Entrevista a Cândido Lima / Interview with Cândido Lima
2004/Jul/07
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É
um bocadinho difícil encontrar o ponto nevrálgico, concreto, visível da minha
formação, a menos que vá à infância e ao contacto e à minha própria herança
familiar, uma vez que há tradições na família que se reportam muito às músicas
populares, nomeadamente às tunas rurais que pulularam aí pelo país ao longo de
décadas e décadas. E na minha família havia isso também. Lembro-me
perfeitamente na minha infância de ouvir a tradição lisboeta dos filmes e do
fado, etc., uma vez que muito cedo gente da minha família minhota imigrou para
Lisboa. Acabei por contactar muito com a música, inclusive com tios que
cantavam o fado e as minhas primeiras memórias têm a ver com o timbre, o som, a
voz do fado clássico, digamos assim, da Amália e do Marceneiro. Outra
curiosidade é o facto, pouco frequente nas aldeias, de existir um órgão de
tubos. Estou portanto muito ligado à música do campo, à música cantada no
exterior das ceifas e dos trabalhos da aldeia, mas também à música litúrgica,
uma vez que sou de um meio extremamente religioso, mesmo que seja um religioso
ambíguo e híbrido, entre o sacro e o profano, entre o pagão e o religioso. E
essa dicotomia marca certamente psicológica, humanística, etc. As coisas começam
por aí, com as minhas referências de infância, dos meus 5, 6, 7 anos. E havia
gente na família que tinha uma prática intensa nessas cerimónias. Lembro-me que
não só irmãs como irmãos até e tias tinham vozes perfeitamente luminosas, que
são das recordações mais belas da minha infância e juventude. Digamos que esse
é meu o lado genético e cultural que posso referir relativamente às minhas
origens.
Depois
haveremos de encontrar mais tarde aquilo a que eu chamo os arquétipos (pegando
nas designações elásticas do termo) da água, do mar, de todos esse símbolos que
marcam a minha vida e que têm a ver com o meu pai marinheiro. Sou de “gente
rural”, mas o meu pai foi para a Marinha muito cedo e portanto habituei-me
também a lidar com as coisas do mar, nomeadamente com a partida da cidade de
Viana do Castelo.
A
música culta começa quando fui muito cedo para o Colégio – Seminário. Muito
cedo e às escondidas, comecei a interessar-me pela música. Mesmo que não
quisesse havia uma prática de coral de que eu fazia parte. E tenho daqueles
memórias absolutamente fantásticas de quando tinha 12, 13 ou 14 anos, ver obras
de Orlando di Lassus a serem cantadas por rapazes com 10 ou com 16 e 17 anos.
Marca-me muito porque embora fosse funcional e circunstancial e não para profissionais,
tinha aquele lado erudito… a música litúrgica e toda essa mistura. E já havia
esses repertórios mistos.
Para
quem tivesse uma natureza musical que já vinha de família, como eu, era natural
que fosse absorvendo isso de uma maneira natural e inconsciente. Tinha 14 ou 15
anos quando comecei a ter contacto com o Harmónio e como não tinha dinheiro,
comecei a contactar com irmãos emigrados para que me trouxessem determinado
livro de França, de Paris. Como começava a ter consciência do papel da música e
dos livros, pedia aquilo que os colegas mais velhos iam tocando. De facto,
comecei muito cedo a apaixonar-me por Paris e é uma boa paixão que ainda se
mantém. Lembro-me que o primeiro livro de música que me trouxeram, foi “Les
Classiques Favoris”, que eram colectâneas de arranjos de músicas clássicas de
Mozart, Glück, Schubert, Beethoven, Bach, etc. Mesmo aqueles que habitualmente
não fazem parte dos estudos do Conservatório estavam lá.
A
dada altura começo a tocar harmónio e começo a distinguir-me como organista.
Porque é que eu fui organista? Se me perguntarem não sei. Provavelmente por me
verem tocar… era escolhido para ser organista. E foi nesse ano, quando tinha 15
anos, que pedi ao professor de Solfejo (o que fazia os tais cânticos
religiosos) para se iniciar um curso de harmonia. E ninguém me disse para pedir
lições de harmonia, ou de composição, suponho que se chamava assim! Ainda tenho
o papel com os primeiros acordes paralelos. Mas suponho que foi a única lição…
O senhor não tinha muita prática de ensino, nem sabia muito bem o que era…
nunca terá estudado a composição em termos académicos. Mas o que é curioso é eu
ter pedido nessa idade um curso de Composição… que depois irei repetir passados
dois anos, aí já com o compositor Manuel Faria. E foi com esses 15 anos, quando
estava a estudar harmónio, que comecei a tocar piano e a ter contacto… digamos
que há quase uma osmose entre a necessidade de criar, de adaptar-me e de me
encontrar com a criação propriamente dita e com a execução da composição. Se me
perguntar se há uma separação entre uma coisa e outra… não me parece.
