Entrevista a Emanuel Dimas de Melo Pimenta / Interview with Emanuel Dimas de Melo Pimenta
2003/Aug/31
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ENTREVISTA A EMANUEL DIMAS DE MELO PIMENTA (Versão Integral)
Arte, Ciência e Tecnologia
Hegel dizia, sobre a Arte e a Ciência, que uma era o limite da outra,
e Peirce viria a desenvolver essa ideia ao defender que a Ciência parte
sempre das qualidades para o estabelecimento de leis, enquanto que a Arte
parte de leis para o estabelecimento de novas qualidades. Eu acredito que
tudo isso está interligado. A Tecnologia também, porque toda
a experiência estética do ser humano é o fazer, o technoi.
Temos então o technoi logos, o saber fazer, o como fazer as
coisas. Se fizéssemos uma história da estética pelo "fazer",
seria talvez mais interessante porque o "fazer" tem tudo a ver com
aquilo que somos, com a acção. As nossas acções
fundamentam e estruturam o nosso ser, aquilo que nós somos.
Como sabe, trabalho desde sempre com o princípio de estruturação
de complexos sinápticos. Isso é sempre a raiz, a base do meu
trabalho e um pouco, também, do meu projecto de vida. Ora, toda essa
elaboração muito dinâmica de complexos sinápticos
acontece através do fazer, através dos nossos sentidos e através
da construção da realidade que é a própria percepção,
a própria cognição.
Convém, entretanto dizer o seguinte: se, de facto,
isso acontece, se defendo essa posição, a tecnologia assume
uma posição quase de entretenimento, como o de Ciência
Aplicada, ou pelo menos tem essa leitura de ciência aplicada - como,
de qualquer forma, o entretenimento também se poderia entender como
Arte Aplicada. A publicidade é um grande exemplo disso. Mas eu não
tenho o menor preconceito, acho que nós estamos aqui e trabalhamos
no questionamento de todas essas condições essenciais do ser
humano. A diferença que há, talvez, é uma diferença
de repertório. Por exemplo, eu lembro-me de amigos que fazem música
popular e eu não os considero menos músicos, ou menos brilhantes
do que outras pessoas que fazem outras coisas. A questão aqui é
o nível do repertório, da complexidade do repertório
que se trata. Eu acho que essa é, talvez, a questão fundamental.
Influências da arquitectura na música
A influência é tão grande, tão total, tão
global e tão abrangente, que eu até arriscaria a dizer que não
sou nem músico nem arquitecto. O que eu trabalho são "armadilhas
lógicas", que podem acontecer na música ou na arquitectura,
mas podem também acontecer na fotografia, na literatura e em outros
meios. Infelizmente, eu não vou viver muito tempo - posso viver noventa
anos, cento e trinta anos... espero eu! Mas não vou viver dois mil
anos ou três mil anos. Temos que dormir, e tenho o tempo muito reduzido,
tenho que tomar banho, tenho que comer. O meu tempo de vida criativo, aquele
em que eu me posso dedicar, é muito curto, muito pequeno. Passei então
a dedicar-me à investigação da música e da arquitectura
como elementos basilares do meu trabalho. Mas, de facto, há atrás
disso um projecto, há uma ideia de subversão que é o
estabelecimento de "armadilhas lógicas". Essa é que
é a condição fundamental. Quer dizer, não me interessa
a música por si, a música para fazer música, para ser
bonita, ou para servir de entretenimento, isso não tem o menor sentido.
Pode ter um sentido ao nível do entretenimento ou ao nível de
uma especulação - aquilo que se dizia no século XIX,
da "Arte pela Arte", ou qualquer outra coisa do género. Mas,
na minha vida, há apenas o sentido de se criar "armadilhas lógicas".
Porque apenas a diferença produz a consciência.
Existe um impasse muito grande entre uma e outra actividade. Agora, a arquitectura
virtual é um conceito, uma estratégia de pensar o tempo e o
espaço. Uma estratégia através da qual assumimos todas
as componentes sensoriais e culturais de um determinado momento histórico.
