
“Trama – «mural para Murad»” teve como ponto de partida, ou ideia primeira, a questão do género, aliás como em “E(H)LLE(M) – sete momentos em forma de trança” só que, desta vez, não é num tributo às mulheres-símbolo da emancipação feminina e das lutas pela igualdade de género num mundo maioritariamente político e socialmente democrático e livre, mas num tributo às mulheres sobreviventes que, como Nádia Murad, lutam pelos direitos básicos da condição humana (e, em particular, da condição das mulheres) proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, adotada em 1948: “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, a sua fé nos direitos fundamentais do ser humano, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher (...)”, um dos preâmbulos que abrem a Declaração de 1948, e referindo-se à Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco em 26 de junho de 1945, após a II guerra mundial. Particularmente vulneráveis sobretudo em situações de conflitos armados e vítimas de regimes e organizações fundamentalistas, e não só, as mulheres e meninas em todo o mundo são violentadas, coagidas, escravizadas, espólios de guerra, vítimas de tráfico humano, vítimas da violência de género, vítimas de uma sociedade preconceituosa, de culturas enraizadas que impedem a instrução das mulheres impreparadas e incapazes de prosseguirem na sua condição humana. Particularmente nos conflitos armados no Médio Oriente, um mundo islamizado, onde imperam organizações como os Taliban, Isis, Ansar Allah e outras (Síria, Afeganistão, Iraque, etc), ou numa África subsariana com conflitos de ordem étnica, territorial e religiosa (Nigéria, Rwanda, Sudão etc), ‘Murad’ é apenas o símbolo da capacidade de resistência, de luta e de sobrevivência das mulheres nestes mundos adversos.
“Trama” passa por diversas culturas numa linguagem contemporânea sem qualquer intenção de decalcar civilizações. Por vezes são, simbolicamente, utilizadas técnicas instrumentais específicas que aludem timbricamente a determinados instrumentos tradicionais como o alaúde, a cítara, o harmónio, os tabla. Ou, é simbolicamente utilizada a voz (canto na flauta) e outras técnicas de composição, como as heterofonias ou o ritmo livre (ritmo vocal livre em certas culturas da África subsariana) ou estados de espíritos próximos da meditação e transe (as passagens repetitivas e circulares). “Trama” é também sinónimo de textura. Numa relação com a tecelagem no entrelaçamento de fios de trama (transversais) em tear de um qualquer artesão, é disso melhor exemplo a passagem dos compassos 16 a 93, ou dos compassos 133 ao 144. Com diversos espaçamentos entre os fios, metáfora das linhas melódicas que constituem o tecido da obra musical: uma ‘trama menor’ (significa ‘fios” menos espaçados entre si) como, por exemplo, dos c. 133 ao c.144, ou uma ‘trama maior’ (significa fios mais espaçados entre si) como, por exemplo, dos c. 16 a 93. Finalmente, as fontes sonoras da parte eletroacústica têm origem em excertos da parte de piano executados por Cândido Lima, gravados na Academia de Música de Santa Maria da Feira, transformados e recriados em estúdio pela compositora. Como fonte poética exterior mistura-se, na orquestra e na eletrónica, a voz humana, no caso a voz da própria compositora que diz, em gravação, palavras alusivas à temática da obra, elementos simbólicos fundamentais da partitura.
Ângela Lopes · 22 de novembro de 2022 · Folha de Sala (Concerto Monográfico – Ângela Lopes · 8/12/2022)