A
minha formação e o contexto em que vivi, em que eu tive a minha educação, não
só familiar, como religiosa, institucional, académica, foi extremamente
ditatorial e sectária em termos de gosto e de ideologias. Isso impressiona-me
muito… porque havia de facto aquele maniqueísmo: isto é mau, isto é bom… havia
aquela separação. E tenho muito clara a ideia de que entre os meus 16 a 19
anos, sentia que a música clássica era “aquilo”!… tudo o que não fosse, era
mau. Eu sou do tempo da geração dos anos 60 e lembro-me perfeitamente dos
Beatles, dos Rolling Stones e de outros serem considerados absolutamente
proscritos relativamente aos clássicos. Anos mais tarde e ainda hoje, para
alguns colegas meus, é absolutamente impensável ouvir ou aderir com alguma
naturalidade a essa música, como eu oiço esses músicos há décadas. Portanto, eu
sempre convivi com essa fronteira, não individualmente mas em “confronto” com
ela e impressiona-me como me emancipei disso e como gradualmente fui
encontrando um espaço livre e um espaço de grande liberdade e sobretudo de
grande assunção do respeito pelos outros a todos os níveis.
Mesmo
que ainda tivesse mantido essa ideia de separação entre culturas, europeia e extra-europeia,
no contacto com África e com outras formas de pensamento, ela desapareceria.
Parece
que muito da minha música, sobretudo o aspecto melismático, o aspecto quase
salmódico, tem a ver com esta tradição e com tudo isto que eu acabo de dizer.
Não só aquilo que eu ouvia na minha infância, do canto gregoriano aos mais
velhos, como também a música árabe e a música islâmica que eu ouvia em África.
Há
entretanto um salto descomunal que foi a minha passagem, quase por acidente,
pela Faculdade de Filosofia e que foi essencial.
Quando
vim da Guiné, tinha sido nomeado para professor de Canto Coral no liceu Sá de
Miranda mas como cheguei tarde, puseram outro professor e eu fui excluído.
Escrevi cartas ao Marcelo Caetano e fui nomeado no ano seguinte. Mas enquanto
não fui nomeado, inscrevi-me na Faculdade de Filosofia. Marcou-me para toda a
vida, porque depois já não saí no ano seguinte, estive 5 anos na Faculdade de
Filosofia e foi isso que me marcou: os estudos dos grandes filósofos, coisa que
já tinha feito um pouco mas muito superficialmente nos meus 18 anos, naquele
ciclo liceal. E a verdade é que havia professores que faziam aquilo como devia
ser… Estudar Kant, Hegel, Kierkegaard ou outros grandes clássicos era, em
princípio, estudar de acordo com aquilo que eles eram, embora alguns tivessem
tendência para torcer as coisas e assumirem-nos naquilo que eles poderiam ter
de afinidades com as suas próprias ideias. Mas eu também era professor no
Conservatório de Braga e no Conservatório do Porto e estudava livremente e não
como um estudante que precisava de fazer um curso. Fiz o curso romanticamente…
tal como os doutoramentos que fiz em Paris mais tarde.
A
técnica, o estilo e a importância das Ideias
A
minha música tem uma técnica quase intuitiva, que não são propriamente as
técnicas que estão codificadas nos livros, mas sim uma técnica mais imbuída de
um pensamento quase misterioso e quase invisível. No fundo tem a ver com a
intuição. Tem a ver com os nossos próprios arquétipos de auto-organização.
E
os pontos de origem são extremamente variados, são diversos, e eventualmente
prolixos. Mas uma das coisas que mais admiro nos clássicos como Bach ou
Beethoven, é a unidade. Mesmo nos românticos é a unidade, independentemente da
diversidade.
Em
grande medida, concordo com o Pierre Boulez, cujas obras apresentam de facto,
uma conexão absoluta… são obras de aço: é absolutamente impensável que na obra
de Pierre Boulez haja elementos espúrios ou elementos estranhos do ponto de
vista do vocabulário e da linguagem,. Poderia pôr outras reservas, mas é um
caso extremo de organicidade, coerência e unidade. Para mim, uma das coisas
mais interessantes que existem na composição é a diversidade na unidade, ou
melhor, conseguir-se a unidade a partir da diversidade. Admito que isso se
encontra nas minhas obras. E há eixos a partir dos quais eu tento essa
unificação, essa unidade; interessa-me que um ouvinte que está a usufruir de
uma obra minha tenha essa noção de identidade. Para mim, uma das coisas mais
importantes numa obra de arte é nós podermos ver através dessa obra uma
identidade do indivíduo. Não sei se o consigo mas tenho elementos que me
parecem muito concretos e muito palpáveis que vem do que já falei há pouco… da
minha infância… E é evidente que reflicto sobre estas coisas porque mo
perguntam há anos.
Questionar-me
é um bom vício que tenho. Porque também faz parte de uma atitude claramente
filosófica… uma pergunta quase infantil… Porque as crianças também passam a
vida a perguntar. Esse é o lado mais genuíno do filósofo e nesse aspecto,
mantenho-me tal e qual como poderia ser na infância. Para mim a questão central
é a de haver ou não uma identidade numa obra, de haver ou não alguma
justificação para que o compositor tenha isso em conta. Porque vemos que, na
pós-modernidade, as pessoas mão têm isso em conta mas sim o imediatismo, a
comercialização da arte. E para mim impõe-se um problema ético relativamente a isto:
se faço uma obra, tendo consciência de que essa obra é quase uma cópia de A, B
ou C, então isso é um roubo… uma
espécie de técnico copista de uma obra de arte. É como conferir legitimidade
aos grandes reprodutores de uma obra de Da Vinci, ou de Monet.
Em
relação à diversidade, acho interessante que o Pascal Dusapin, num livro que
foi publicado há meses, fale da minha música como uma “música de mille
couleurs”.
