Entrevista a António de Sousa Dias / Interview with António de Sousa Dias
2004/Jul/26
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Basicamente, eu creio que o meu percurso tem duas
vertentes que decorrem em paralelo. Numa parte, eu iniciei os meus estudos
musicais razoavelmente cedo, e na minha formação musical vai ser determinante a
minha professora de piano, a Albertina Saguer, que, a partir de um dado
momento, por volta dos meus 14, 15 anos vai-se aperceber que eu, mais do que
querer tocar piano, tenho uma enorme vontade de compor, ou pelos menos não
consigo ficar quieto sem escrever umas notas de música, e que me vai começar a
orientar no sentido de fazer sempre muito mais repertório, não com sentido
pianístico – de tocar excelentemente ou com um certo grau de excelência – mas
de adquirir um leque o mais alargado possível de conhecimentos musicais, e curiosamente
através de um outro aspecto que é convidar-me sempre que possível, a tocar-lhe
as minhas obras. As minhas obras, enfim, as obras de juventude, por assim dizer
– para que eu me acostumasse, enquanto compositor, a conviver com intérpretes e
dissociar muito bem aquilo que eu ouvia dentro da minha cabeça, daquilo que
estava efectivamente na partitura e que estava naquele momento a ser tocado.
Portanto nesse aspecto, é uma figura que vai ser determinante na minha
formação.
Outro aspecto complementar na minha formação, e que do
ponto de vista musical se vai tornar importantíssimo - já quando vou mesmo
entrar no terreno musical, digamos, do ponto de vista profissional - é a
relação que tenho com o cinema. O meu pai é realizador de cinema, e isso fez com
que eu, desde pequeno, estivesse sempre de alguma maneira a ver filmagens, a
assistir a montagens, a assistir a dobragens ou a ver como se fabricavam ruídos
de sala ou todos os efeitos especiais e, portanto, esse é um tipo de situação
que também faz parte do meu imaginário.
Por outro lado, o meu pai tinha muito interesse, já na
altura – nos anos 60 – pela música concreta, pela música electrónica, o que faz
com que eu, mais ou menos desde miúdo, conheça se calhar melhor o Gesang der
Jungling de um Stockhausen do que propriamente as sonatas de
Beethoven (só as conheci mais tarde enquanto jovem pianista). Estas duas
formações são razoavelmente paralelas, quase estanques entre si, porque numa
formação mais ou menos clássica não há esta vertente, digamos, electroacústica.
De qualquer forma, mais tarde elas vão confluir num determinado ponto, que é o
momento em que eu vou desistir do Técnico - numa formação como engenharia
informática (na altura electrónica e telecomunicações) – e vou optar pelo
conservatório, para terminar o curso superior de composição. Nesse aspecto, uma
figura que vai ser determinante, porque vai permitir a confluência destas duas
áreas, é a Constança Capdeville.
Eu tive figuras muito determinantes no meu percurso
- apesar de tudo eu costumo
brincar e dizer que sou como aquele comediante, aquela figura do Herman José, o
Serafim Saudade - "eu sou uma cooperativa". E sou, de facto, o
resultado de uma cooperativa para onde concorreram várias pessoas muito
importantes para a minha formação. Se às vezes não os menciono todos é mais
pelo receio de me esquecer de alguém do que propriamente pretender omissões. De
qualquer forma, a Constança é quem vai, nessa minha formação, permitir-me a
confluência destas duas áreas.
Eu, desde muito cedo, começo também a fazer música para
cinema, documentário e televisão. Isso de alguma forma foi, de um certo ponto
de vista, paralelo na minha formação.
Ao chegar ao séc. XXI, mais uma vez, vou ter uma espécie
de confluência de dois rios que eram paralelos - a música para cinema, de uma
certa maneira, e depois a música instrumental, electroacústica. Porque é que
para a maior parte das pessoas são dois percursos quase que autónomos? Porque
quem conhece normalmente o meu percurso no cinema não conhece muito bem as minhas
obras instrumentais, e vice-versa - quem conhece mais ou menos o que eu fiz
para alguns grupos portugueses não conhece muitas vezes o que fiz no cinema. No
entanto creio que tudo isso, juntamente com a minha formação do Técnico - tinha
ficado um pouco parada a sua assunção, até porque eu tinha mudado de carreira
de uma forma de certa maneira brusca –, todas elas se vão juntar agora nesta
última parte do meu percurso, por assim dizer.
Influência de conceitos e
técnicas provenientes do cinema na composição musical
No cinema, um dos grandes processos é a montagem, ou pelo
menos num certo cinema narrativo (mesmo não narrativo se nós pegarmos no caso
do Dziga Vertov – O homem da câmara). Estamos perante a montagem como um
elemento primordial, que encontramos também na música electroacústica, ou
concreta, electrónica - um tipo de processo que embora relacionado com uma
ideia de mosaico, apesar de tudo, ultrapassa pelo tipo de elementos que pode
colocar em jogo.
