CÂNDIDO LIMA: ELEMENTOS PARA UM POSSIVEL PERFIL
por Fernando Lapa
Para além de todas experiências, conquistas e
descobertas, há na obra de Cândido Lima um conjunto de características, que
afirmam uma invulgar coerência artística face ao mundo da música contemporânea.
É desse fundo comum que tentaremos fazer de seguida o balanço possivel.
Imperfeito, não exaustivo, efémero.
A personalidade de Cândido Lima aparece-nos
desde sempre associada a um forte sentido de modernidade, na acepção mais genuina
que este conceito comporta. Um pensar, tentar e fazer sempre novo, que
facilmente sugere um outro conceito – o de vanguarda – pese embora os
significados ambíguos com que este termo tem sido utilizado por vezes. Cândido
Lima assumiu-se sempre no pelotão da frente, na primeira linha, face às
tendências conservadores da nossa prática musical, tanto na escola como nas
salas de concerto, para não falar já da difusão via rádio ou televisão.
Incompreendido, umas vezes, gerando cumplicidades, outras. Ganhando território
ao adversário, sem guerras, paulatinamente. Pela atitude e pela coerência.
Neste aspecto digno companheiro de luta de uma ilustre geração de criadores, em
grande parte responsável por algumas mudanças lentas, mas de fundo, na criação
e na prática musical, hoje: Jorge Peixinho, Constança Capdeville, Emmanuel
Nunes, entre outros. Com a figura patriacal de Fernando Lopes-Graça, em fundo.
Curiosa imagem desta realidade é a subtil mas profunda atitude de Cândido Lima
face a alguns destes seus companheiros de jornada já desaparecidos – de
personalidades artísticas tão diferenciadas.
Em tempos de grande especialização –
fragmentação e sectorização de saberes e de práticas – Cândido Lima assume-se
como um humanista, na melhor linha da tradição renascentista, ela mesma uma
reencarnação do ideal grego (velho de séculos, mas tão novo de implicações e de
esperanças). Numa ânsia se tudo explicar, saber e experimentar, Cândido Lima é
assim uma daquelas pessoas, raras hoje em dia, que tem uma curiosidade quase infantil
pelo novo, pelo desconhecido. Curiosidade e experiência que tocam uma
infinidade de mundos, aparentemente sem contactos entre si: tanto se interessa
por Bach, como pelas matemáticas; impressionam-no as gravuras rupestres do Côa
e trabalha sobre poemas de Fernando Pessoa; recorre a músicas do mundo, mas
integra a electrónica nas suas obras; seduz-se pelo teatro, pelas artes
plásticas e pela imagem, mas encanta-se com a luz e com o movimento das coisas;
produz reflexão filosófica e lida com o aleatório; analisa e ensina as grandes
obras da história da música e cria um grupo de música contemporânea; etc.,
etc..
A sua música é por isso mesmo um reflexo destas
duas vertentes: singular-plural, uma voz-polifonia, uma escolha – muitas
experiências; uma orientação – campo aberto. É uma música com identidade e com
história. Que tem como parentes afastados e próximos: a música medieval (canto
gregoriano) e músicas extra-europeias (África, Oriente, Ilhas do Pacífico); as
heranças de Mussorgsky, Stravinsky, Bartok, Messiaen; vizinha de Ligeti e,
sobretudo, Xenakis. Este é um campo escolhido e assumido coerentemente ao longo
de anos. Sem grande escola entre nós – dado o mais geral alinhamento da criação
contemporânea portuguesa pelo dodecafonismo e posteriores heranças – este
posicionamento estético valeu-lhe algum isolamento. Mas nunca, solidão.
A sua música valoriza o global, mas está
povoada de inúmeros pequenos gestos. Na fronteira entre o defenitivo e a
improvisação, apesar de uma notação extremamente pormenorizada. Apaixonada pela
expressão do caos e da ordem das coisas, pela coexistência do acaso e da
necessidade. Traduzida em matéria plástica, moldada, com texturas, formas e
cores. Sobretudo, com luz. E com uma ambição: transcender o papel em que é
fixada e projectar-se para além do espaço em que toma forma e corpo. Ou, nas
palavras do próprio compositor: “O efémero e a eternidade. O dom dos deuses de
tudo traduzir por música. Pequeninamente, metaforicamente, mas exprimi-lo”.