A
forma na composição: influências e processos
Sobre
a forma… É interessante que uma boa parte das pessoas que me falam sobre as
minhas obras diga que tem a sensação de que, quando termina uma obra, tinha de
ser ali terminada, o que significa que há uma forma muito precisa. Isto é, como
costumo dizer muitas vezes, há um timming e um tempo de vida para as coisas,
mesmo que seja uma redundância dizer um timming e um tempo de vida… mas a
verdade é que a maneira como se diz em inglês e em português tem um sentido
ligeiramente diferente. E isso tem a ver com a percepção. As minhas obras podem
parecer informais mais no sentido em que o curso ou o fluxo do som é diferente
de uma música do Xenakis, por exemplo, que é toda ela extremamente, pulsada,
uma vez que boa parte da minha música é extremamente fluida. Digamos que junta
um bocadinho do pensamento do Xenakis com o do Ligeti.
E
trata-se também daquilo a que eu aludi há minutos… a música árabe, a música de
Debussy, a música medieval do canto gregoriano e evidentemente a polifonia
renascentista, como tudo o que diz respeito a textura. As pessoas dão muita
importância a isso. Apesar de ter tido um contacto muito próximo e de ter
participado, de ter ido “para o meio” dos batuques africanos. Aí, nada é fluxo,
ou melhor, é um fluxo mas micro-temporal em que se passam coisas absolutamente
mirabolantes. As pessoas não imaginam a ausência total da previsibilidade que
há no batuque.
Quando
se diz que há uma grande diversidade de materiais na minha música é porque há
eixos que controlam isso e disso tenho consciência absoluta nestes últimos
anos: são sobretudo a harmonia que provém de certos compositores de certas
tradições. Se se pegar em agregados meus ou de orquestra ou em agregados para
música de instrumentos solo vamos encontrar ali uma mistura dos agregados de
Pérotin, de Machaut, de Stravinsky, de Debussy, de Xenakis… Há uma espécie de
criação de um complexo de intervalos e de agregados que depois retiram a identidade
aos outros, que é o que os outros fizeram. Se pegarmos em agregados de
Messiaen, e se os dissecarmos vamos encontrar o Debussy e o Ravel . Se pegarmos
em certas harmonias de Pierre Boulez, vamos encontrar Scriabine lá também… e já
não falo só em Répons, falo também de outras obras. Portanto, há aí uma
acumulação… um reservatório que permite que tudo o que vai ser composto ao
longo do tempo, lhe imprima uma determinada força orgânica. E é nesse sentido
que se poderá ter a sensação que há alguma unidade e que, parecendo haver um
“poliestilismo”, esse “poliestilismo” é completamente submerso por uma unidade.
Uma unidade harmónica e melódica… Porque há um intervalo que gere isso tudo que
é o intervalo de 2ª Maior e em alguns casos aparecem outros intervalos que têm
a ver com a ressonância natural dos acordes: a 4ª, a 8ª, etc. No fundo, toda esta música
tem a ver com técnicas que eu não utilizo explicitamente de uma maneira geral,
a não ser numa época em que estava a estudar apaixonadamente certas técnicas,
mesmo de matemáticas…
Todo
o trabalho que fiz na minha juventude, tem a ver com isso… de contraponto, de
harmonia funcional, de estudos de direcção de orquestra e de análise com o
Michel Tabachnik e Gilbert Amy, ou
os estudos que fiz e os contactos que tive com homens como o Pascal Dusapin e
sobretudo as minhas leituras… Além disso, durante os anos 70 havia um programa
de rádio chamado “Folclore do Mundo”, que me habituei a ouvir desde muito cedo.
Não eram programas de “folclore do mundo” mas sim Etnomusicologia, o que hoje é
chamado de “Musica do Mundo”.
Quando
fiz programas de televisão, fiz intervir toda essa minha paixão pela
diversidade das coisas. Por um lado, fazia isso, por outro, apaixonava-me mais
por aquilo que fazia pela diversidade. Não só em relação à música europeia mas
também pela a música contemporânea. Em toda a minha acção como pedagogo e
professor, como animador na televisão e na rádio, tive sempre em conta todas as
grandes estéticas contemporâneas, desde o serialismo às músicas formalizantes,
à música dos neo-clássicos, dos pós-modernos, etc. Dei sempre importância a
isso… Mesmo às músicas mais marginais ou que estariam nas fronteiras entre o
erudito e o ligeiro. Não só como homem público, porque nessa altura estava a
falar para o grande público, mas fazia-o com uma grande convicção.
Mas
isso era uma coisa… outra era o meu trabalho como composição. Por isso é
que digo que como pedagogo e
animador cultural, não sou livre. Como compositor sou!
Há
uma expressão ou opinião que o Pierre Boulez me deu quando, numa entrevista
sobre os eixos condutor de um pensamento ou de um estilo, lhe perguntei qual
era exactamente o eixo, a sua grande preocupação ou grande arquétipo, o que
pretendia obter na sua obra: “Gostaria que na minha obra, pudesse dar a ideia
de uma obra completamente livre e ao mesmo tempo completamente estruturada.” E
é isso que se deu nas suas obras, que parece muito mais fluida e que não tem
nada a ver com a música de Xenakis, de Varèse ou outros… De facto, é uma obra
extremamente estruturada em que nada é deixado ao acaso e em que depois há uma
flutuação, digamos assim. E eu perguntava: “E a forma?” ”A forma faz-se com
balayage, apagando e fazendo reaparecer coisas”. E na verdade, parece que
estamos a ver os materiais a aparecer e a reaparecer. E isso acontece um pouco
comigo.
