Entrevista a Sérgio Azevedo / Interview with Sérgio Azevedo
2004/Dec/20
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Aprendizagem
Eu
sempre me interessei pela composição só que me interessei de uma maneira muito
intuitiva. Eu comecei a compor sem saber música, digamos, sem saber música
escrita, portanto sem saber a notação musical, porque o meu pai tocava guitarra
portuguesa – e toca guitarra portuguesa. É um músico amador mas chegou a
estudar música, digamos a sério, durante alguns anos. E eu compunha intuitivamente
ao piano, imitava – como é normal – peças que me interessavam, curiosamente
peças modernas, Debussy, Bartók e coisas assim. Na altura em que estudava piano
– aliás uma das razões que, quando comecei a estudar piano, me levou depois a
abandonar o piano foi a excessiva insistência da minha professora, que era da
velha guarda, em me dar apenas os clássicos, que na altura não me interessavam
assim tanto, eu preferia música mais moderna – eu imitava esse tipo de estilo,
sem saber a notação. Às vezes escrevia coisas para instrumentos que podiam ser
em clave de Fá e estavam escritos em clave de sol, e vice-versa, porque a
imitação era mais auditiva do que propriamente de partitura, pois realmente não
tinha muita coisa em casa, a não ser repertório de guitarra e de piano. Se eu –
sei lá – queria escrever um quarteto de cordas, que sabia que existia, e que
eram aqueles instrumentos, eu provavelmente escrevia para o violoncelo e para a
viola com clave de sol e depois escrevia qualquer coisa. Isto a partir do momento
em que comecei, digamos, a escrever qualquer coisa. Mas era sempre muito
intuitivo, ou seja, era de ouvido e eu ia, ao piano, experimentava e depois
tentava escrever. Mas digamos que esse impulso para a composição, o que não
significa nada, acho eu, depois em termos de futuro. Quer dizer, há pessoas que
fazem isso e depois deixam de compor, no entanto, no meu caso, sempre existiu.
Eu estive dividido, até aos 16 anos, entre a pintura e a música – é uma coisa
de que, normalmente, não costumo falar muito, mas eu sempre gostei muito de
pintura e até pensei entrar, na altura, para a António Arroio – mas, digamos,
com 16, 17 anos, conheci o Fernando Lopes-Graça, na Academia de Amadores de
Música, e acho que foi nesse momento que, realmente, decidi que o caminho que
me interessava mesmo era a música. E digo a música, – nem sequer digo a
composição –, porque também, dentro da música, estava dividido entre a
composição - que me interessava e que fazia um bocadinho, como já disse,
intuitivamente, portanto não era uma coisa que eu pensasse em termos de
carreira profissional, era uma coisa que me dava prazer fazer -, e a guitarra
clássica, que foi o instrumento que eu estudei mais a sério. Também estudei
piano, mas a guitarra foi o instrumento em que eu atingi um certo grau,
digamos, de virtuosismo, no piano nunca passei de um amador. E foi, realmente,
depois de conhecer o Fernando Lopes-Graça e de trabalhar com ele na academia -
embora fossem só, digamos, as aulas de harmonia tradicionais - , que eu decidi
mesmo: “Pronto, vou estudar composição e vou ser compositor!”.
E
aí, apareceu até um problema que era o facto de, na altura, a Escola Superior
de Música de Lisboa não ter ainda aparecido. Eu ainda cheguei a estar 3 meses,
em Direito, até ter uma escola, onde fosse estudar composição mesmo, porque o
conservatório depois tinha lá uns problemas legais - tinha que se ter o grau de
piano, e mais não sei quê, e como eu fiz tudo isso, mais ou menos,
intuitivamente e sem nunca me preocupar em ter os graus todos de instrumento,
isso tornou-se complicado.
E
depois, eu tive que ir para direito para satisfazer os meus pais com alguma
coisa, digamos, do nível superior. Entretanto, a Escola Superior abriu as aulas
em Janeiro, eu fui lá inscrever-me no último dia, e pronto, entrei para a
Escola Superior de Música e aí comecei a estudar, digamos, a nível superior a
composição. É claro que, até chegar lá, já entretanto tinha feito, com o
Lopes-Graça, a harmonia, que era o que se fazia na altura na Academia de
Amadores de Música. Particularmente com ele, comecei logo a mostrar as minhas
peças mais intuitivas e isso tudo, e ele a corrigi-las e portanto, quando
entrei para a Escola, já tinha, mesmo assim, uma formação um bocadinho melhor,
não tão intuitiva e já tinha realmente decidido que o meu interesse era a
composição. Portanto, digamos, que o percurso foi mais ou menos esse.
Depois,
é evidente, na Escola Superior conheci a Constança Capdeville – que foi uma
pessoa muito importante – o Christopher Bochmann, o Álvaro Salazar e outros compositores
que por lá passaram – alguns deles já não estão lá agora –, e portanto depois o
percurso, a partir daí, é o normal. Acaba-se o curso e começa-se a compor de
uma maneira mais profissional e, entretanto, até agora o percurso foi esse.
Até
chegar à Escola Superior, na Academia de Amadores de Música, onde estive o
tempo todo, completei - deixe-me ver - história da música – nem sequer cheguei
a fazer acústica, na altura também não o fiz porque na Escola Superior não se
exigia nada disso, quer dizer, fazia-se aquele exame de entrada e eu entrei,
normalmente, Dava-se mais atenção à composição e, realmente, como eu compunha
intuitivamente já há muitos anos, foi a isso que se deu mais valor. Mas
realmente nunca cheguei a completar. Fiz estudos de piano, guitarra, mas o
único que completei foi a formação musical e a harmonia com o Lopes-Graça.
Portanto, academicamente, antes da Escola Superior de Música, completei apenas
isso. Era o que me interessava na altura, como te disse eu não tinha ainda
ideia que ia ser um compositor profissional, e depois, com o Graça, realmente
decidi-me por isso, mas, academicamente, só mesmo na Escola Superior é que
posso dizer que fiz o curso completo e portanto há uma grande dose, se
quiseres, de autodidatismo na minha formação.
