Entrevista a Carlos Fernandes / Interview with Carlos Fernandes
2005/May/28
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Percurso formativo: etapas e pontos
de viragem
Eu diria que a primeira influência
importante para mim foram os Beatles, porque quando eu tinha dez ou onze anos e
comecei a ouvi-los de uma maneira obsessiva, não havia nada que me
entusiasmasse tanto como aquelas músicas. Eu, muito infantilmente, achava que também gostava de fazer
aquelas músicas. Creio que foi assim que tudo começou (pelo menos tanto quanto
posso dizer). Depois e após algum tempo, fui aprender piano, e aos 16 anos,
comecei a escrever as minhas próprias canções bem como a escrever uns textos.
Mas depois a minha passagem ou evolução para a musica erudita esteve
principalmente relacionada com a influência do Cristopher Bochmann, que foi meu
professor de composição e com o qual estudei no Instituto Gregoriano. Aí,
finalmente, comecei a ouvir um tipo de música completamente diferente o que me
interessou e motivou bastante.
Entretanto, entusiasmei-me muito (e
desde muito cedo) pelos os sintetizadores e com as possibilidades oferecidas
pelos computadores. Eu tinha um Atari na altura e podia simular os conjuntos
instrumentais. Como não era propriamente uma pessoa que estivesse habituado
desde pequeno a tocar instrumentos (como o violino, por exemplo) ou a fazer
parte de conjuntos instrumentais, o computador era uma ajuda imensa.
Permitia-me por exemplo, escrever para quatro ou cinco instrumentos e ouvir
mais ou menos o seu resultado. Simultaneamente, eu gostava bastante de música
electrónica, do género Vangelis, quer pelas sonoridades quer porque sempre tive
ligação muito forte com esta música. Acho que ao princípio tal ajudou-me muito
porque de facto eu podia ter uma ideia muito fiel de como soaria um resultado
imediato daquilo que eu escrevia (uma simulação de como a música soaria) e tal
fascínio nunca mais me abandonou.
Eu comecei por usar o computador, em
composição, de facto para imolar os sons orquestrais porque isso me ajudava nos
meus processos de composição. E também porque eu já gostava de música
electrónica ou com sons electrónicos – isto não tem nada a ver especificamente
com os computadores. Por exemplo Stockhausen, um dos primeiros compositores de
música contemporânea que eu gostei bastante, apresentava aquelas sonoridades que eram para mim
completamente inovadoras, diferentes, num mundo diferente. Assim o computador
representa para mim duas partes diferentes, e a tal imolação da orquestra é só
uma ajuda para compor, porque na minha música electrónica acho que isso não
acontece… ou terá acontecido eventualmente nas primeiras peças, como na Ping-Pong
Dance (1990), uma peça quase instrumental e
que talvez pudesse ser feita com outros instrumentos, mas que na altura foi
feita por sons de sintetizadores. Agora nas outras peças mais recentes, aquelas
que eu considero que são compostas mais especificamente para computador, essas
já têm sons que nada têm a ver com os gestos instrumentais. São mesmo já só
para o mundo electrónico, acho eu.
Síntese Sonora vs Música Concreta: a
relação com a Electrónica
Eu diria que, embora não tanto na perspectiva de Pierre
Schaeffer, uso mais a abordagem de
sons concretos ou amostrados do que a síntese sonora. De seguida, utilizo
tratamentos que os alteram completamente, pelo que não é muito diferente da
estética do Pierre Schaeffer, visto que eu não gosto muito que o auditor
relacione os sons com a sua a origem. De facto, tenho um gosto especial em
obter timbres e sonoridades completamente afastadas dos sons que lhes deram
origem. Mas também já usei síntese. Ao observar todas as obras que já fiz neste
campo, eu diria que existe uma combinação dos dois processos mas com uma
predominância da música concreta. Para mim, o problema da síntese electrónica é
a sua morosidade e complexidade, ou seja, perde-se muito tempo com os segredos
da síntese: para alcançá-los investe-se muito tempo em algo que é mais
relacionado com a Engenharia e a Matemática e não com a música e a composição
propriamente dita... é um lado que me assusta um bocadinho e faz com que a
minha aproximação à síntese tenha algumas reservas. Portanto, a minha abordagem
actual é mais a partir dos sons que eu oiço, os quais me podem sugerir o
aparecimento de ideias musicais e de outros desenvolvimentos directos ou
indirectos.
