Entrevista

Entrevista a José Carlos Sousa / Interview with José Carlos Sousa
2005/May/31
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Percurso de Aprendizagem: etapas e pontos de viragem

Até pode ser um lugar comum, mas tive o primeiro impulso que me levou a estudar composição ainda no Conservatório. Fiz um percurso mais ou menos normal e no último ano que tive A.T.C. [Análises e Técnicas de Composição], tive talvez a sorte de ter encontrado estagiários da Universidade de Aveiro a estagiar em Viseu, que – em paralelo com as aulas normais de uma das professoras que era a Isabel Ramos - tentavam fazer várias actividades dentro da composição (isto para além daquele “curriculum” que está estabelecido do 3º ano de A.T.C.). Essas actividades visavam o sentido prático da composição: compor em grupo, compor outras coisas que não só aquele tipo de composição que nós temos no “curriculum” e que temos que estudar. Talvez aí tenha sido o primeiro arranque. Depois disso ingressei aqui na Universidade de Aveiro e fiz o percurso normal de um estudante um curso superior de música na Universidade.
Houve aqui alguns professores que me marcaram, claro. Professores importantes para o meu percurso musical como compositor de que podia salientar três. Começava por falar do professor Evgueni, que foi meu professor de composição durante alguns anos; foi com ele que comecei realmente a compor ou a dar os primeiros passos da composição. Assim, e para além do conservatório, foi com o professor Evgueni que eu comecei a trabalhar e que comecei a perceber o que era desenvolver uma ideia musical e o que era compor. Trabalhei com ele 4 anos. Trabalhei também com o professor João Pedro Oliveira e com a Professora Isabel. Com o João Pedro Oliveira trabalhei mais música electroacústica, o que também me fez despertar muito o interesse pela composição, o interesse por trabalhar o som, e não o simples trabalhar de uma ideia musical que depois é colocada num papel que alguém eventualmente pode interpretar. É o trabalhar o próprio som e a ideia musical através do som, esculpi-lo, trabalhar o som em si. Foi com o professor João Pedro Oliveira que comecei a trabalhar esse campo da composição. Com a professora Isabel Soveral, já é numa fase posterior… uma fase dentro da Licenciatura e que se liga ao mestrado que estou a acabar. Aqui não só trabalhei uma parte importante do meu percurso de compositor como seja a técnica do “fazer musical”, mas também o pensar sobre as coisas e o organizar de metodologias para alcançar um trabalho supostamente artístico, composicional. Foi uma professora importante porque trabalhei muito neste campo. Ao nível do percurso escolar, foi mais ou menos isto que me marcou. Existem ainda mais duas instituições que desempenharam um papel importante e que me marcaram de alguma maneira. Uma foi a Gulbenkian com os “Encontros” – os famosos “Encontros de Música Contemporânea” da Gulbenkian. Eram realmente semanas de estímulo para um jovem compositor que andava com aqueles ideais, com aquela força de compor… aliás, quando saía de lá parece que conseguia compor tudo – enfim, depois esta força passava depressa! Mas de qualquer maneira, foi lá que tive contacto com grandes nomes e com grandes obras que se podiam ouvir lá. Creio que para um jovem compositor representavam uma força que vinha do exterior do percurso académico e que nos podia fazer levar a pensar um pouco mais além.
Outra instituição importante é a Miso Music. Não só pela mesma razão dos “Encontros” da Gulbenkian, ou seja, pelo contacto que temos com os compositores e com várias tendências, mas também pela aposta que é feita em jovens compositores e na sua promoção e das suas obras. Mesmo que ainda não sejam “grandes” obras, há uma coragem para apostar nesses compositores e nessas obras que eventualmente ainda não são “as tais”, mas que têm realmente um papel decisivo. É importantíssimo promover concertos com essas obras – e daí a Miso Music ter sido (e ainda o é) uma instituição muito importante para qualquer jovem compositor aprendiz que queira começar a mostrar o seu trabalho.
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O Papel da Electroacústica e os Processos Criativos