Uma
coisa importante é a Escola Superior, porque eu aí contactei com a segunda
metade do século XX. Com a Constança, com o Bochmann e com o Álvaro Salazar,
contactei com músicas que foram um choque para mim, porque eu ouvia Prokofiev e
Bartok e de repente passa-se para o Stockhausen - também não é assim tão
imediato, não é? E passar realmente de música que ainda tem influências tonais,
ou influências pós-Beethoven, por exemplo em Bartok, e depois, de repente,
passar para música aleatória foi assim um grande choque. Realmente, a Escola
Superior serviu para me abrir os horizontes para a actualidade, embora na
altura o Penderecki já não fosse tão actual
assim, a primeira fase já tivesse pelo menos 20 anos de não-actualidade, mas é
evidente que para mim era uma coisa moderníssima, como se fosse feita naquele
momento. E foi depois da Escola Superior que realmente posso dizer que os meus
horizontes se abriram para o que se estava a fazer, e aí comecei a informar-me,
por mim próprio. É evidente, pois com todos os instrumentos que ainda… e que
hoje em dia também continua a haver, não é? Com a internet, com os discos
compactos, com isso tudo, de repente o mercado – como sabes – abriu-se. Era
muito difícil encontrar música contemporânea à venda em Lisboa – discos ou
partituras – e o mercado subitamente abriu-se. Hoje em dia é fácil encomendar
seja o que for por internet, e eu estou constantemente, quando viajo, também a
comprar coisas, e portanto mantenho–me muito actualizado. E claro que isso
influenciou a minha música, também. Eu, na Escola Superior, fiz várias
experiências, desde música aleatória, até passando por Xenakis, ou passando
mesmo por música minimal. Digamos, os meus horizontes …- tentei abrir os meus horizontes para o
que quer que me interessasse, independentemente da estética que fosse. Ou seja,
até mesmo pela Constança Capdeville, que era uma pessoa muito aberta a todos os
tipos de estética, eu não fiz questão de saber se aquilo era mais ou menos
aceite, menos aceite, se era mais oficial, menos oficial, se era menos
interessante ou não. Quer dizer, tanto fiz peças assim um bocadinho a “imitar”
– que uma pessoa estuda por imitação também um pouco, não é? - Xenakis ou Peter
Maxwell Davis –, como fiz coisas um bocadinho minimais, Ligetianas, etc.
Experimentei um bocadinho o que podia, em 3 anos – na altura eram só 3 anos –,
e foi, realmente, depois de sair de lá que posso dizer que a minha música
começou a reflectir um bocadinho o que se fazia na altura , e não aquela música
neoclássica, pós Bartók, que eu fazia antes, como é evidente. Quando saí de lá
já tinha 21 ou 22 anos e, portanto, um bocadinho mais de maturidade, embora
continuasse a ser um novíssimo compositor. Agora depois, acho eu, foi um
percurso - talvez seja o mais normal, o mais habitual - que é um percurso
também de contínua experimentação até chegar – acho eu – a qualquer coisa que
tu possas dizer: “Se calhar isto é a minha música!“
Era
precisamente a primeira metade do século XX, que eu já referi. Os Bartoks,
Prokofievs, Stravinskys, alguns Schoenberg da primeira fase, o Lopes-Graça
também, aliás uma das coisas que me interessou – quando o conheci – era ele já
ser uma referência. Aliás, o meu interesse pela música portuguesa – isto agora
é um pequeno parêntesis – não só a minha música, evidente, mas a música
portuguesa em geral, já vem de há bastante tempo mesmo. Teria para aí uns 14 ou
15 anos, ainda havia aqueles LP’s da PortugalSom - os primeiros que apareceram
-, e eu lembro-me de gastar uma mesada, uma das minhas primeiras mesadas
importantes, inteira num disco que tinha obras do Luís Freitas Branco, porque
me interessou, quer dizer naturalmente para mim era interessante saber, o que é
que outras pessoas no meu país faziam. Sem querer falar em nacionalismos,
naturalmente, sempre me interessou e naturalmente também conhecendo o Freitas
Branco e outros compositores cheguei ao Lopes-Graça, como é evidente, que é uma
das referências mais importantes do século XX português – da primeira metade
pelo menos. Sabia que ele estava a dar aulas ainda, embora já fosse velhote, na
Academia, e, para mim, foi uma coisa muito importante saber que ainda podia
aproveitar algum ensino dele. Esse ensino - na altura, na Academia, como também
já referi, era apenas a harmonia que ele tinha que dar - portanto era o curso
de harmonia, eram os corais de Bach, portanto 2 ou 3 anos. Aliás, eu apanhei o
Graça precisamente no ano em que ele se reformou, portanto ele em vez de dar os
3 anos deu apenas 2 anos e concentrou tudo em 2 anos. Não era difícil, como te
disse aquilo era harmonia básica em 2 anos, até quase num ano se fazia, agora o
que me interessou foi que eu, logo na primeira aula, pedi-lhe para ir a casa
dele, ver as partituras e falar com ele e o Lopes-Graça era uma pessoa um pouco
– como eu costumo dizer – à antiga, quer dizer, ele nunca me cobrou um centavo
por aula nenhuma, eu passava lá tardes inteiras, a ver peças ou a ouvir coisas,
muita coisa dele também, é evidente, que eu próprio pedia. Estabeleceu-se com
isso uma relação que eu posso considerar – acho eu – de mestre e discípulo, num
certo sentido, quer dizer, acho que não tenho muita vergonha de dizer isso,
porque houve uma razão também de amizade e de aprendizagem natural como havia,
sei lá, no século XVI ou XVII, em que realmente havia uma espécie de relação
pessoal, durante vários anos, e como hoje em dia também há com o Emmanuel Nunes
por exemplo, com o Stockhausen e com outros compositores. Comigo e com o
Lopes-Graça creio que funcionou um bocadinho assim, não havia assim um plano de
aulas nem nada, quer dizer, eu ia lá e era o que me interessava mostrar-lhe, o
que ele lhe interessava falar, às vezes só se comia, por exemplo ele fazia uma
refeição e falava-se de música em geral, ouviam-se uns discos e era assim. Mas
foi muito importante porque, quer dizer, é uma personalidade de tal maneira
importante e forte que é impossível com a idade que eu tinha, 16 ou 17 anos na
altura, não se ficar influenciado, e realmente as primeiras peças que eu
mostrei eram até mais num estilo Lopes-Graça quase, do que Bartok ou
Stravinsky, mas andava tudo, digamos, dentro dessa área.