Nós assumimos uma ruptura com uma causalidade local principalmente
ao nível da abordagem de determinadas questões de escala. Ou
seja, nós podemos resgatar e apreender certos recursos de uma escala
subatómica até uma escala astronómica, podemos viajar
no tempo e no espaço e consideramos, assumimos e adoptamos todas as
culturas do planeta como a nossa própria cultura, como a nossa herança
cultural. Passamos assim a ser herdeiros directos do Japão, do Egipto,
da Índia, da Europa, enfim... Como seres híbridos que somos,
é um novo ser que aqui surge. Isso é que é o conceito
fundamental da arquitectura virtual. Na música acontece o mesmo, mas
de uma forma diferente, porque não se trata aqui de uma world music
ou qualquer coisa semelhante. Há certos princípios de integração
e de interacção durante o processo criativo da própria
música. Há certos elementos de método, de elaboração
e de pensar a música, que têm tudo a ver, ao nível da
estratégia, com o pensamento da arquitectura. No final, é uma
vida e há uma identidade muito grande entre as duas actividades no
meu caso específico.
Quando nós olhamos para uma partitura virtual, uma partitura dentro
dos computadores, vemos alguns elementos que podem ou não assemelhar-se
à arquitectura - isto porque a arquitectura tem uma condição
primeira, que é a função. E a função na
música é de uma dimensão completamente diferente. Nós
temos também uma função na música - se não
tivéssemos uma função na música não teríamos
percepção - mas na arquitectura nós temos outra condição,
porque ela implica o espaço, implica inclusivamente a visão.
O que eu fiz aqui ao nível da música e o que traça um
paralelo entre um mundo e o outro foi burlar o ouvido pelo olho. Essa é
uma das estratégias aqui. Porquê? Ora, a partitura musical convencional
é uma releitura e resgata muito do texto escrito. Nós temos
a predicação... Não é à toa que o Charles
Ives fez o Pergunta sem Resposta. Toda a formação mais
tradicional das nossas escolas de música, até hoje, passam pela
"pergunta" e pela "resposta". Se analisarmos Schubert,
Beethoven, todos esses compositores pelos quais todos nós passámos,
todos eles têm o elemento da predicação como um indicador
fundamental da estruturação do discurso lógico da música.
Ora, quando nós temos uma abordagem total, como é o caso da
partitura virtual, que está dentro de um espaço, nós
temos a incorporação da sístase. A sístase é
um elemento visual que nos permite ver, ou que indica aquilo que nós
vemos, tudo ao mesmo tempo. Quando olhamos para um quadro, não olhamos
uma coisa e depois a outra, olhamos para o quadro. Quando conduzimos um automóvel
nós olhamos para tudo o que acontece, não olhamos para uma coisa
e depois para outra. O ouvido é uma coisa depois a outra, e, neste
caso específico, um dos recursos que eu utilizo é a sístase
como forma de burlar, de armadilhar a audição. Se formos um
pouco mais longe, podemos ver que, tanto na arquitectura como na música,
todo o processo de elaboração que tenho vindo a desenvolver
tem sido estruturado em torno das "armadilhas lógicas". E
aí tem tudo a ver uma coisa com a outra.
Elementos da Teoria do Caos na música
Compus uma peça para Florença, Itália, que foi executada
no mês de Setembro de 2003. Toda a peça se baseia na água.
Por exemplo, pode existir uma corrente de água forte... Desses sons,
consegui isolar pequenas partículas de diferenciação,
ou seja, as descontinuidades do sistema, isoladas do resto e transformadas
por mim. Eliminei toda a parte entrópica. Servi-me apenas da informação
- se é que podemos usar esta expressão livremente neste caso.
Noutra peça minha, utilizei sons captados por observatórios
astronómicos de estrelas e planetas, sons extra-terrestres. Ou seja,
a minha preocupação foi a de, dentro da abordagem que estávamos
a falar, utilizar elementos que possam colocar em conflito o que nós
temos como intenção. Ou seja, a intenção que poderemos
eventualmente associar, e de uma forma intensa, com a vontade de Schopenhauer.
A vontade está directamente e fundamentalmente ligada à nossa
estrutura lógica. A nossa estrutura lógica é o nosso
pensamento e o nosso pensamento é a nossa linguagem. Mas não
é apenas linguagem verbal, são todas as linguagens que nós
articulamos. É a música que tratamos durante séculos,
a publicidade, a arquitectura, o design, é a linguagem verbal, são
as formas de linguagem escrita, enfim é todo um universo vastíssimo
de linguagens que competem dentro de um ambiente que é a cultura. Tudo
isso estabelece um determinado modelo lógico para o qual a intenção
é um elemento estruturante, e é também o elemento que
nos liga à literatura, ao mundo da literatura - o verbo, a estruturação
de todas as linguagens depois da revolução de Gutenberg, da
imprensa e dos tipos móveis. Utilizo, por exemplo, a água ou
os sistemas caóticos, ou utilizo o espaço sideral, as constelações,
ou ainda dentro do mundo subatómico, a nanotecnologia, em algumas peças
minhas, onde são trabalhados princípios de agregação
molecular.