O que eu desenvolvi aquando do meu mestrado não foi
bem um rumo, mais do que isso, foi uma experiência. Quando a fiz (Relativas
I-IV),
nunca tive a intenção de que todas as minhas peças futuras fossem por esse
caminho e fossem feitas assim. E realmente não foram. Mas tudo surgiu da
seguinte maneira: eu fiz uma peça para piano, a minha primeira peça que escrevi
ao chegar aos E.U.A. – até porque tinha um colega que era pianista, isto
garantia-me a estreia desta. Algum tempo depois, surgiu a hipótese de escrever
e outra peça, agora para violoncelo ou para piano e violoncelo. A minha ideia,
que na altura me pareceu bastante original, foi compor a peça para violoncelo
de determinada maneira, de modo que fosse possível adaptá-la ou tocá-la em
conjunto com a tal peça de piano feita anteriormente. Mas, claro está, a peça
de violoncelo é autónoma, podendo ser tocada sem a parte de piano. Assim,
existe uma peça de violoncelo, uma peça independente que pode ser tocada só em
violoncelo; existe outra peça para piano com as mesmas características; e ambas
podem ser tocadas em conjunto, como uma peça única para violoncelo e piano.
As combinações não têm nome. E são possíveis de serem
executadas. Já ouvi uma pessoa que me informou do número de combinações
possíveis – cerca de cento e tal combinações de eventos com as sete peças.
Algumas já foram executadas embora não a maior parte. Gostava também de
experimentar outras combinações porque ela estão pensadas para funcionar assim.
Depois, expandi esta ideia: já tendo piano, que é um instrumento de teclas, já
tendo violoncelo que é um instrumento de corda, fui buscar em seguida uma
flauta, que é um instrumento de sopro (para ser um tipo de instrumento
diferente) e também instrumentos de percussão, dois aliás (funciona como uma peça em que aparecem
os dois percussionistas). Em seguida, fiz também uma peça de electrónica – por
acaso, praticamente toda feita em síntese FM (modulação de frequência), um
processo já um pouco “antigo” mas era o disponível na altura… E finalmente fiz
um peça para orquestra. É claro que a peça para orquestra é uma peça autónoma
em que tanto pode ser executada
por um instrumento ou por um grupo de instrumentos. Agora, uns dos problemas é
que nas várias peças não existem muitos silêncios. De qualquer maneira, as peças representam meios diferentes
que se combinam entre si – voz, piano, violoncelo, dois percussionistas,
flauta, orquestra e computador ou electrónica. Eu já fiz uma
experiência com quase todas as partes ou peças em simultâneo e confesso que soa
um pouco confuso. Porque nenhum deles pode ter muitas pausas… se tiverem pausas
já não podem funcionar como peças isoladas. Mas nas combinações parciais (e já
executei cerca de onze), gosto bastante dos resultados como por exemplo para o
caso da percussão/electrónica ou para o caso em que utilizei quatro ou cinco
dos solistas em simultâneo.
A combinação de instrumentos musicais com
electrónica interessa-me bastante e não é por estar na moda… embora o meu
interesse seja recente, se se ouvir
a minha última obra de grande dimensão, uma espécie de sinfonia (“2001:
A World Symphony”), ela já apresenta orquestra e electrónica. Também a peça
em que estou a trabalhar neste momento, uma ópera, utiliza a combinação
acústica/electrónica. Uma das razões para isto prende-se com os meios técnicos.
O próprio João Pedro Oliveira, que trabalha nos dois campos, misto e
electroacústico, também já me disse muitas vezes que teve alguns problemas com
a electrónica em tempo real.