Tradição
e “acessibilidade” da linguagem musical.
Sempre
me interessou a ligação à tradição. Mas quando eu digo: “ligação à tradição”
não significa nenhum tipo de neoclassicismo ou de repetição da tradição, embora
eu também faça – e podemos falar disso mais tarde – música, às vezes, mais
tradicional.
Na minha música de concerto, a minha
música mais importante, digamos aquela que eu diria: “Esta é a minha música!” –
se só pudesse escolher 4 ou 5 partituras – “São estas!” interessa-me uma certa
ligação a coisas que, por exemplo, no tonalismo – especialmente no período
tonal – eram muito importantes. Portanto, uma certa sensação de continuidade,
encontrar maneiras de a harmonia e a formação dos acordes terem uma lógica
auditiva de uns para os outros, ou seja, não me interessa música – pessoalmente
claro, não estou a falar agora dos meus gostos em termos de ouvinte. Eu ouço
música, por exemplo, que nunca comporia! Gosto muito, por exemplo, de Xenakis
e, neste momento, nunca faria música daquele género! Mas gosto muito de ouvir
– agora o que eu gosto de fazer, o
que me interessa fazer, é tentar dar balizas orientadoras a quem ouve! E esses
aspectos de continuidade, de linha, de trabalho sobre a harmonia, de marcação
de pontos – sejam intervalos, sejam determinado tipo de acordes, sejam
determinado tipo gestos que se repetem de uma certa maneira – que façam com
que, quem ouve, possa tentar perceber uma lógica de discurso - podemos falar na palavra discurso, se
quiseres. E eu aí vou buscar muitas coisas ao tonalismo, que foi um período
importantíssimo, em que esse tipo de ideias de discurso, de tensão, de relaxe,
de continuidade, foram talvez mais importantes e mais notáveis, e talvez seja
por isso que seja também o período da história da música que é mais popular
para toda a gente. Não estou a dizer que seja o melhor - não é uma questão de
ser o melhor - mas talvez seja um período em que se atingiu talvez um certo
equilíbrio entre intelectualismo, entre preparação prévia da composição e um
resultado que é facilmente reconhecível por muita gente. Esse fenómeno também
não acontece com a música modal do período anterior, nem com a música medieval
e, às vezes, não acontece com a música da segunda metade do século XX e mesmo
com alguma da primeira metade, o que não lhe tira valor, nem lhe põe valor, é
apenas uma questão de interesse. Há colegas meus que, por exemplo, não lhes
interessa absolutamente nada essa ligação ao passado, há outros a quem
interessa eventualmente até demais, eu tento encontrar, se possível, um certo
equilíbrio entre uma linguagem que eu possa dizer que seja de hoje em dia, que
eu creio que não tenha sido feita, ou que possa ter sido feita há 40 ou 50 anos
atrás. Porque também há clichés na segunda metade do século 20, é evidente,
tento evitar, se possível, alguns clichés, mas tento inserir aquilo que faço
numa certa linha de continuidade, em que haja qualquer ligação àquilo que as
pessoas conseguem ouvir. Ou seja, eu acho que há limites para a percepção do
fenómeno musical. Quer dizer, eu não acredito que o cérebro, ou o ouvido, sejam
ilimitados, ou que o ser humano – pelo menos num espaço, não sei, de 100 ou 200
ou 300 anos – possa evoluir a ponto de, sem uma grande educação musical ou de
uma grande formação musical, conseguir perceber, ouvir e gostar de certas
coisas. Quer dizer, eu gosto muito de certos compositores mas eu tive uma
educação musical, não é? Mas o grande público não teve, portanto eu tento
encontrar uma linguagem que consiga chegar a mais pessoas.
Portanto
eu tento encontrar um meio termo entre aquilo que me interessa fazer e tentar chegar às pessoas. Porque eu não
faço música para mim, quer dizer, eu faço música para comunicar com os outros,
e essa comunicação tem que ser para os dois lados, quer dizer, tem que ser uma
coisa que me interesse a mim também – também comunico para dentro – mas tento
comunicar para fora. E nesse aspecto – se quiseres agora falar em termo mais
técnicos – isso reflecte-se na escolha de determinado tipo de
gestos melódicos, determinado tipo de ritmos, em que não funcionam realmente só
no papel – ou tento que não funcionem no papel – mas funcionem sempre
auditivamente.
Métodos
de composição
Digamos
que nunca faço esquemas de composição que não experimente de alguma maneira,
seja no computador, seja ao piano, seja interiormente, e o que me interessa é
realmente o resultado que se vai ouvir, independentemente da maneira como eu
chego lá. O que não quer dizer que não faça os meus esquemas de planeamento,
não é? Nomeadamente em termos de notas pivô, portanto há certas notas que, por exemplo, - falando da questão da tonalidade
- funcionam como tónicas e não sei se poderei agora falar de alguma peça em
especial, ou não… . Por exemplo, uma peça que foi tocada recentemente, que é a Sequenza
Ultima,
tem uma nota principal – já não me estou bem a lembrar, já foi feita em 2001
embora represente a minha música recente – acho que é em Si bemol, mas pronto,
digamos que é uma nota grave no corne inglês, que é o solista. Todo o material
vem da linha do solista, portanto é fácil, para quem ouve, perceber que o que
se está a passar na orquestra ou no grupo instrumental é um reflexo do que está
a acontecer na linha melódica – eu trabalho muito assim, portanto há uma linha
normalmente ou solista, que se destaca, e que vai fazer, à partida – espero eu
–, que quem oiça perceba que nessa linha tens os pontos principais de audição:
as tais notas repetidas, os tais pivôs, as tais notas que têm um certo registo
e que eu considero que fora daquele registo funcionam um bocadinho como
dominantes ou sub-dominantes. Digamos que quando eu volto ao registo inicial –
como se fosse um refrão – as pessoas talvez não percebam exactamente: “Ah, isto
é a tónica!” mas, se estiverem habituadas a ouvir música tonal, provavelmente
terão uma sensação próxima do tonalismo sem ser música tonal. Ou mesmo que não tenha
nada a ver com música tonal – num certo sentido –, em termos profundos, há uma
sensação de tensão e distensão, conforme me aproximo mais ou menos desse
registo central que está na linha do solista, e eu acho que quem ouve,
eventualmente, vai perceber que o que se está a passar na orquestra é um
reflexo dessa linha, e portanto é um ornamento ou um acessório e uma cor. Mas
que há qualquer coisa que guie a tal linha – o tal fio de Ariadne se quiseres, que aliás é
quase o nome de um título de uma peça também recente – e que me interessa
bastante, quer dizer, dar ao público um fio de Ariadne para se orientar no
labirinto.