Existe uma peça minha chamada Fogo, onde eu coloco aquele
crepitar característico da madeira a queimar. Mas que ordem está
ali? É uma ordem que nos transcende. Não tem a minha participação.
Posso fazer alguma coisa que está para além daquilo que eu penso,
e isso interessa-me muito. Se não fosse assim, faria música
popular, sem qualquer juízo de valor sobre esse tipo de música.
Ainda no outro dia estive a ouvir Santana, e oiço muitos cantores novos,
não tenho o menor preconceito. É o mundo que nós temos.
Mas há aqui um elemento fundamental: porque é que eu faço
isso? É porque eu acredito no seguinte: Freud definia a cultura como
um instrumento social por excelência de crítica e combate à
natureza. Cultura é um instrumento contra a natureza. Ora, cultura
é a nossa roupa, aquilo que evita que nós estejamos directamente
em contacto com o vento, com o ar, com o frio, enfim, é o vidro, é
a linguagem verbal, é a mesa que evita a gravidade, é o copo
que faz com que a água não caia, é o desenho disso. E
isso é cultura, todo esse desenho do mundo, que inclusivamente passa
pela parte material como os nossos valores, as leis, as regras, como o facto
de eu não poder atacar uma pessoa, tudo isso é cultura. E tudo
o que é cultura é contra a natureza. Basta ir para a floresta
e ficar lá um tempo para ver como é que funciona a natureza.
A natureza é a concorrência a todos os níveis. Uma pessoa
tem de matar a outra para comer e tudo o mais. A cultura é anti tudo
isso, é contra a natureza nesse sentido. Ora, se nós não
tivéssemos um outro instrumento que fosse bastante eficiente no sentido
de desmontar esse instrumento de crítica da natureza, nós viveríamos
aprisionados a um sistema imutável de regras, normas e leis. O que
eu faço é isso, tentar subverter, criar um novo elemento de
subversão. E aqui temos dois pontos de reflexão que me parecem
importantes. Um deles é a Arte, que é esse instrumento por excelência
de crítica da cultura - mas não é crítica pelo
conteúdo, é crítica enquanto desmontagem, enquanto desconstrução,
o que implica uma incorporação. Não se critica nada,
não se desconstrói, não no sentido de traçar qualquer
elemento negativo, mas não se desmonta, não se desconstrói
se não se conhece. Ela implica o conhecimento, portanto ela é
um elemento generativo. Toda a Arte, quando é de facto arte e não
apenas entretenimento que pertence ao universo da cultura, é a critica
da cultura e é generativa. Mas nós temos uma outra face, que
é o crime. O crime também é uma crítica fundamental
da cultura, mas é uma crítica pela degeneração.
No crime, todos os elementos componentes de um determinado momento são
reduzidos, ou são sintetizados a um objectivo que é o objectivo
do próprio crime. Estão sempre juntas. Tolstoi questionou-se
exactamente sobre isso durante toda a sua vida e nunca conseguiu responder.
Mas é exactamente isso, estão juntas pelo facto de ambas serem
elementos de critica da cultura. Enquanto uma tem uma face degenerativa, de
simplificação, de empobrecimento, a outra tem uma face de diversidade,
e de geração. Ela está sempre ligada pela própria
função... Mas, de qualquer forma, na sua essência, ela
está sempre ligada. Um crime, pode ter alguns elementos... Há
alguns casos em que se junta a arte e o crime, mas no momento em que o crime
se junta de facto à arte, ele deixa de ser crime, ele passa a ser arte,
porque implica o conhecimento, o repertório.
Quando eu faço este trabalho, por exemplo, é um trabalho de
uma vida. Como sabe, eu deixei na minha vida, deixei tantas coisas que eu
podia fazer para me dedicar a isto. Dedico-me a isto há trinta anos,
agora vinte e cinco anos só de concertos na área da música.
E na área da arquitectura também, mas eu comecei antes disso,
a estudar e tudo o resto. Acho que isso é fundamental, principalmente
nos tempos de hoje. É isso que faz emergir a questão da identidade.