Quando penso numa obra, já quase não penso nela sem electroacústica e diga-se que é quase um “sacrilégio” ter à disposição este recurso e não o utilizar, podendo desenvolvê-lo numa obra. É claro que com uma grande orquestra (com recursos que um jovem compositor não tem) também se pode conseguir resultados talvez parecidos ou, se calhar, até melhores do que com electroacústica. Mas de facto, quando agora penso numa obra ou ao fazer uma nova obra, penso sempre em fazê-lo com electroacústica, com o computador, com o trabalho sonoro sobre o próprio som. Portanto… praticamente já não penso em fazer um quarteto de cordas “clássico”. Mas se fizer um quarteto de cordas, ou se me pedirem para fazer um quarteto de cordas, vou tentar que possa ter um quarteto de cordas com electroacústica. E isso vem daquilo que me interessa na composição: o trabalho do som, o trabalho da exploração dos timbres, o trabalho sobre o timbre, sobre o próprio som. Pode fazer-se com som e com derivações, não só a nível electroacústico, mas também através dos processos electroacústicos que actuam sobre o som. Enfim, pode efectuar-se operações e pensamentos similares aos da escrita instrumental… tudo a partir desse trabalho que se faz com o computador, com os programas informáticos com que se trabalha o som. Quando tenho que escrever qualquer coisa em instrumental, este pensamento electracústico está sempre presente. Claro que quando estou a pensar escrever qualquer coisa só para instrumentos, a electroacústica mesmo não estando lá, vai estar presente de alguma maneira, o pensamento vai estar de alguma maneira a ela ligado; o tratamento tímbrico e textural que vou operar sobre o material acústico que quero desenvolver vai ter a ver com o material electroacústico.
Também acontece utilizar as duas possibilidades (sons concretos e transformações) porque por vezes são necessárias para alcançar determinado objectivo e determinada ideia que se tem sobre o que se quer trabalhar. Ultimamente, as obras que tenho feito são mais a partir de objectos sonoros, essencialmente retirados dos sons dos instrumentos com os quais trabalho nas peças instrumentais e que têm electroacústica. Nesse sentido, a síntese sonora não está assim tão presente. A maneira como trabalho os objectos e como são extraídos dos instrumentos é recorrendo a programas de síntese sonora para transformação desses próprios objectos. E também para criar o meu vocabulário instrumentalmente electroacústico, o que eventualmente passa pela síntese sonora.
As transformações… Já me motivou, mas há uma questão essencialmente prática, que é alguma falta de conhecimentos meus nesse domínio do tempo real. E a Miso Music tem dado, - enfim já deu mais, agora parece que os cursos não têm estado tão activos – cursos importantíssimos que foram feitos com o Max/MSP e outros, mas que eu não aproveitei na devida altura. Também sucede que durante o meu plano curricular aqui na Universidade esta não foi uma matéria muito trabalhada e daí uma lacuna minha que me impede um pouco de explorar esse campo de uma maneira interessante. A exploração seria bastante mais empírica e por aí é melhor não avançar.
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Breve Viagem pelo Catálogo de Obras

A primeira peça que eu tenho no meu catálogo, Uma pequena almofada, é uma peça “infantil”, feita ainda no Conservatório. Foi aquele tal motor de arranque para os estagiários de composição criarem várias actividades viradas para a composição. Uma delas foi um concurso interno da escola, recebendo então o meu primeiro prémio (se é que é um prémio de composição); de qualquer forma, serviu-me mais de motivação e para pensar que se calhar podia aprender composição. Não foi um prémio de composição assim tão importante no sentido do prémio em si, da instituição que o dá, etc., mas foi importante. Creio que foi a partir daí que percebi que se podia ver a composição de outra maneira e tentar então apostar na composição de uma forma mais séria. Essa peça infantil, baseada num ostinato, não é uma peça por aí além em termos composicionais, mas na altura serviu exactamente este propósito.
Em relação às peças seguintes… a peça para guitarra Pytin foi talvez a minha primeira peça já na Universidade, onde comecei a utilizar um pensamento mais estruturado e mais relacionado com a composição em termos mais “sérios” apesar de ser naturalmente um trabalho ainda muito incipiente. Esta exploração, no início do meu estudo académico, vá lá, já se prendia um bocado com o estudo do som, com a preocupação de explorar o instrumento, uma exploração de gestos instrumentais não vulgares e que são típicos da música contemporânea. Explorar o gesto de, enfim, tocar num instrumento de uma forma não convencional e daí extrair sons também não convencionais. É isso que a minha peça já reflecte, mesmo no início do meu arranque. (Fi-la no âmbito do meu quarteto de cordas cujo nome teve de ser alterado para Quarteto de Cordas Evgueny aquando do meu registo na SPA… Devia haver centenas de quartetos de cordas e acabei por prestar homenagem a este professor que me marcou bastante e que muito me ajudou no meu percurso composicional).
É uma peça que eu acho que é importante e basicamente o pensamento que a originou representa uma espécie de trabalho com campos sonoros, nuvens ou agregados sonoros, que se vão modificando e em que se passa de uns agregados para os outros, através de processos microtonais. Trabalhei os microtons e criei campos sonoros por onde a peça vai passando. É uma peça eventualmente interessante… pelo menos para mim foi importante e fez parte da minha aprendizagem.
Depois as peças electroacústicas… Quer a Apocalíptica, quer a Viagem foram peças muito importantes pelas descobertas que eu fiz sobre as novas possibilidades. Compor o próprio som, trabalhar o próprio som... Estas peças foram realmente importantes, sobretudo nesse aspecto do trabalho tímbrico, do desenvolvimento de sons feitos só em computador, através de síntese sonora, feita por mim… É claro que o software é trabalhado por várias pessoas e pode haver sons muito parecidos, mas talvez aí nessas peças haja sons mais “meus” que noutras peças. E nesse sentido foram peças também muito importantes no meu fazer musical.
A peça Viagem acabou por ter uma importância suplementar porque foi premiada (embora a Apocalíptica também tenha tido uma menção honrosa e tenha sido muito importante porque é uma peça de que gosto muito). Quer uma quer outra são peças que, no meu entender, são interessantes por causa deste trabalho com o som, e não só com de representação do som, o que é uma diferença importante.
Em relação à Musicamania I e II, são trabalhos em que pensei mais na espacialização, ou seja em usar o espaço na obra, quer no espaço, quer na execução. Não foram ainda tocadas, mas pelo menos a Musicamania II para orquestra de câmara, tem um trabalho e um pensamento por detrás da peça que tem a ver com a espacialização sonora, sem electroacústica, mas que está relacionado com aquilo que eu tinha estudada em electroacústica, ou seja o tal pensamento electroacústico que também está presente nas peças instrumentais.
Os percursos espaciais na própria escrita são mais notórios no Musicamania II e tem a ver com a própria localização dos músicos. A maior parte dos músicos estão no palco com o maestro e depois há uma disposição espacial de um percussionista, o qual vai ter uma série de instrumentos “por cima” dos músicos da orquestra. No fundo da sala existem mais dois percussionistas com mais uma série de instrumentos e onde posso eventualmente deslocar os vários sons produzidos. Por fim, num nível ainda mais elevado e por cima destes percussionistas, haverá um grupo de metais que também entram em determinada altura na peça. E esta peça não foi pensada para um espaço virtual, foi mesmo pensada para um espaço real que é o auditório do departamento de Música da Universidade, o qual tem uma estrutura metálica onde são colocadas as luzes, por exemplo. Uma outra ideia que tive é que. Ao fazer um concerto num local destes, poderia eventualmente colocar os músicos suspensos… enfim… é um pensamento (ainda não foram tocadas)…
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O Ciclo “Contemplações”