Também
é preciso ver que depois do tonalismo, que foi talvez a última linguagem
universal ou comum, cada compositor tem a sua própria linguagem. Eu também me
tento colocar no lugar de uma pessoa que não sabe música - porque também gosto
que uma pessoa que não sabe música possa eventualmente gostar de uma peça minha
- sem estar a descer aos tais populismos, digamos, pós-tonais ou outra coisa
qualquer, quer dizer, o que é que essa pessoa vai ouvir? Cada vez que ouve uma
peça contemporânea ouve a voz de um compositor específico. À partida, embora
haja escolas, correntes, movimentos, dá-me ideia que, hoje em dia, entre mim, o
Miguel Azguime, o Eurico Carrapatoso, o Alexandre Delgado e outros compositores
mais ou menos próximos de mim, não somos tão diferentes assim, mesmo assim
muito mais diferentes que um Bartók seria de um Stravinsky, ou um Stravinsky de
um Falla, e muito mais com certeza que um Mozart de um Haydn. Quer dizer as
diferenças são cada vez maiores. E é claro que um especialista pode perceber se
é Mozart se é Haydn, mas para o grande público que provavelmente ouve nem
sequer é Mozart nem Haydn, é música clássica e eventualmente o período
clássico. Portanto as diferenças são tão grandes, hoje em dia, que eu acho que
não podemos também dificultar tudo a quem ouve. Além de termos a nossa própria
linguagem e cada vez que se ouve uma peça nova – nós próprios como compositores
também temos que nos adaptar a esse mundo e tentar até ao fim de 10 ou 15
minutos de tentar perceber o universo desse compositor – mesmo para nós é
difícil às vezes – ou para os críticos, os musicólogos e as pessoas
especialistas – para um público menos informado provavelmente será uma coisa
quase impossível, aquilo soará tudo um pouco ao mesmo. E eu tento evitar isso
através destes processos de ligação a um certo passado, sem cair na história
dos neoclassicismos – ou dos neo-qualquer-coisa – que também faço mas numa
perspectiva diferente.
Como
normalmente eu parto de uma linha a partir da qual a harmonia é construída - os
acordes, portanto através de ressonâncias, através de comentários ao que está a
fazer o solista, através da criação de pequenos contrapontos -, parto dessa
linha e depois normalmente faço um baixo, ou seja a outra ligação ao tonalismo,
havendo momentaneamente duas linhas - uma que define, digamos "uma
melodia" - imagine um coral de Bach a duas vozes…
Podemos
falar em cantus firmus. Eu talvez até falasse mesmo num coral de Bach incompleto,
um coral tipo Bach a 4 vozes, em que primeiro se define ou dá uma linha para
harmonizar - em que primeiro se constrói o baixo - e depois as vozes interiores
completam-se e é um pouco nessa perspectiva. Normalmente a minha música é a
duas vozes, num certo sentido, a tal linha do solista, quando não há um solista
há normalmente um instrumento que se destaca um pouco mais - isso acontece,
embora às vezes aí no catálogo não se perceba isso porque os instrumentos estão
misturados, mas normalmente há um instrumento, sei lá, por exemplo a trompa, o
instrumento mais poderoso num conjunto de 5 ou 6 instrumentos de madeira, por
exemplo, ou um trompete ou outro instrumento. Por exemplo, num quinteto de
sopros que tens aí no catálogo que é o Aspetto, a trompa - embora não seja um
solista - é o instrumento que tem, digamos, a linha principal, ou que foi a
primeira parte a ser construída. Portanto, mesmo quando não tens um solista, e
tens um conjunto homogéneo ou mais tradicional, tens normalmente um instrumento
que se destaca na textura. E é a partir daí que eu construo o resto. Isso tem
sido uma constante mais ou menos a partir de 96 talvez, com o Quinteto de
clarinete.
A
composição ao serviço da pedagogia: Peças infantis
Se
me perguntares: “Que peças é que são mais importantes? Que peças minhas é que
levaria para uma ilha deserta? Ou
que mostraria a alguém?”
