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A escrita para voz
A peça A Vaca de Aço, de 2000, para piano e voz, foi
muito importante para mim – não é que eu não tivesse
escrito antes muitos exercícios, estudos e coisas para voz, mas digamos
que é a minha primeira peça no lied, neste caso piano
e voz soprano. Estava sempre a adiar escrever para voz, e escrevia só
para instrumentos, mas uma das razões era não encontrar um texto.
Não é que não haja textos fantásticos à disposição,
mas eu precisava de receber assim um choque. E então estava à
procura, já há bastante tempo, em poetas portugueses, claro, como
o Pessoa, e em poetas de poesia concreta, e eram sempre situações
fantásticas, mas aquelas coisas tipo a flor, com o jardim e o céu.
Até que de repente, estou a folhear o Herberto Helder, e de repente encontro
os 16 Poemas Zen. Li as duas linhas do primeiro poema, e é qualquer
coisa como: “Para poder caminhar no infinito vazio / a vaca de aço
deve transpirar”. Mal vi esse poema, disse “é isto que eu
quero musicar!”. E depois, ainda por cima, tive a sorte de serem dezasseis
poemas, todos fantásticos e dentro deste espírito quase de haiku.
Finalmente, tinha a matéria prima da parte do texto e comecei a compor
para voz. Quando comecei, foi quase tão importante como quando comecei
a compor no piano. Eu até ali compunha muito na guitarra – era
guitarrista, era normal – depois comecei a compor no piano, que também
foi muito importante. Mas quando compus para voz, neste caso particular, foi
inacreditável o avanço para mim, como compositor. Eu pensei assim:
pronto, vou escrever para voz, como pensei que ia escrever para flauta ou para
trombone. E de repente tinha um instrumento em que, por muito má que
seja a minha voz, que é, eu podia estar a sentir as situações.
Por exemplo, a voz pode aparecer do Zen. E articulações,
ritmos, uma pessoa pode notar que as palavras podem SER com acentuaÇÕES.
Eu notava isso nos instrumentos, mas na voz foi muito mais claro. Até
aí, eu usava muito poucos sinais de articulação, porque
não sentia necessidade, e de repente com a voz comecei a sentir, e não
só na dinâmica. Por exemplo, posso sentir que estou sempre a pôr
pianissimo, mezzo-forte, mezzo-piano, há uma obsessão quase de
controlar toda a parte e não aquele género de deixar assim tipo
mezzo-piano, de estar uma frase inteira igual e só duas folhas depois
é que mudo. Depois, também o tempo e a dinâmica interferiram,
quase de compasso para compasso, ou de quatro em quatro, ou de três em
três – alterava-se, e a semínima ficava igual a x, para acompanhar
a respiração. Há também toda uma série de
coisas, de articulações dinâmicas, e tudo isso fez com que
eu aprendesse imenso. Quando eu voltei a escrever para piano, trompete, flauta
e assim, já vim com essa carga e esse conhecimento. E, a partir daí,
escrevi as duas peças que saíram agora no disco Works 1,
com poemas de Herberto Helder, A Vaca de Aço e Os Galos
de Madeira, ambos de 2000, e o poema de Mário Cesariny, Tocata
2, também para piano e voz. Depois daí foi uma sucessão
de flauta e voz, com os poemas do Herberto Helder, para guitarra e voz, também
com os poemas dele. Depois, finalmente, uma obra para orquestra de cordas e
voz soprano, do Fernando Echevarría, Nachtmusik, que é
um poema dele mesmo com esse nome. E depois também para barítono,
do poeta concreto Melo e Castro. A partir daí descobri também
uma série de poemas que me interessavam bastante. O do Fernando Echevarría
foi fantástico, e o do Melo e Castro também foi bestial, porque
era só números. Era o Soneto = 14 x. Era só números
mesmo, com um barítono a dizer “um, dois, quatro”. Era um
poema também bastante interessante dele, porque somado dá sempre
catorze. Mas usou a forma tradicional do soneto.