A violência nada mais é, qualquer violência - e isso é
um conceito que eu tenho de violência - nada mais é do que a
busca da identidade. Não existe mais nada, em qualquer situação,
mesmo numa situação animal. Se há violência é
uma questão de identidade. Às vezes podemos dizer que a pobreza
traz violência. Não, a pobreza só traz violência
quando ela implica uma perda de identidade. Por exemplo, uma pessoa perde
o emprego, perde todos os seus vínculos sociais e acaba por perder
a sua identidade, o que a faz muitas vezes tornar-se violenta. É a
máscara, o personare etrusco, o fazer sonar, o nascimento do próprio
personagem, a emergência do próprio personagem. No meu ponto
de vista, a arte tem um valor muito fundamental numa sociedade turbulenta
como a nossa. A nossa sociedade não é uma sociedade teocrática,
é uma sociedade em permanente turbulência. Nós precisamos
de ter um instrumento de crítica e de leitura da cultura o tempo todo,
senão estamos condenados a uma ditadura, a um autoritarismo, a um totalitarismo
cultural.
É um pouco aquilo que nós assistimos hoje. Quer dizer, a televisão,
os sistemas de hipercomunicação - o telefone, o telemóvel,
todos os sistemas de hipercomunicação - são a hipercultura.
E nós não temos a outra face da hiperarte. Quer dizer, um sistema
competente de critica da arte. Uma vez, chamou-me de "libertário",
lembra-se? Acho que foi na primeira vez que nós nos encontrámos.
E eu acredito nisso, eu acho que tinha razão naquilo. É uma
coisa que está dentro de mim. Eu sou um libertário no sentido
de acreditar no conceito grego da liberdade, que era a capacidade de cada
um para definir os seus próprios limites. A liberdade que eu coloco
como elemento essencial é nossa, porque cada um de nós desenha
as suas próprias fronteiras, os seus próprios limites. Ora,
nós não podemos fazer isso numa sociedade congelada, mumificada
por um rigor mortis de leis e normas que não conhecem a mutação,
a metamorfose e a transformação.
O computador e o trabalho de Composição
O computador é um instrumento, como um compasso, como uma caneta, como
um avião, como um ... Não, é um instrumento fundamental,
porque é um instrumento nosso, de hoje, ele optimiza uma série
de funções. Quando eu comecei a estudar electrónica,
há já muito tempo, não havia a calculadora, aquelas pequenininhas
que hoje nós temos, e computadores nem pensar. Eu comecei a trabalhar
com computadores em 1973 ou 1974, e depois passei a utilizar o Commodore VIC20,
lembra-se? Aqueles bem antigos. Bom, não era muito comum nessa altura.
Eu tinha que fazer todas as equações lá dentro, através
de recursos de geometria analítica e tudo isso. Consegui construir
formas e estabelecer estratégias já com partituras virtuais,
mas que não tinham esse carácter gráfico como depois
nos anos 80. Com o desenvolvimento dos sistemas CardScan, a coisa expandiu-se
violentamente, mas naquele primeiro momento eu tinha que fazer muitas contas
com a régua de cálculo. Até hoje eu faço contas
com a régua de cálculo, mas imagine a distância a que
estamos entre a régua de cálculo e o computador... E o que é
que o computador faz? Optimiza recursos fantásticos!
Por exemplo, essa última peça em que eu trabalho com a água...
Se eu não tivesse um computador para me auxiliar na leitura desses
elementos diferenciais daquele fluxo de eventos, seria praticamente impossível
conseguir fazer alguma coisa. Eu certamente faria, mas veja o seguinte: o
meio é a mensagem e isso é o nosso mundo. Eu sou um computador,
eu faço parte disso tudo. Como eu sou um telemóvel, um carro,
um avião, enfim... Nós somos esse mundo em que existimos. Se
os computadores não existissem, muito provavelmente as minhas preocupações
seriam outras, porque o pensamento não é uma coisa que está
restrita a uma pessoa. Eu uso o computador como uma extensão natural,
minha, mas essa é a forma como eu uso tudo, quer dizer, o piano acústico,
a flauta transversal, já me viu tocar tudo. Quer dizer, eu não
tenho o menor problema. Aliás os meus concertos, eu tenho concertos
para instrumentos, percussão, orquestras...