Há,
por exemplo uma obra minha que está em CD, “Aquiris”, sobre a qual, suponho que
músicos compositores da Escola Superior de Música de Lisboa, me transmitiram a
impressão de julgarem que era uma música improvisada… e é uma obra de 21
minutos! Eles pensavam que era uma obra improvisada e a obra está escrita de
fio a pavio, de nota a nota, do princípio ao fim, com técnicas complexas de
composição que se entroncam, ou que entroncam nos pensamentos de alguns
compositores que já mencionei.
A
forma nas minhas obras dá então essa ideia da imponderabilidade, dessa fluidez
livre, que tanto pode ir até à eternidade como pode ir até aos dois minutos ou
três. Mas eu vejo a minha obra, à posteriori talvez… como uma curva.
O
processo criativo e a comunicação com o público
Uma
das coisas que também me marcou e me entusiasmou sempre em Xenakis era a
sensação de que algumas obras nasciam desordenadas mas que a pouco e pouco iam
encontrando a sua ordem… e, de facto, talvez tenha sido o que marcou as minhas
obras sobretudo, as dos anos 70,
que criaram algum impacto junto do ouvinte. É muito provável que tenha
acontecido (obviamente) de modo intuitivo, pelas leituras e estudos que fiz
sobre o acaso, não só no plano da filosofia como no plano da física, no plano
das matemáticas. E houve até uma época em que eu achava que era interessante
lançar a confusão. Outras vezes pretende-se sobretudo criar a surpresa.
Até
pode parecer, e às vezes digo a mim mesmo, que o público não me interessa, mas
a verdade é que sou eu o primeiro elemento do público. Mas quando digo isso,
estou a pensar no público,
partindo do princípio de que a obra vai ser feita; mas também pode não
ser em relação ao público, pode ser a ideia em si. Se houver público, gostaria
que ele fosse surpreendido com isso. A ideia do início dos “Oceanos” era essa: como se uma
hecatombe caísse numa sala.
Eu
penso que a minha música é ligeiramente… não digo adocicada, porque não é para
uma boa parte das pessoas, mas tento eu próprio ter esse prazer sensorialmente.
Penso que esse prazer tem passado para o público. Mas não é pelo público poder
eventualmente ser adocicado ou ser adoçado com isto, que eu faço este tipo de
música. Eu faço-o porque tem a ver com uma tradição e com uma sensibilidade,
sendo que quando digo tradição, digo a tradição da minha formação e da minha
própria sensorialidade e sensibilidade.
De
facto há uma intenção muito forte de comunicação e eu divido-me entre aquilo
que para mim é primordial, ou seja, a minha liberdade interior, a minha
liberdade tout court, aquilo que há de intrínseco em mim e depois a realidade
social. Eu sei que, em princípio, a minha obra vai ser tocada porque se a estou
a fazer é eventualmente porque alguém ma pediu. Mas muitas das músicas que fiz,
fi-las não porque alguém mas pedisse mas por necessidade… Um dos aspectos que
eu procuro imprimir na minha partitura desde há muitos anos é a envolvência do
público. E existe a liberdade que dou ao público de não ouvir a minha música. E
tenho muito pouca propensão para propor a minha música, porque não me apetece.
Acho que isso deveria pertencer a outras pessoas… Há sobretudo um sentimento de respeito pela liberdade dos
outros. É sobretudo isso. E acho que é uma coisa tão pessoal, tão íntima… Se a
obra for feita fico feliz, se não for, fico feliz na mesma, não há problema.
Pelo menos fico feliz em saber que não magoo as outras pessoas e não firo as
outras pessoas com um produto que não lhes interessa e que vai contra as suas
sensibilidades, pelo menos há isso que fica salvaguardado.
Um
dos pressupostos e um dos princípios estéticos, humanos, psicológicos, etc. é a
envolvência, a circularidade do som, seja qual for a forma que tome essa
circularidade. Portanto, há uma necessidade de empatia e de simpatia com o
público,; isso é um facto e o primeiro aspecto fundamental da minha música, mas
essa está no mesmo plano hierárquico da minha liberdade individual. Logo, ao
escrever uma obra penso nisso.
Quando
tenho de escrever uma obra, ela passa pelo meu cérebro em forma de fantasmas.
Fantasmas reais, filamentos visuais escritos, sonoros e visuais.
E
é assim que as coisas acontecem. É evidente que muitas das vezes as coisas
acontecem ao piano, mas nem sempre. Ontem, por exemplo, estive no café a encher
uma toalha branca (adoro papéis brancos) a escrever uma boa parte da obra que
estou a escrever agora para clarinete-baixo. Isto é, as coisas acontecem de uma
forma caótica mas ordenada do ponto de vista da ideia. Depois são os princípios
que estão armazenados no cérebro que vão controlar e gerir tudo o resto. O
resto é um trabalho de criação de motivos, de intervalos, de harmonias, e
depois quando se trata (e isso está no texto explicativo da obra) de uma obra a
solo para um instrumento solo, põem-se problemas de harmonia, de orquestração,
de espacialização. Independentemente de ter ou não ter a participação de meios
electrónicos, ou electroacústicos ou digitais. Mas depois esses materiais
entrelaçam-se, ou fragmentos melódicos ou rítmicos, ou simplesmente tiras de
som, digamos assim, tipo modelagem ou modulação do som. E as coisas acontecem
assim, como se estivéssemos a fazer uma sinfonia, tivéssemos um motivo e a
partir desse motivo estivéssemos a gerar tudo o resto. Aqui não é o motivo que
vai gerar tudo o resto, mas sim um mundo harmónico, melódico, estético que é o
background do compositor.