Eu cito o exemplo do João Pedro
Oliveira por concordar com o que ele afirma. Eu fiz, em tempos, algumas
experiências e havia sempre alguma coisa que não corria bem. Nas combinações de
instrumentos com computadores ou com sintetizadores havia sempre coisas que
tendiam a não correr bem – e eu já assisti a vários concertos em que aconteceram coisas do género. Na
verdade, os computadores têm
evoluído nos últimos anos de uma forma espectacular, havendo cada vez menos
problemas. Isso é um dos factores que me leva a considerar cada vez mais a
junção das duas ideias. O outro factor é que, de facto, são dois ramos que
andaram sempre separados um do outro, para mim… Na minha formação na Escola
Superior de Música e mesmo nos Estados Unidos, em Cincinnati, os compositores
que se dedicam à música acústica, não fazem música electrónica. Portanto, eu
creio que isto é uma característica que não é só minha, quero dizer que
acontece a muitas pessoas – embora seja verdade que não se possa dizer que seja uma pessoa que até agora tenha
tentado muito fazer a combinação entre os dois campos. Mas neste momento estou
cada vez mais orientado nesse sentido.
Eu creio que existe uma influência na minha escrita
instrumental que deriva do facto de ter começado a interessar-me na electrónica
por causa das sonoridades que, mesmo em relação à música instrumental, eu gosto
de obter. Por exemplo, aquilo a que nós às vezes chamamos “tramas”, aquelas texturas um pouco indefinidas…
tal como no Ligeti – há muitas pessoas que dizem que o pensamento orquestral
dele é influenciado pela música electrónica. Eu concordo e neste sentido, isso
também aconteceu comigo. O contrário, a música electrónica a influenciar a
escrita instrumental… já não sei se acontece tanto. A electrónica está mais
livre da teoria musical tradicional, inclusive do sistema temperado que ainda
governa a música instrumental. Uma outra questão refere-se à linguagem
harmónica das minhas peças, que eu
creio que têm mudado ao longo do tempo. Quando fiz as minhas primeiras peças,
peças de estudante, eu estava ainda a aprender… não eram peças com as quais eu
me identificasse completamente… devo confessar que algumas delas eram um pouco
artificiais para mim. Agora, já não tenho tantos problemas em assumir a minha
própria orientação. E talvez isso tenha a ver com a ligação à música
electrónica embora eu nunca tenha pensado nisto nestes termos – pode ser que
tenha a ver com uma certa liberdade de pensamento ou com uma abordagem
diferente ao som…
Ultimamente,
tendo a interessar-me mais e tenho estado a dar mais importância à
simplicidade. Tem um pouco a ver com o minimalismo. Ou seja, e como dizia há
pouco, houve um processo inicial em que tomei contacto com várias técnicas do
Sec. XX… Mas ma das
características da música contemporânea, pelo menos até aos anos 60, era o
facto de ser uma música completamente atonal, extremamente irregular em termos
rítmicos que, pelo menos a música serial, parecia queria cortar completamento
com o passado e fazer um mundo novo. E isso é de alguma maneira fascinante e
também um pouco envolvente mas sinceramente eu acho que não me identifico com
esta corrente. Claro que há muita música de que eu gosto bastante e a própria
atitude que se tem em relação à música só foi possível por causa de ter ido
assim tão longe, talvez por causa de se ter querido fazer algo de totalmente
diferente e tão radicalmente desligado da tradição. E eu reconheço que isso é
um factor muito importante e também o é para o minimalismo ou o novo simplismo
seja não um neo-classicismo, mas mais um pós-modernismo. Assim, daquilo que foi
possível obter devido ao modernismo, pelo menos que cada pessoa seja capaz de
recolher aquilo que lhe interessa. Actualmente,
um dos compositores que mais admiro é o Arvo Part. Gosto bastante daquela
simplicidade, que não me soa realmente como um regresso ao passado, ou seja…
por exemplo, a dissonância faz parte desta música, embora seja muitas vezes uma
dissonância diatónica, não tão complexa como a dissonância de um Stockhausen ou
de um Pierre Boulez. Mas para mim é uma música muito mais humana, quero dizer,
mais acessível e mais expressiva. Mesmo a nível rítmico… eu acho que a
irregularidade total, sistemática, não leva a lado nenhum… É claro que na
música electrónica o caso é diferente porque não tem ritmo. Também há quem diga
que a música electrónica não é música e eu, até certo ponto, concordo. Se
calhar é mais como uma paisagem sonora do que música propriamente dita, pelo
menos no sentido tradicional.