Em 1985, eu fiz um concerto para quatro orquestras, grandes orquestras, na
Bienal de S. Paulo - foi lá que eu conheci o John Cage. Imagine que
todos os instrumentos tocavam apenas uma única nota. Mas eu fiz uma
análise espectral de cada um dos instrumentos da orquestra para saber
a montagem de harmónicos e o design, o desenho de harmónicos
de cada um e as flutuações de afinação. Bom, cheguei
à conclusão que flutuando a afinação em determinados
momentos, com determinadas intensidades e determinadas oitavas, nós
conseguíamos fazer a montagem de harmónicos que estavam dentro
do timbre do próprio instrumento, que faziam uma colisão no
ar, gerando terceiros sons, ou outras notas. A peça foi muito interessante,
porque todos ouviam tudo e uma série de notas diferentes mas só
era tocada uma nota. Isso só foi possível fazer com o uso dos
computadores, mas não importa, não é tão fundamental,
quer dizer, o computador é essencial mas ele está dentro de
nós. Nós somos os computadores, é essa também
a nossa preocupação. Por exemplo, quando eu questiono a questão
da identidade, a questão da intenção, as questões
da predicação, enfim, todas essas questões são
a realidade do computador, é o ciberespaço. Essas questões
são o mundo de hoje.
Eu gostaria muito de me soltar disso e fazer algum questionamento, talvez
mais interessante, mas acontece que se eu fizer um relacionamento muito interessante
fora disso, fico fora da critica da própria cultura e aí eu
passo a fazer uma coisa que não é nada. E eu não tenho
interesse nisso, percebe? O computador tem uma função, obviamente.
Aqui, temos um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, e há
mais uns quatro que estão embutidos aqui dentro. Todos esses computadores
estão em rede, estão em funcionamento. E para eu fazer os projectos,
muitas vezes eu ... Como lhe falei, fico a saltar de cadeira em cadeira, salto
daqui salto dali, o que ajuda a não engordar muito.
Métodos e processos de trabalho
Naturalmente, há sempre um método, não é? Quer
dizer, há sempre um processo de se compor. Então, a primeira
coisa que eu tenho que saber é o tempo que a peça vai durar.
Depois eu estabeleço todas as estratégias. Mas há duas
coisas interessantes aqui. Uma primeira feia e a outra bonita. Qual é
que quer primeiro? A feia é aquilo que Villa-Lobos dizia, "Componho
como defeco", e é a pura verdade. Quer dizer, eu não controlo
muito bem o processo. Eu sei que tenho princípios de estabelecimento,
tenho que estabelecer determinados parâmetros, mas não os sei
explicar muito bem, porque é um pouco como um transe. Eu estudo, estudo,
estudo, mas depois a parte mesmo da criação, ou da composição,
da elaboração, é uma parte de reflexão técnica.
Quer dizer, nós temos de ter isso. Qual vai ser o recurso que eu vou
utilizar nesse determinado elemento, etc... E tudo isso implicando a invenção,
o princípio da invenção. Uma peça é sempre
diferente da outra. Eu nunca me repito, não faço coisas iguais.
Eu estou sempre a questionar-me, estou sempre a procurar saber o que é
que é o essencial naquele determinado momento. A segunda coisa é
que normalmente eu componho quando estou a dormir, durante a noite. Eu tenho
sempre ao lado da minha cama um computador, ou um caderno, ou um livro, e
todas as vezes, principalmente nas épocas em que tenho projectos para
entregar, trabalho a dormir. Então é muito engraçado,
eu durmo, e aí eu elaboro, elaboro, então acordo e escrevo ou
ponho tudo no computador e caio na cama. Quando caio na cama durmo imediatamente
de novo, e continuo a trabalhar. Continuo, acordo de novo, vou para lá,
volto para a cama, durmo e continuo. E isso uma noite toda, e eu não
me canso, eu descanso mesmo. No dia seguinte estou absolutamente óptimo.
Deve ser algum defeito genético, o meu pai também tinha isso.
O meu pai era um inventor de relógios e era engraçado porque
ele não tinha esse hábito de se levantar a toda a hora para
escrever e para anotar, mas quando amanhecia ele dizia, "Olha, não
me posso esquecer... não me posso esquecer...", e era uma nova
invenção ou uma patente que ia sair, ou coisa do género.