Depois
é criar o “Ncàãncôa” ou “Il tempo dell’Acqua” ou criar esta obra… No fundo são
um caleidoscópio. São vários personagens que falam a mesma linguagem só que
cada um fala durante o seu tempo, e cada um tem a sua própria autonomia. Mas a
verdade é que há elos que o ligam, ou que ligam essa personagem às outras
personagens.
A
Harmonia e a problemática do som-nota
Para
mim a nota não existe… E quando falo de harmonia, e de melodia, nunca o digo como um fim, como um
objectivo, mas sim como um meio.
A
harmonia sempre foi utilizada de acordo com certos princípios e certos
preceitos históricos e estéticos das várias épocas. Eu continuo a dizer que
hoje, no meu caso concreto, é
fundamental ter a noção de um sistema harmónico ou de sistemas harmónicos, mas
nunca com o sentido utilizar a harmonia como um fim em si, como um objectivo.
Para outros pode ser, e as pessoas podem ouvir esse harmonia como tal. Mas a verdade
é que me parece que lhe “dou a volta”… Quando falo do ritmo, da melodia, do
timbre, quando falo da melodia da nota, tenho sempre como objectivo fundamental
o hedonismo do som. O gozo do som em si. Quando digo o som em si, também digo o
indivíduo em si, o seu interior e o meu interior. Portanto, quando faço música
a sério, a não ser que seja circunstancialmente, não me interessa a harmonia,
mas penso nestes termos. Posso mesmo dizer que ao escrever, o meu fascínio é
obter um som rico em si mesmo, e a harmonia, a melodia e o ritmo, seja qual for
a dimensão operante, que leve a um gozo de uma sonoridade que, por analogia,
pode ser chamado de timbre, embora o timbre seja outra coisa. É um fenómeno
físico como sabemos. Mas de facto, em última instância, aquilo que me preocupa
em termos especificamente musicais é o som em si. É o gozo do som em si e a
nota não tem sentido. Tenho de tratar da nota porque tenho de a escrever e
tenho de me servir dela como um meio, mas continua a ser um meio. Nesse aspecto
estou inteiramente de acordo e tomo como referência o que o Varèse dizia: que
os músicos pensavam muito em nota e menos em som. Mas aí já está uma visão profética da
electroacústica e do som por computador, etc. Seja o que aconteça, interessa-me
comunicar com o ouvinte pela sonoridade, pelo prazer em si. No fundo, é um
prazer imediato do som e não pelas etiquetas. Para mim, a obra tem um perfil,
ou vários perfis, ou curvas, de que eu falo muitas vezes. E a morfologia de uma
obra, ou as morfologias, ou seja, as partes que constituem uma obra são importantes. Mas sempre
como um meio e não como um fim, ainda que seja difícil destrinçarmos e
encontrarmos fronteiras ou delimitarmos fronteiras entre uma nota e o som, ou entre
a harmonia e a sonoridade, um acorde e a sonoridade, ou um agregado e a
sonoridade, entre um ritmo e o
tempo. Será sempre difícil. Mas numa obra de 5 ou 10 minutos, em que tudo isso
está trabalhado com alguma eficácia é possível que, de uma forma sintética, o
ouvinte capte esses valores que é som, a sonoridade digamos assim, o
supra-qualquer coisa e não a banalidade dos materiais.
Mas
eu penso que quando se está a fazer música electrónica… (e por isso é que uma
das disciplinas que sugeri para a Escola Superior de Música era a Orquestração
Electroacústica… a pensar numa orquestração à Debussy ou Mahler) estão lá os
arquétipos todos… todos esses ingredientes cerebrais, toda essa técnica… por
isso é que eu defino o contraponto em algo como a técnica das linhas da
Renascença… mas defino-o como a técnica da independência de entidades. E isso é
válido para a Sinfonia de Berio, é válido para uma Missa de Ockeghem, é válido
para uma Sinfonia de Webern. Portanto, para mim o importante no meio de toda
esta proliferação de intenções e de trajectos que uma obra sofre é que, em
última instância, o som em si seja o comunicador, que seja o elo de ligação
entre o compositor e o espectador.
As
outras Artes na obra do compositor
Há
uma integração e houve sempre uma preocupação, não no sentido obsessivo mas sim
pacífico, de intenção. Digamos que tenho uma preocupação de integração do todo
e de tudo. Sempre me interessei pelo lado visual das coisas, nomeadamente pelas
artes plásticas com que contactei desde muito cedo… independentemente de falar
com a natureza… Eu estive sempre em contacto e eventualmente as minhas origens
estarão aí. Por isso é que às vezes tenho receio de quando falo em audiovisuais
e de multimédia do quanto me interessa essa matéria… e poder dar a entender que
as obras que possam integrar esses meios possam ser obras menos abstractas,
menos musicais e mais híbridas. Procurei aliás que essas obras valham por si,
mesmo que tenham ingredientes ou que possam ter a participação de meios
audiovisuais. Isso é um ponto de honra. Porque há o perigo de ser acusado de
não ser músico, ou de não ser bom compositor e portanto tento defender-me e
quis ficar sempre um pouco afastado disso.
Portanto
interessa-me saber que quando estou a escrever uma obra, mesmo que ela esteja
pensada também em função de alguma dimensão visual, ela se aguenta com a sua
dimensão exclusivamente musical…
Mesmo
“Polígonos em Som e Azul”… que já foi feita nos Encontros de Música Contemporânea.