Não
vou mostrar se calhar o Concerto para Trompete ou 5 Melodias Populares ou 5 Peças Rústicas porque não considero que
sejam, digamos, a minha linguagem. Porque a linguagem tonal está esgotada, a
linguagem tonal clássica está esgotada. O que não quer dizer que não me dê um
certo gozo fazer uma peça em Dó maior, como dizia o Schoenberg: “Ainda há
muitas peças boas em Dó maior para serem escritas!” O que não quer dizer que dê
o mesmo valor. Dou, tenho um valor afectivo. Agora quando eu escrevo uma peça
em que me quero exprimir, em que tento explorar determinado tipo de coisas a um
nível de profundidade e de actualidade – tens peças como a Sequenza Ultima, como o Aspetto, como o Atlas Journey – que é aquilo que posso
ser – ou tento que seja – a minha música. E se tudo ardesse, pelo menos que
essas peças não ardessem, ficassem só essas. Depois há uma componente, digamos,
social – um certo interesse social, se quiseres – que também foi um bocado
transmitido pelo Lopes-Graça. Como sabes o Lopes-Graça também fez muito isso,
um certo – sem ter nada a ver agora com política ou outra coisa qualquer – há
uma certa preocupação de servir também a comunidade. E a grande questão que
aqui nós pomos é: O que é que se faz para uma criança por exemplo de 3 ou 4
anos, ou 6 anos, ou 10 anos, em termos musicais? Num país em que ainda há um
grande atraso, mesmo assim, na formação musical. Embora se diga que isto é um
país de músicos, isto não é um país de músicos! Quanto muito será de música
pimba, às vezes! Agora de músicos a sério ainda há muitas carências. E a
questão é: Será que uma peça estilo Bartók ou Stravinsky é antiquada ou não, para
uma criança? Ou seja, será que fazer uma peça neoclássica vai impedi-la de
ouvir depois Stockhausen? Ou, pelo contrário, vai fazê-la evoluir em relação a
Mozart? Isto é uma questão que eu já tenho falado, nomeadamente com o Pedro
Rocha - que é uma pessoa que também se tem interessado muito pela didáctica -,
e acho que é uma questão que não pode ser respondida facilmente. O que eu tenho
notado – porque tenho tido muita experiência em contacto com pessoas que não
sabem música, mas que têm gosto em ir a concertos e ouvir coisas diferentes, ou
com crianças -, é que até uma peça – muitas vezes de Bartók –, para muito
público em Portugal, mal informado, soa a música contemporânea. E eu até já fui
acusado - isso é uma coisa quase kafkiana - quando, aqui há 2 anos fiz, uma
peça claramente stravinskiana, para os concertos de inauguração da Orquestra do
Algarve e sai uma crítica num jornal da região, portanto supostamente feita por
um senhor que não devia realmente conhecer muita música da segunda metade do
século, que disse que era uma peça se tal maneira contemporânea e moderna que o
formato dela devia ser electroacústico! Nem sequer devia estar numa orquestra
clássica! Ora estamos a falar de uma peça claramente neoclássica, uma peça que
podia ter sido escrita em 1930, eu não tenho problema nenhum em dizer isso,
agora para aquele senhor – e para muito do público que lá estava presente -
aquilo era uma peça extremamente contemporânea, porque o máximo, com certeza,
que até aí tinham ouvido seria Rossini! Ou Donizetti! Eventualmente algum
Debussy! Portanto aquilo que nós, às vezes, pensamos que para é antiquado - e é, quer dizer, antiquado
no sentido histórico, Stravinsky já não é, por muito que goste de Stravinsky e
continue a gostar e seja uma referência, Stravinsky já morreu há uns anos e a
música dele pertence à primeira metade do século, é uma estética da primeira
metade do século - no entanto, para muita gente, inclusive pessoas que estudam
música, aquilo pode ser extremamente contemporâneo e moderno! E portanto, a questão
é: Será que, se eu fizer uma peça para crianças, para piano, num estilo mais ou
menos dissonante da primeira metade do século, isso é um retrocesso para essa
criança? Ou é um avanço? Eu acho que em Portugal, onde há muita carência ainda
de informação, isso muitas vezes é um meio caminho, para chegar à música
contemporânea e não o contrário! E eu próprio sou um exemplo disso, porque
quando cheguei à Escola Superior eu conhecia até Bartók, Stravinsky e
Prokofiev, mas eu conhecia pelo menos esses, e da geração anterior algum
Webern, algum Schoenberg, algum Alban Berg, agora não havia para mim um hiato
entre, por exemplo, Rossini e Stockhausen! Porque se tivesse havido esse hiato
eu provavelmente, na Escola Superior, se calhar, teria reagido contra a música
contemporânea, porque não se pode – acho eu – gostar de um compositor e não
conhecer 100 anos para a frente e de repente conseguir achar que aquilo sequer
é música! Ora, como isso não aconteceu comigo, a ligação entre o passado e o
presente fez-se de uma maneira mais natural, quer dizer, passar de Stravinsky,
Varèse para Penderecki e Stockhausen para mim foi mais natural! Para um público
que realmente pára no tonalismo – em Tchaikovsky, por exemplo – passar para a
segunda metade do século é muito difícil! Portanto, é assim que eu vejo um
bocado a minha música para crianças e jovens. Às vezes também faço coisas um
bocadinho mais contemporâneas mas, digamos, simplificadas mas faço muita
música, digamos, com carácter neoclássico, ou stravinskiano ou bartokiano
porque, muitas vezes, chego à conclusão que os meus próprios estudantes de
música não conhecem essa música e não têm acesso a ela! Já me aconteceu, no
segundo ano da Escola Superior, em análise para instrumentistas, colocar a Sagração
da Primavera
e metade da turma nunca ter ouvido aquilo! Já ter ouvido falar! E até ter um
choque, há pessoas que dizem “O que é isto?! Isto é ruído, isto não é música!”
Já tive reacções destas! Pode parecer um pouco anedótico mas estamos a falar de
uma Escola Superior e estamos a falar de alunos de um segundo ano! Não estou a
falar de compositores, estou a falar de instrumentistas,
mas seja como for os instrumentistas é que vão tocar a nossa música depois, não
é? Portanto, se o instrumentista, pelo menos, não tem essa fase da primeira
metade do século XX e não a conhece e não a ama, como é que depois vai tocar a
minha música, mais actual e sem compromissos imediatos com o passado? Como é
que a Sequenza Ultima vai ser tocada por um músico que não toca mais do que
Debussy? Portanto para mim o contexto é uma bocado esse. Claro que isto é
discutível e há a opinião completamente contrária.