O ciclo Contemplação já são peças onde actualmente me revejo mais como compositor, que exploram mais aquilo que eu gosto mais de trabalhar como compositor, que é a electroacústica com instrumentos. Claro que também gosto de trabalhar os instrumentos… mal de um compositor que não o faça… Mas eu gosto de fundir os dois mundos… nem só os instrumentos nem a electroacústica “a solo”… fazer obras que depois acabam por ser talvez um pouco mais complexas de executar porque a electroacústica não é em tempo real. Ela é trabalhada em estúdio e a interpretação torna-se mais complicada: se o músico se atrasar um bocadinho ou se se adiantar, é obvio que os acontecimentos já não vão bater no sítio certo. E daí as peças não serem assim tão fáceis para o intérprete.
Bom… mas pelo menos estas peças já foram todas estreadas e tocadas, uma delas no Festival Música Viva do ano passado, que foi a Contemplação III, para quinteto de cordas, piano e electrónica. As outras… a Contemplação I que é para duas guitarras e fita, e a Contemplação II que é para saxofone e fita, são peças onde eu - conhecendo os músicos para quem as compus e com quem trabalhei muito – não escrevi com os músicos mas “servi-me” muito deles para a extracção dos sons que eu queria trabalhar na peça, e para discussão de eventuais problemas técnicos que possam surgir na execução, etc. Estas peças já reflectem bem o que é que penso ou qual é a minha ideia que quero compor actualmente. E também são peças que têm como elo de ligação ou “motor de arranque” o timbre, o trabalho tímbrico com os objectos sonoros, as metamorfoses tímbricas operadas através de computador ou as metamorfoses instrumentais que eu vou operando em cada instrumento ao longo da peça. Isto foi o que mais me importava e a minha preocupação base nestas peças: esse trabalho sonoro, tímbrico, de exploração, que fiz é transversal a todas as peças deste grupo, acho eu. Em algumas peças é muito notório essa transformação tímbrica, porque são os sons que eventualmente são tocados no instrumento e que passem para a fita, são transformados e depois regressam ao instrumento transformados de uma nova maneira. Mas essencialmente são peças em que o trabalho principal, a preocupação principal foi o som, a transformação do som, o timbre, isto apesar de estarem – enfim – ancorados numa organização em estruturas eventualmente semi-seriais, etc, quer nas alturas, ritmos, etc.
Nestas peças, o material harmónico é semelhante mas não parte da mesma raiz – o tratamento harmónico, rítmico, é parecido, é trabalhado com os mesmos modelos, - mas o que as une é mais a maneira de trabalhar o som, ou seja, o trabalho tímbrico, quer dos instrumentos, quer das metamorfoses electrónicas e acústicas que são operadas em todos os aspectos.
Para já, este é um ciclo que se fecha aqui, que tinha a ver também com o trabalho prático do meu mestrado, para o qual necessitava de apresentar um projecto. O projecto consistiu em fazer um ciclo de obras que englobassem instrumentos eletroacústicos, obras mistas, e como essas preocupações tímbricas fazem parte da minha dissertação de mestrado, o meu trabalho prende-se por aí.
Claro que as peças que eu irei continuar a compor terão esta temática muito presente, e o trabalho tímbrico é algo que eu quero continuar a explorar e que me interessa explorar.