Todas as minhas peças, quando vão para concerto, têm uma
execução pública, excepção feita a raros
casos em que toco sozinho, e então aí eu dou-me um pouco a liberdade
de ver o que é que eu vou fazer na hora, mas quando eu trabalho com
outras pessoas, que é o que eu mais gosto, há sempre um processo
criativo que implica a participação de todos. As pessoas têm
que criar, elaborar. Isso faz parte da minha música. Eu estive em 2002
no Lincoln Center com o Merce Cunningham, e o Merce chegou e falou "Olha,
Emanuel, nós estamos a celebrar o primeiro concerto, e nos primeiros
dois dias vamos abrir com a tua música". Ele referia-se a Fabrications,
que englobava duas peças minhas, o Shortwaves 1985 e SBbr, e disse
"é histórico, faça-se o que foi feito há
vinte anos atrás...". Eu respondi: "Não dá,
eu não consigo, não se pode fazer, não existe, aquilo
de há vinte anos já foi há vinte anos, era interessante
naquela época e acabou". E surgiu uma situação um
pouco assim e o Merce disse: "Tens toda a razão". Mas o Robert,
que era o director da companhia, teve uma certa dificuldade em assimilar isso.
Foi aí que o Christian Wolff e o Takehisa Kosugi tocaram comigo naquela
gravação. Mas acabou por ser uma coisa completamente diferente,
outra coisa. Nós não somos os mesmos daqui a meia-hora, daqui
a cinco minutos. E esse é que é o valor da música gravada,
não é? Podemo-nos ouvir a nós próprios, e cada
vez que ouvimos, porque ouvimos cada vez de uma forma diferente, ouvimos a
nossa mudança. Mas o músico, mesmo que vá tocar uma música
convencional, Bach, qualquer coisa, Händel, Josquin, o que quiser, ele
toca sempre outra coisa, sempre diferente. Porque é que na música
contemporânea deveria ser diferente? Não, isso pode ser optimizado
ainda, pode ser amplificado, então eu tenho métodos de trabalho,
cada peça quando a vamos executar, é um trabalho que implica
... Por exemplo, o Microcosmos - nos primeiros concertos, era praticamente
toda electrónica e digital, transformando os sons e aquela coisa. Mas
um dos requerimentos da peça, o que ela pede, é que para cada
cidade que a companhia vá no mundo, ela recolha um som. Numa lata de
lixo, num lugar, não importa, um pedaço de metal, alguma coisa,
até ao ponto que todos aqueles sons digitais vão sendo gradualmente
substituídos pelos sons coligidos nas viagens da companhia pelo mundo
inteiro. No final, é outra peça, é uma peça em
metamorfose, em permanente transformação.
É nisso que eu acredito, eu acredito na metamorfose, na transformação,
na interacção, na diversidade, na criatividade, no indivíduo,
são os valores. Todos esses valores são os valores de uma filosofia,
ou seja, um amor ao conhecimento do mundo, um amor às coisas como elas
são - é o que eu amo, é a minha vida. Eu nunca poderia
fazer uma partitura, por exemplo, que fosse feita sempre da mesma forma, porque
eu não acredito que os seres humanos sejam isso.
Argumento para a utilização de
sons sintetizados
Sabe qual é o problema? Ou porque é que isso acontece? Quando
eu trabalhava no Brasil, até 1985, tinha muitos músicos a trabalhar
comigo. Eu, no Grande Auditório do Museu de Arte Moderna de S. Paulo,
dava seis ou sete concertos por ano. Muitos concertos, com muita gente, com
muitos músicos trabalhando e havia um espírito de solidariedade,
de camaradagem, que depois eu não tive mais na Europa. Acabou, aqui
não há. Aqui, muitas vezes o pessoal que vai tocar quer saber
do dinheiro, quer saber de pagamentos, mas nós mesmos passamos por
grande dificuldades, principalmente no início da carreira, para se
fazer as coisas. Ou nós vamos, apostamos na coisa e fazemos, ou não
se faz. E houve tantas vezes na minha vida que eu fiz coisas para tanta gente
sem cobrar um tostão, porque fazia parte da minha própria vida.
Então eu acho que, quando passei a viajar mais, voltei para a Europa...
Eu tenho uma necessidade muito grande de trabalhar, eu não posso depender
das pessoas.
Não sou o tipo de pessoa que na hora em que eu tenho uma dificuldade
me acomodo e digo "deixa para lá". Não, eu vou em
frente, faço. E uma das saídas que eu encontrei foi a música
digital e muito com os sistemas de sampling e depois com a amplificação...