Obras: “Monumentum”, “Quinteto de Clarinete” e
“Monodrama”
Em termos de peças que foram importantes para mim –
portanto peças que eu compus e que marcaram alguma evolução no meu pensamento
musical – além dessas peças que referi como as primeiras peças de aprendizagem
– eu acho que a primeira peça, que é actual e que é portanto contemporânea –
para empregar o termo contemporânea no sentido em que uma peça que não soe à
primeira metade do século, não soe a neoclássica – foi uma peça, para 4
clarinetes, chamada Monumentum pró Góra Kalwaria. Foi a primeira peça – que também
mantenho no meu catálogo – na qual posso dizer que explorei algumas técnicas e
algumas coisas que ainda hoje em dia me interessam, nomeadamente a questão - a
tal questão - de encontrar uma lógica entre formações harmónicas. No entanto
essa peça, como faz parte ainda de um período de experimentação, curiosamente é
muito fragmentária. Portanto, é uma música em mosaico em que a música pára,
começa, pára, começa, pára, começa. No entanto acho que tem algumas
características, talvez mais poéticas do que propriamente técnicas, que sempre
me interessaram até agora. Porque eu acho que a minha música – seja ela tonal,
seja ela a música mais importante – é sempre, de um certo ponto de vista,
dramática, ou seja, há sempre uma certa sensação de drama. O que é que isto
significa? Que há sempre um certo conflito e, digamos, que nunca é uma música
atmosférica ou sensual num sentido como será, por exemplo, um Debussy, ou um “Prelúdio
à sesta de um fauno” por exemplo, ou uma música estática como a do Ligeti. É uma música
que, à partida, pretende ser bastante dinâmica e daí a tal sensação de
tentativa de continuidade e de movimento. E essa peça, embora seja
fragmentária, tem essa característica que eu acho que é uma característica
pessoal. Nesse sentido, eu coloco-me mais ao lado, de um Schoenberg, por
exemplo, do que de um Debussy – embora goste dos dois – por causa desse
aspecto, talvez angustiado e conflituoso, da música do Schoenberg. Portanto a
minha música tem sempre um bocado essa característica. E essa peça foi
importante para mim, por um lado porque empreguei técnicas – já sem ser como
exercício – contemporâneas, técnicas aleatórias e outras que ainda hoje em dia
são importantes.
No entanto a peça mais importante que eu creio ter
feito, e que já tem a ver com o meu percurso de hoje, é a tal peça de 1996 que
é o Quinteto de Clarinete. Foi uma encomenda do CCB. E lá está! É precisamente uma
peça que tem um solista e um quarteto de cordas que – não digo que acompanha
porque isso é um termo que não significa quase nada, hoje em dia – comenta,
prolonga, faz ressoar a linha do solista. Eu já antes tinha escrito uma peça
quase de ensaio, que é o Monodrama, também para clarinete e 25 clarinetes, e nessa
peça já há a construção de uma linha melódica – que é uma coisa que me
interessou desde logo – mas é só em 96 que eu posso dizer que talvez tenha
encontrado uma linguagem mais própria. No entanto, é uma linguagem influenciada
claramente por alguns compositores que eu posso citar, como o Magnus Lindberg, por exemplo, ou um Peter Maxwell Davis, que são no
entanto compositores que têm – lá está – interesses comuns aos meus, ou eu
tenho interesses comuns aos deles. Nomeadamente a tal sensação de continuidade,
uma certa ligação – porque não dizê-la – mesmo ao tonalismo, quer dizer a
música de um Magnus Lindberg não é isenta de influências como por exemplo um
Sibelius, mesmo um Peter Maxwell Davis, com todo o seu intelectualismo e
cerebralismo – que têm –, no entanto ele está a escrever sinfonias e o facto de
escrever sinfonias implica alguma coisa, alguma ligação ao passado e alguma
ligação a fenómenos como ter tónicas e dominantes, ou seja, de haver algum
conflito tonal mesmo que a música não soe propriamente tonal. E nesse quinteto
já comecei a fazer essa ligação entre o passado e o presente, embora o quinteto
tem partido mesmo da linha do clarinete, portanto ainda não há construção a
duas vozes, ainda há uma construção apenas a uma voz.
Obras: “Atlas Journey” e uma noção topológica da
música
A Peça seguinte – de 98 – que é importante para mim, em que eu, digamos, cristalizo as
descobertas que fiz no quinteto, é o Atlas Journey – ou a viagem de Atlas, se
quiserem –, para 15 músicos. Que foi uma encomenda, além disso, importante
porque foi um conjunto internacional que a tocou e gravou muito bem em disco– e
também foi uma peça importante pelo facto de durante um mês eu ter tido ensaios
com o grupo. E, portanto, pude experimentar e ver o que é que resultava e de
certa maneira é uma peça de síntese. É uma peça de síntese porque tem, digamos,
tudo aquilo que ao longo dos anos me tem interessado, não só aquilo que eu já
referi, os tais aspectos que eu já referi - neste caso não tem um solista mas
dentro dos 15 músicos a trompa é o tal instrumento que conduz, digamos, o resto
- mas tem outras coisas que também me interessam, como por exemplo citações –
que é uma coisa recorrente na minha música –, mas citações que, em muitos
casos, não se percebem, ou seja, são pequenas homenagens pessoais que só
dificilmente o grande público ouvirá. Portanto não se trata de música de
colagem, em que há claramente a intenção do público perceber: “Ah, ali é
Mozart", ali, de repente, ouve-se um bocadinho de Stravinsky, e até pode
ser um aspecto paródico (ou não), não é nesse aspecto. São coisas que, em
geral, são fragmentos musicais que se englobam dentro dos meus interesses
musicais, ou porque há um intervalo comum – por exemplo a quarta aumentada que é um intervalo que eu utilizo muito – e, por
exemplo, há um fragmento de Stravinsky que tem ali a quarta aumentada e eu
posso citá-lo, e por vezes é apenas um compasso ou dois, portanto não chega a
ser quase uma citação, quer dizer, funciona mais para mim do que para o
público. Mas são coisas que me interessam e percorrem mais ou menos a minha
música desde mesmo no início – embora no início fosse mais paródico, agora é
mais escondido – mas funcionam um pouco como homenagem e como ligação, digamos,
com as pessoas que me interessam do passado. Aliás nomeadamente pessoas até
mesmo do presente, como Magnus Lindberg ou Maxwell Davis. Os dois estão citados
no Atlas Journey embora eu desafie qualquer
pessoa a descobrir onde é que estão! São citações muito pessoais. O outro
aspecto que me interessou também nessa peça, no Atlas Journey, - além do tal dramatismo,
- não há uma história propriamente, mas eu imaginei essa peça como se fosse um
conto tirado da mitologia grega clássica, contada do alto de um teatro de
robertos – de fantoches. Portanto este aspecto irregular dentro da
continuidade, esse aspecto quase petrusquiano que encontramos em Stravinsky, foi
importante para mim. Digamos que nessa peça eu cristalizo todas as influências
e todos os compositores – ou quase todos os compositores – que me interessaram,
especialmente num certo ponto da minha vida. O aspecto – se quiseres – circense
que se encontra num Stravinsky, que foi uma grande influência. Ainda hoje em
dia é uma grande influência. Não tanto o tipo de música, mas o tipo de atitude
e o tipo de continuidade, o aspecto grotesco que se encontra nos primeiros
bailados, como a Sagração ou o Petruska, a continuidade tonal, a construção de uma linha
melódica mais importante que está na trompa, o aspecto de ligação ao passado
que, além do total tonalismo, se encontra na formação dos acordes, sendo muitos
deles acordes espectrais – não queria dizer espectrais porque normalmente o
acorde espectral tem uma certa construção, digamos, mais rigorosa, mas são
acordes que partem de uma base tonal com um agudo mais sujo, o que dá um efeito
próximo do espectralismo sem ser música espectral -, e também a escala por tons
inteiros, nomeadamente os intervalos de terceira maior e de quarta aumentada,
que são os intervalos que conduzem o meu discurso melódico.