Há uma obra que é curiosa e que também lá foi feita, que tem a particularidade
de ter espaços na própria partitura para serem encostados os slides, e isso foi
uma novidade. Na própria partitura aparecerem os slides… ainda não estão lá os
slides mas é uma questão técnica… Há um caso extremo, extremo, extremo, e que
não posso dizer que tenha sido “o” ponto de partida para todas essas outras
experiências, que é a “Toiles I” para 48 cordas, salvo erro; o que é curioso é que
fiz essa obra a pensar nas orquestras portuguesas, num contingente que a
tornasse exequível, mas nunca foi feita. Logo que eu regressei de Paris, as
orquestras portuguesas começaram a morrer todas e começaram a diminuir de
contingente, passados uns meses ou um ano… ou por reformas ou por morte… Enfim…
E
foi pensada enquanto obra sonora, enquanto espaço sonoro e espaço plástico. Tem
uma série de rolos em forma de pergaminhos com várias partituras, com a linear,
a 3 dimensões, com 5 cores para destrinçar as 5 famílias das cordas, etc. Essa
obra, foi portanto escrita e pensada em partitura tradicional. Faz lembrar
ligeiramente Lontano ou Atmosphère ou Metastasis de Ligeti e Xenakis
respectivamente. Do ponto de vista da massa, o pensamento é completamente
diferente. Portanto o princípio é esse: seria um cluster que não é porque
depois é trabalhado. Mas foi pensado, de facto, como se eu pudesse estar ao
mesmo tempo a escrever em pauta e em clave e ao mesmo tempo a desenhar aquilo e
a fazer uma espécie de Kandinskiana ou talvez Mondriana ou aquele outro… que é uma espécie de quadro branco a
partir do qual se iriam fazendo iluminações na partitura…
Mas
é uma obra extrema em que, como não era possível estar a escrever em duas
notações completamente diferentes, fi-lo de maneira a que outra pessoa pudesse
fazer posteriormente e obter o resultado visualmente interessante, o que seria
sempre discutível… E a ideia era que ao executar a obra, eventualmente se
passasse a tela. Portanto fiz isso como numa tela, como se fosse uma tela e depois a pessoa que colabora comigo
escreveu a partitura plástica da “Toiles I”. No fundo é uma partitura gráfica. Há
3 obras, digamos assim, da mesma partitura: a partitura orquestral; a partitura
visual simplesmente; e depois a partitura ao computador escrita a partir
daquele rolo, daquelas páginas transparentes que o sistema de UPIC permitia.
Portanto, este é o caso extremo da relação íntima e orgânica entre o som e a
imagem, entre o gesto musical e o gesto plástico.
Tudo
isto tem de facto a ver com um gosto pela teatralidade da coisa. Mesmo que seja
uma teatralidade íntima ou intimista, eu tenho uma necessidade de projectar
para fora e de criar, digamos assim, personagens… Um dia, apresentei ao ar
livre os “Oceanos”, no antigo batalhão de cavalaria de Viana do Castelo, e
havia de facto um teatro naquela música, quer dizer, os personagens eram o
público. Os personagens eram as imagens que nós criávamos com projectores sobre
as árvores, etc. Há uma necessidade interior… Nunca mo pediram, mas se um dia
me pedissem ou encomendassem uma ópera, eu não sei que ópera é que escreveria.
Seria uma ópera tradicional? Seria um espectáculo que estivesse paredes meias
com a ópera? E por outro lado há uma coisa muito importante: há um aspecto
relacionado com o teatro e com a ópera que é o texto, a palavra. A palavra
sempre teve uma importância primordial na minha música desde muito cedo. A voz
aparece muitas vezes…
Em
alguns casos não há texto sequer. .. Mas há outros em que desestruturei, em que
eu desconstruí o texto ou as palavras, o “Tapisserie I” e o “Tapisserie II” é baseado nisso, em que há
voz. Um dia também incluí , a partir das palavras, “Sol-oeils”, também destruturadas em “Momentos-Memórias
I”. Há de
facto situações em que o texto me serve como um instrumento. Como aparece
noutros compositores como Luigi Nono… Mas aqui ainda é de outra maneira. E se
me perguntar que função é que ele desempenha, a voz funciona claramente como se
fosse um segundo clarinete. E há experiências interessantíssimas… Um dia
pensava que estava a ouvir a voz, e olhei para a voz mais do que uma vez… não era a voz, era o clarinete que
estava a tocar. Quer dizer, era o clarinete que estava a tocar a sua parte mas
eu estava a ouvir a voz também. Isso tem a ver com a construção. Tem a ver,
digamos assim, com uma coisa muito concreta que aquilo que eu chamo mónadas.
Durante muito tempo chamei mónadas a estes intervalos, que são coisas
abstractas,neste caso não são coisas abstractas mas sim intervalos, que
intencionalmente passam de um instrumento para outro, de uma voz para a outra
em situações diferentes, e isso cria ilusões. Estes fios que ligam, mesmo do ponto
de vista do espaço, entre clarinete ou flauta, a flauta e a voz,
intencionalmente esse… e isso cria essa ligação e sobretudo essa
“des-identificação” do instrumento. Isso pode acontecer… Muitas vezes estou a
ouvir as minhas obras e parece que estou a ouvir uma viola e parece que estou a
ouvir trombone. Essas ilusões temo-las muitas vezes e isso acontece nas minhas
obras. Tem a ver com uma das ideias que sempre me apaixonaram que são os
paradoxos, visuais e auditivos.