Isso permite-me trabalhar sozinho, mas nunca procuro recriar instrumentos
acústicos, nunca. Muitas vezes uso recursos de música concreta
no sentido de criar um conflito entre aquilo que se estabelece no colectivo
e aquilo que nós estabelecemos como uma intenção individual
dentro desse quadro cultural. Também aí há um recurso
muito interessante, é natural. Por exemplo, aquelas peças para
o Fernando Pessoa, só com sons sintéticos numa das peças,
que são transformados em elementos MIDI, em informações
MIDI. A estrutura foi recolhida nos trajectos que Fernando Pessoa provavelmente
teria feito na Baixa de Lisboa e tudo o resto. Agora eu não sei...
Eu acho que nós somos muito feitos também pelas possibilidades
que acontecem. A nossa vida, somos nós que a fazemos e somos feitos
por ela também. Quer dizer, nós fazemos mas somos feitos.
Eu não me sinto uma pessoa muito culpada disso, acho que sou um pouco
um produto disso, do mundo, das coisas, das transformações,
das pessoas que deixaram de existir, a outras, outras pessoas que passaram
a existir. Outras exigências surgiram, eu passei a fazer muita música
para cinema, muita música para dança, passei a ter concertos
em muitos lugares do mundo feitos por grupos diferentes, por músicos
diferentes, e muitas vezes isso passou a exigir também uma abordagem
diferente. Eu não sei... Tem razão quando diz que em muitas
das minhas peças acontece isso, mas eu não sei em que grau e
não o saberia dizer agora, em que grau em que essa é uma influência
substancial. Aliás, não me interessa isso. Interessa o projecto
que está por trás, a ideia, aquilo que estrutura o próprio
pensamento da composição... É natural que me interesse
por todo o material, mas há algo que está por trás disso
tudo que articula, que amarra tudo isso. E pode ser que amanhã eu deixe
de concordar com tudo isto que estou a dizer agora, certo? Porque eu acho
isso mesmo.
A influência de John Cage
Tinha uma professora maravilhosamente maluca que nos deitava no chão
a ouvir Stockhausen, Pierre Schaeffer, Pierre Henry, John Cage e todos esses
compositores. Isto passou-se em 1968, em plena ditadura militar no Brasil.
E desde cedo me encantei com a música do John. Mais tarde viríamos
a conhecer-nos, em 1985, e tornámo-nos muito amigos.
A minha música sempre foi diferente da dele. Sempre fiz muita questão
em frisar isso, porque eu nunca tentei imitar o John. O meu trabalho é
o meu trabalho, é outra coisa. Ele gostava do meu trabalho porque era
diferente. E o John tinha uma postura, não era só do meu trabalho
que ele gostava, ele adorava muito as coisas. O John era uma pessoa muito
interessante, mas uma coisa que eu acho que ninguém gosta é
quando se fica a imitar o outro. E não existe isso, nunca existiu.
Agora foi curioso, quando saiu esse meu livro sobre o John para celebrar os
dez anos da morte dele, um crítico italiano fez uma leitura que eu
nunca tinha feito, e que talvez só depois de dez anos da morte dele
eu seja capaz de fazer. Esse crítico escreveu sobre o livro e disse:
"Era um jovem compositor, muito jovem, que teve a sua vida profundamente
alterada, indelevelmente alterada, pelo contacto com o John Cage". Na
altura, eu não senti isso, mas hoje, dez anos depois, eu acho que o
John teve uma grande influência sobre mim. Mas eu não pude sentir
essa influência no momento, porque não se reflectiu na música
propriamente dita, mas muito provavelmente na própria vida. O John
era uma pessoa maravilhosa, foi uma das pessoas mais maravilhosas que eu conheci
em toda a minha vida, e hoje eu acho... Eu falo com uma grande alegria, porque
de certa forma é uma coisa que nos liga espiritualmente. Eu adoro ser
influenciado, acho que é a coisa mais engraçada, mais interessante,
mais bonita da vida nós estarmos abertos para sermos influenciados
por absolutamente tudo. E se eu hoje sou capaz de voltar dez anos atrás
e dizer, "Puxa vida, olha...", de repente esse critico italiano
tinha toda a razão. Eu era um menino, quando conheci o John tinha vinte
e seis anos de idade e realmente acho que ele exerceu uma influência
muito grande sobre mim, em todos os aspectos.