Digamos que na linha melódica não encontras uma
quinta perfeita, só encontras na harmonia, e na melodia tens determinado tipo
de intervalos, nomeadamente os da escala por tons inteiros, e o meio-tom serve
como intervalo de transposição. Digamos que em termos globais são os materiais
que ainda hoje em dia utilizo, portanto escala por tons inteiros, acordes –
digamos – derivados de um certo tipo de pensamento espectral. Esses dois tipos
de harmonia têm coisas em comum, nomeadamente a quarta aumentada que é um
harmónico superior e que pode fazer ligação com a escala por tons, depois há o
aspecto da construção das tais linhas melódicas – a longo prazo – e, no caso do
Atlas Journey eu até vou mais longe - de certa maneira é uma forma sonata modificada. Tem uma
recapitulação e tudo! Aliás quando essa peça foi tocada – e houve alguns
colegas que a ouviram e que até gostaram da peça – estou a lembrar-me de uma
conversa com o Pedro Rocha mas a pergunta que ele me fez foi: “Eu gostei imenso
da peça, mas porquê a recapitulação?” Portanto o que incomodou era esse aspecto
da recapitulação, e de haver realmente uma coisa que à partida não devia haver
em 1998, de haver uma coisa que soe a uma recapitulação. Bem, eu aí assumo
perfeitamente que há um certo aspecto neoclássico – se quisermos. Realmente uma
forma sonata modificada com recapitulação - embora abreviada - é qualquer coisa que
pode parecer demodée, no entanto eu acredito que as coisas podem ser ouvidas
com outros ouvidos se o contexto for diferente. E uma coisa que nós encontramos
nos anos 70, já por exemplo na 1ª sinfonia de Maxwell Davis – que me
influenciou também – é precisamente essa recapitulação condensada e abreviada,
mas que nós ouvimos claramente como uma recapitulação. Há um acorde que é igual
ao do início e isso a mim não me incomoda porque eu acho que isso, se quiseres,
é um pequeno bombom que damos ao público, uma pequena baliza. Há muitas coisas
no Atlas Journey que, com certeza, o público em geral se calhar não vai perceber numa
primeira audição, agora eu dou-lhes algumas balizas. Uma delas é precisamente
haver coisas que repetem. E porque não repetir no fim, embora com modificação -
eu nunca faço coisas literais, seria ir longe demais no passado, creio eu -
qualquer coisa que se ouve. Eu também comparo, no entanto, essa recapitulação,
além da forma sonata, a uma coisa que me interessa muito que são os desenho do
Escher.
E que é também outra coisa que me interessa que é
uma noção topológica da música. Quer dizer, eu gosto de pensar o fenómeno
musical, muitas vezes, de uma forma quase visual. Tu pegas num objecto
qualquer, por exemplo uma caneta – que tens aí na mão – ou este relógio ou
outra coisa qualquer, e tu, independentemente da distância, da posição ou da
iluminação – pelo menos até um certo ponto – tu reconheces o objecto. Portanto
a nossa vista adapta-se às diferentes posições, luz, etc, porque reconhecemos
no objecto uma constante topológica, a tal constante que me permite dizer,
embora haja milhares de modelos de automóveis ou de cadeiras, ou de sofás –
“Isto é um sofá, isto é uma cadeira, aquilo é uma caneta!” - portanto há qualquer coisa que tu
reconheces como constante. A tal história do donut e da caneca, não é? Ou da
chávena… Ambos são objectos do mesmo tipo, não é? São redondos e têm um buraco
no meio – se quisermos. Isso é uma anedota quase topológica. Claro que não
vamos a esse ponto, uma caneca e um donut não são a mesma coisa, mas em música
é possível fazer circular um objecto também – musical – e olhá-lo de diferentes
perspectivas, e nesse aspecto essa recapitulação que tem parecenças com uma
forma sonata – e eu falei em forma sonata e não tenho problemas de o dizer –
mas que também tem a ver com o olhar para um objecto de diferentes maneiras,
porque eu nunca repito uma coisa da mesma maneira. Há pequenas diferenças
subtis. E às vezes são tão subtis que os músicos às vezes me perguntam: “Olha, isto
é engano? Ou não? Porque atrás aparece a mesma coisa mas aqui só tens duas
notas diferentes.” Só que às vezes são duas notas que são importantes porque
estão num certo registo, ou têm uma certa dinâmica. Mas para um músico, –
muitas vezes os músicos estão habituados a tocar mais repertório tradicional –,
uma coisa que repete com subtis diferenças, muitas vezes pode parecer um erro.