A
escrita dos sentidos e os porquês da existência
Eu
penso que a obra é sempre uma metáfora da linguagem verbal. E portanto, tudo o
que se passa, mesmo no vocabulário musical de uma maneira geral utiliza-se como
analogia e sempre roubando as terminologias a outras artes. Quando dizemos que
alguma coisa tem luz, podemos dizer isso metaforicamente. Quando se fala da
cidade das luzes, ou quando se fala, seja a Atenas antiga ou seja Paris
moderna, tem a ver com a metáfora. Portanto, se eu acho que uma obra é
luminosa, se há passagens de Ravel, Debussy e de Mozart e se nós dizemos que
aquilo é luminoso, quer dizer que aquilo tem luz, mas é sempre uma metáfora.
Como é que isso está ligado à sonoridade, à cor, ao timbre, etc.? Penso que há
sempre uma relação íntima entre isso, mas sempre metafórica. A luz real é uma
coisa que tem a sua constituição ondulatória ou crepuscular ou qualquer coisa
assim… e o som a mesma coisa. Mas depois disso, se eu usar luz numa obra, luz
num espectáculo, pode ser uma redundância, pode ser uma tautologia…
Na
partitura podemos encontrar essas referências, ainda que sejam provisórias e
subjectivas, mas há essa intenção. Sempre. Pode não ser a obra toda, mas se eu
estou a criar um som, se eu estou ali a trabalhar… Nestes últimos dias, estive
ali a trabalhar no som do clarinete baixo, eles não me sabem bem por causa da
côr, e o piano destrói-me completamente, destrói o som do clarinete, então eu
tenho de a absorver. E isso eu posso-lhe chamar o timbre, a sonoridade, a côr,
o gosto, a sensoralidade, o grão, exactamente…(a textura), exactamente, a
textura…Eu falo muitas vezes do táctil. Quer dizer, o continuum do meu som, o
continuum do meu “discurso”, tem a ver com essa tactilização, com essa
sensibilidade, com essa propriedade que o som tem de ser táctil, mas é uma metáfora.
Se é táctil é porque as pessoas o saboreiam ou apalpam ou o tocam ou o gozam.
Mas é sempre uma metáfora, no fundo é sempre aquela preocupação da envolvência,
da totalização da música no indivíduo. E tem acontecido as pessoas sentirem
isso… No fundo, há uma intenção quase hipnótica, se eu quiser dizer que
hipnótica diga mágica, e que tem a ver com a música africana e com a música
extra-europeia que me arrasa do ponto de vista sensorial e do ponto de vista
mental.
E
esse lado hipnótico sempre me fascinou… o lado mágico das coisas. Não
propriamente o lado do oculto ou o lado especulativo… isso nunca me interessou
muito, embora tivesse lido e há muitas coisas nas minhas obras que têm o lado
oculto também… de simbologias, de números, etc. Também acontece isso. Mas mais
como graça do que uma matéria que me apaixone. É mais uma questão de sentir que
há uma regra, que há normas internas que dão outra consistência e que dão outra
leituras, porque eu gosto da polissemia da história, daquilo a que se chama a
polissemia. E gosto… No fundo, sempre me interessou a obra como um desafio e
como uma possibilidade de questionar as coisas e as pessoas e a mim próprio, e
não como uma obra (a não ser as de circunstância) que se faça sem qualquer
preocupação filosófica, ou sem qualquer preocupação humana ou isso,
simplesmente para agradar àquele público daquele festival X ou Y.
E
se eu perseguisse uma utopia, era um homem desiludido em relação ao meio no
qual eu vivo há décadas… Não persigo nada! Vivo simplesmente com prazer, com as
pessoas de quem gosto e que gostam de mim e vou fazendo música. Quer ma peçam,
quer ma paguem, quer não. Se me pedem uma música e me disserem que não têm
dinheiro, mas se eu acho que se justifica que se faça a música, faço a música.
Se pagam pouquinho, eu faço a música… aliás, muita da música que eu fiz foi sem
pagar. Se me apetece fazer uma música, mesmo que tenha outras obrigações,
faço-o. E muitas vezes fiz coisas em que financeiramente eu não beneficiava
nada, e deixava outras de lado que eram encomendas, por razões de outra ordem
que não fossem as dos valores materiais, ou porque era mais necessário fazer
aquela que tinha um prazo um bocadinho mais limitado… e eu podia pôr de lado e
dedicar-me à outra. Portanto a música, é para mim uma espécie de investimento
da minha própria existência. E a minha existência faz-se dos prazeres dos
livros, das pessoas, do dia-a-dia, do convívio, e do cumprir as minhas
obrigações interiores, independentemente das obrigações institucionais que
possa ter com outros.
Porque
é que eu existo?… Isso já não sei mas cá estou eu. Sou uma fatalidade do
universo… uma probabilidade em biliões no infinito. Sou músico, o que acho que
é uma fatalidade… é uma fatalidade de família, porque todo o contexto em que eu
vivi era anti-música. Quer dizer, mesmo quando estudei na minha adolescência e
na minha juventude… Fui perseguido como estudante… Eu chumbei no meu 6º ano
porque era músico e as pessoas pensavam que eu me dedicava muito à música. Ora,
naquele sistema, sobretudo no meu
6º ano, eu não podia tocar mais de 20 minutos por dia. Portanto, não era
possível, havia aí qualquer coisa extra, uma intuição e algo de inato.