World Symphony
Acho que a peça de que já falamos, de 2001: World
Symphony, é um pouco diferente das restantes e foi muito
importante para mim fazê-la, embora haja pelo menos um andamento que ainda está
um pouco preso ao tal serialismo sendo que aí é mesmo propositado… um andamento
que tem a ver com a Europa. Essa sinfonia, por assim dizer, é uma espécie de
viagem pelos vários continentes onde conto, à minha maneira, a História da
Civilização, ou melhor, como é que eu a vejo, começando mesmo pela
pré-civilização, que eu identifico com a Oceania (isto, claro,
muito subjectivamente) e que é quase só electrónica… um bocadinho mais vaga
musicalmente… ou quase uma paisagem, talvez…
Em seguida vem a África, que
subjectivamente, lá está, eu identifico como o período da guerra, em que o
Homem, ainda animal, selvagem, só resolve os seus problemas pela violência. Aí,
na entrada, existe logo uma parte importante para duas percussões… dois
tambores… o batuque… quase toda a gente identifica com África, logo aí haverá
alguma ligação. Em termos da linguagem… Vou buscar às minhas referências
culturais mas não fiz qualquer estudo em especial… São mais as minhas
impressões sobre aquela cultura e sobre o que ela significa para mim. É uma
peça onde há um ritmo muito forte mesmo quando já não é só a percussão e entram
todos os outros instrumentos. Se calhar é a parte mais básica de musicalidade
em todos nós.
Depois segue-se a Ásia, que já é
mais civilizada mas ainda um pouco primitiva, ainda muito ligada ao misticismo,
à religião e a uma paz pouco duradoira – contrastando assim com a África que eu
relaciono mais com a guerra – porque não é baseada numa evolução real mas sim
no misticismo, talvez um pouco fantasiosa. (Isto claro, é uma alegoria que
faço.) Aqui existe um som de sítar que eu utilizo para comunicar uma sensação
de paz… um som muito longo… Há também uma melodia em oboé que faz lembrar a
música árabe. Inventei uma escala e a partir dela improvisei uma melodia,
juntamente com uns sons de percussão que de alguma maneira fazem lembrar a
música étnica e esse tipo de referências. Eu penso que está tudo mais ou menos
integrado com o resto da linguagem – há uma linguagem harmónica que cobre a
quase totalidade da peça e que eu classificaria como pós-moderna (embora isto
seja muito vago), porque tem alguns elementos modernistas.
A Europa é mesmo o andamento mais
modernista, digamos assim. É quase
serial. E para mim, tem a ver com o excesso de racionalização que eu acho que
caracterizou a Europa no Séc. XX – nomeadamente no sistema socialista e no
sistema nazi, em que a sociedade era muito mais importante do que o individuo e
a quem estes ideais de sociedade ultra-racionalista eram impostos… e com os
resultados que conhecemos.
Finalmente, vem o último andamento que representa a
América e que eu identifico com o estágio mais avançado da civilização – o novo
continente - onde há uma mistura maior… Eu vivi algum tempo nos E. U. A. e
realmente isso influenciou a minha opinião actual. É claro, mais uma vez, uma
opinião subjectiva e não podemos ser facciosos. Se calhar também existem zonas
na Europa onde pelo menos em teoria as coisas são semelhantes ao que acontece
nos E.U.A…. … mas na Universidade onde estive, por exemplo, o número de
estudantes internacionais era fantástico e aquilo era um conjunto muito
diversificado, onde todos co-existiam pacificamente e onde todos se esforçavam
por pronunciar o nome de cada um tal como é pronunciado no país de origem.
Portanto, a peça representa para mim alguma esperança e na linguagem musical
acontece o mesmo. A linguagem musical deste último andamento (América) é
uma mistura. Tem partes bastante tradicionais, tem momentos que apresentam um
ritmo muito regular mas ao mesmo tempo também se encontram alguns aspectos mais
modernos, portanto não recusando nada a não ser aquilo que é claramente
negativo.