E eu, muitas vezes, tenho que explicar aos músicos: “Não, não! Isto não é um
erro, realmente só há uma nota diferente” ou “Só subiu uma oitava, mas é mesmo
assim!”, Claro que às vezes pode ser um erro, não é? Mas em muitos casos a
minha música funciona assim. Portanto o objecto está a ser visto de uma posição
ligeiramente mais próxima ou mais afastada. Claro que a analogia entre visual e
auditivo é sempre um pouco falsa, não é? Não se pode fazer analogia com
diferentes artes e diferentes sentidos, acho eu. Pelo menos uma analogia
completa. Portanto, mas há coisas que podem ser utilizadas, e muitas vezes
esses fenómenos de repetição que podem soar, às vezes, a recapitulações e
coisas assim – e também soam não digo que não – mas muitas vezes partem de
situações deste género. Portanto o olhar para um objecto que circula. E
realmente o Atlas Journey tem um bocado isso, tem objectos que circulam
constantemente, sempre com subtis diferenças e que, eventualmente, vão acabar
por rodar até ao ponto em que tu já não os reconheces. E, se eu quisesse
definir a forma dessa peça seria uma série de arcos, que se encaixam uns nos
outros, em que uns vão aparecendo e outros vão desaparecendo, uns vão alargando
e outros vão diminuindo de tamanho. É uma coisa que actualmente ainda faço e
portanto se eu quisesse falar de uma peça muito importante para mim, das mais
importantes que eu fiz, claramente Atlas Journey, seria a minha peça de referência.
Uma vasta produção
De qualquer maneira a questão do número de peças ou
a questão dos catálogos é uma questão sempre engraçada, porque nós sabemos
perfeitamente que houve compositores como o Falla, o Webern ou o Alban Berg que
escreveram realmente pouquíssimo e é tudo de excelente qualidade, até porque,
por razões evidentes, quando se escreve pouco provavelmente não se quer deixar
nada que seja inferior a um certo nível. E claro, quando se pega num Chostakovich,
num Prokofiev, mesmo num Stravinsky, ou num Lopes-Graça, ou em mim próprio –
sem estar a fazer comparações – é evidente que haverá peças mais interessantes
do que outras, nem tudo tem de ser da mesma qualidade, se é que espero que
alguma da minha música tenha qualidade, agora eu acho que isto é uma questão de
temperamento! Há pessoas que estão a polir peças durante anos - o caso do Alban
Berg, o caso do Falla. O Falla ainda era pior que o Alban Berg, quer dizer, era
um compositor preciosíssimo, aquilo era uma coisa, demorava…
Também é preciso ver uma coisa, grande parte das
minhas peças são curtas, e por exemplo o Alban Berg aparentemente escreveu
pouco mas só pegando nas obras temos ali 5 horas de música, ou mais, e se
reparares no meu catálogo muitas peças não ultrapassam, digamos, entre os 6 e
os 10 minutos. Eu nunca fui um compositor de grandes formas, aliás a minha
música, se reparares também, nos últimos anos tem vindo a crescer em tamanho,
talvez precisamente por esse fenómeno, que falei, da minha linguagem – se é que
tenho uma linguagem – se ter cristalizado e formalizado de uma maneira que me
permite abordar formas maiores, mas até aí – digamos há uns 3, 4 anos – fazer
uma peça de vinte e tal minutos era para mim uma proeza brutal! A tal peça que eu
referi, o Monumentum, tem 6 minutos, o Monodrama tem cerca de dez, onze, e grande
parte da minha obra realmente não é grande, eu não tenho óperas, não tenho
peças de grandes dimensões. O próprio Concerto para Dois Pianos – em termos da música
contemporânea, digamos, sem ser a música tonal – é a maior que fiz até agora e
são 25 minutos, portanto ainda é menos que um Petruschka ou que uma Sagração – se quisermos falar
nessas músicas que me influenciaram. Portanto eu, digamos, sou um compositor
mais da concisão e não tanto das grandes formas – por enquanto.
Uma coisa que me interessa, no tal fenómeno da
circularidade ou da topologia, é que não há dúvida que há materiais que
circulam de obra para obra, posso citar além do Atlas Journey de que já falei – em que
há material a circular no Concerto para Dois Pianos, de uma maneira nova, o Aspetto, para quinteto de sopros,
por exemplo, vai fornecer grande parte do material para o Ariane – que é uma peça recente,
também para quinteto de sopros, com piano. Agora quem ouvir as duas não vai
dizer: “Isto é a mesma música!” – creio eu – porque realmente não é a mesma
música! Ela é retrabalhada. Imaginemos como se fosse no passado, podiam ser
temas, um tema, não é? Ou uma preocupação de um percurso tonal ou outra coisa qualquer,
como no caso de Beethoven.
Eu não pré-planeio ciclos, mas à distância, sei que,
se for pegar nas minhas peças dos últimos 4 ou 5 anos, as posso agrupar em
preocupações específicas dentro da actual constante, de que já falei. Das tais
constantes há preocupações que se reflectem no tal material que circula,
nomeadamente preocupações que têm a ver também com instrumentações próximas. O Aspetto, que é para quinteto de
sopros, e o Ariane, que é para quinteto de sopros com piano, por exemplo, não
é? O próprio Concerto para Dois Pianos embora, aparentemente, não tenha
nada a ver com o Atlas Journey, em termos de orquestração, no entanto tem um
bocadinho a ver, porque é uma ampliação em termos orquestrais do que está no Atlas
Journey, com
a inclusão dos dois pianos. Mas há uma certa escolha da orquestra que tem a ver
com, por exemplo, a importância da trompa. Há, portanto, preocupações de ordem
instrumental também que ligam essas peças, e daí também o facto de realmente
haver se calhar muitas peças. Mas de qualquer maneira só mesmo para acabar – e
se ainda temos algum tempo – se fores contar mesmo as peças que eu tenho, as
tais que eu considero mais importantes, com a minha linguagem pessoal, elas não
são assim tantas. A maior parte do meu catálogo são realmente peças de ocasião,
escritas para miúdos, peças tonais, arranjos, harmonizações, tenho muita coisa
deste género. E se separares o meu catálogo, realmente dessa maneira rigorosa,
– que aliás eu tenho essa separação, não nesse mas noutro – tu vais ver que as
peças, digamos, de concertos, as peças que eu talvez possa dizer daqui a uns
anos que são Sérgio Azevedo, serão talvez umas 15, e não são assim tão grandes
como isso. Portanto eu, de certa maneira, não escrevo assim muito! Talvez
escreva muito peças menos importantes, ou mais de ocasião.