E
durante uns 5 anos… entre os meus 17 e 21 ou 22, ou 16 e 20, 21, tive uma
prática intensíssima não como pianista mas como organista… e também fazia as
minhas pesquisas interiores mas sempre às escondidas. Depois mais tarde na
tropa, sempre à margem dos horários pré-estabelecidos… Eu na tropa, na Guiné,
só podia trabalhar piano fora das horas de serviço. E um dia fui apanhado e um
Major ameaçou-me de que me mandava para o mato. E nem tinha nada a ver com a
minha unidade específica, com o meu comandante directo. Portanto, “passei as
passas do Algarve” para fazer coisas delirantes, devo dizer, porque ao mesmo
tempo que havia uma ordem militar à qual eu estava sujeito, eu consegui, apesar
de tudo, fazer coisas do “arco da velha”, de indisciplina e de provocação da
ordem, mesmo em África. Há portanto uma fatalidade: eu sou músico por uma
fatalidade. E tenho prazer em sê-lo porque acho que algumas pessoas têm prazer
em ter-me como amigo e como músico.
A
Música e o contexto sócio-cultural português
Passou-se
do nada ao tudo, e dentro do tudo ao nada. Isto é, durante décadas houve uma
insensibilidade total para as coisas da cultura e da música. Se há compositores
que estão na História da Música mesmo dos clássicos da primeira metade [… do
século XX], é porque são sobreviventes, são os tais da fatalidade. Ou por que
vêm de famílias que justificam a sua existência. Não é o meu caso porque eu
vindo da ruralidade, … um homem sem quaisquer possibilidades financeiras é um
bocado mistério eu estar aqui. E já um dia me fizeram essa pergunta na rádio…
se eu tive este percurso, como é que eu sou um músico contemporâneo!? … e como
cheguei a Xenakis… Há coisas bizarras que mereciam talvez uma análise mais
aprofundada… Estou a pensar em Armando José Fernandes, Luís de Freitas Branco,
etc. São pessoas que, apesar de tudo, tiveram um enquadramento. A verdade é que
do ponto de vista global e da cultura global do país, nunca tiveram grande
reconhecimento… e de tal maneira que são conhecidos mas não há obras dele[s]
editadas, a não ser obras aqui e além, e talvez divulgadas em círculos muito
restritos, como a rádio. Como o Joly Braga Santos, que esteve na Emissora
Nacional… aí teve um centro que pelo menos, não digo devolver, mas que o
manteve vivo. E apesar de tudo, é de uma geração mais recente do que os outros
e até houve uma atenção maior para com ele.
Hoje…
isso mudou em termos de quantidade. Sobretudo nos anos 70 com as reformas das
escolas, e depois com o 25 de Abril, houve uma proliferação imensa de forças
contraditórias e paradoxais… e
hoje há imensos praticantes de música e há imensas escolas. A verdade é que
muitas vezes deixam-nos perplexos com a qualidade. O que eu quero dizer é que
há, de facto, muitos músicos a serem apoiados e há muita gente perfeitamente
integrada… e isso também tem muito a ver com a integração em certos círculos,
em certos centros de poder: político, económico, religioso… Normalmente não se fala no geográfico
mas é um dos factores que eu ponho em primeiro lugar. Devo dizer que a partir
do Douro para cima é uma coisa e do Douro para baixo é outra. E depois há
outras fronteiras… do Mondego para baixo é uma coisa, e do Mondego para cima é
outra. Na realidade, há esse tipo de valores que dificultam a abertura, que
apesar de tudo foi enorme, ao
longo dos anos. Agora… mutatis mutandis, é um bocado parecido com o que
acontecia antigamente, sobretudo se situarmos isso em individualidades, em
entidades, em figuras, que querem andar e que não o podem fazer. Mas temos é de
lutar. Mas eu acho que as coisas mudaram de uma maneira fantástica, desde há 20 anos para cá. Houve períodos
de caos, períodos de ganância, períodos de injustiças, períodos de assimetrias
mas parece que sempre houve.
A
ética, uma palavra a que eu dou muita importância, não existe muito. A
deontologia também não existe muito. E portanto há uma espécie de um terrorismo
em muitas situações, uma espécie de selva, de “salve-se quem puder”… é um
bocado isso… e quem me disser que não é assim, que me demonstre!
E
isso faz parte do arquétipo da alma nacional… É a alma nacional! O que é
engraçado é que quando lemos os textos antigos, nomeadamente escritores do século
XIX, o que até vemos muitas vezes nos recortes de imprensa de hoje… as pessoas são melancólicas, são
tristes, são pessimistas. Eu não! Apetece-me ver as coisas de uma maneira
optimista. Sei que o país é pessimista por natureza, a não ser que seja… e
então chega à loucura e ao extremo como aconteceu agora para a final do Euro
2004. Eu não sofri tanto, porque apesar de tudo sou realista, gosto muito de
futebol mas houve casos suficientemente desagradáveis para mim que me
defenderam, que pelo menos me fizeram evitar esse choque. Mas tudo o que
aconteceu é sintomático de uma alma completamente contraditória e
desequilibrada, isso é claríssimo, não é? Portanto, eu tenho, pela minha
natureza, uma componente fortíssima de optimismo. mas é-me tão natural a maneira
como reajo às adversidades ou a estas coisas que sabemos em relação à obra de
arte, e que já está explicado antes, que não me preocupo em excesso, ou é por
optimismo congénito, interior, ou é um optimismo e um realismo, talvez um
realismo talvez adquirido pela vida.