Outro aspecto marcante foi a questão da própria colocação
de som em cinema. Provocou-me uma espécie de consciencialização do som, na
medida em que, muito rapidamente, nós aprendemos no cinema que causa e efeito
não estão necessariamente relacionados. Quer dizer, nós podemos colocar um som
em alguém ou algo que não é um som original dessa fonte mas que é o som que o
espectador vai associar como sendo provocado por aquela fonte. Imediatamente há
aqui um problema que se coloca, que é termos que estar – em relação ao próprio
som – numa atitude a desenvolver. Uma espécie daquilo que Schaeffer chamaria
uma escuta reduzida, isto é, ouvir o som em si mesmo, independentemente da sua
causa, precisamente para estarmos em guarda, ou pelo menos podermos aplicá-lo a
outras causas, e ele tornar-se plausível. Na verdade, no caso do cinema, não se
trata de torná-lo real mas sim plausível. É com isso que o cinema lida, com
critérios de plausibilidade. Todo esse aspecto teve uma grande importância na
minha formação. Não deixa de ser engraçado a referência em relação à Constança
- acho que não é por acaso que o meu exemplar do Tratado dos Objectos
Musicais do Schaeffer tem uma dedicatória da Constança. Foi-me
oferecido por ela, num aniversário meu, e ela disse na altura: “Este livro é
capaz de vir a ser muito importante para ti!” - o que foi verdade. E continua a
ser verdade! Isto em relação ao tipo de abordagem da própria Constança, como
também, por exemplo, de um Peixinho, em que nós vemos que, mesmo não tendo ele
feito música electroacústica no sentido específico do termo, está lá um aspecto
muito mais importante, creio eu, que é a reflexão sobre o som, que circula nas
suas obras - e até de um Cândido
Lima que fez, nesse aspecto, muito mais música electroacústica. Mas portanto, há
aí toda uma zona, e eu creio que tive, de certa maneira – gosto de dizer e
assumo isso –, uma área de influência desses compositores também neste aspecto
relativamente ao próprio som, que vem também do cinema.
De qualquer forma, depois há outros aspectos em relação a
certos tipos de discurso musical – eu não gosto muito de utilizar o termo,
confesso que tenho algumas dúvidas em relação à ideia de linguagem musical e
outra terminologia do género que neste momento não me interessa muito porque
nem sequer faz parte da minha terminologia musical, e que é uma coisa que
poderei desenvolver depois a seguir: “Como é que eu encaro a obra musical” –
mas nesse aspecto, quer o cinema quer a música electroacústica foram também
determinantes na maneira como eu vou manipular mesmo os materiais musicais –
para além dos sonoros – até na música instrumental pura.
Escrita instrumental e escrita electroacústica: uma
mesma realidade
Na minha escrita musical, neste momento, não faço
distinção entre o que é escrita ou outros tipos de processos. Ou seja, integrei
no mesmo suporte – neste caso suportes digitais – igualmente, com o mesmo peso,
a concepção de um filtro e o desenvolvimento de uma técnica de extrapolação de
notas. Portanto, acho que, a partir do momento em que há um novo suporte,
aparecem, provavelmente, novas formas de fazer música. Isto é sintomático,
quando aparece uma música baseada no papel, em que aparece uma notação musical.
Nós assistimos, pela primeira vez na história da música, à existência de
técnicas musicais que se vão desenvolver e até a uma certa permissão de grandes
formas que não eram possíveis com uma música, digamos, memorizável ou apenas
memorizada ou aprendida de cor. Neste momento, com um suporte em que, pela
primeira vez, nós voltamos a ter uma situação pré-Gutenbergiana, ou seja, em
que no mesmo suporte voltamos a ter tudo – tal e qual como as iluminuras, em
que desenho, texto, grafismo e concepção de página coexistiam todos no mesmo
tipo de suporte, e que a revolução, digamos, Gutenbergiana veio separar. Neste
momento nós voltámos a ter, outra vez, o mesmo suporte que recolhe,
indiferentemente, todo o tipo de expressões diferentes. Eu creio que isto tem
uma importância fundamental na escrita musical. Por exemplo, actualmente não
faz sentido muitas vezes falar de uma espécie de tecnologia, técnica musical
tecnológica ou tratamento de som, como algo distinto da escrita musical em
sentido tradicional, da escrita de notas. Creio que hoje o compositor quando
trata com estes meios trata indiferentemente de tudo, é integrado.
Hoje, em relação a certos aspectos da minha própria
escrita instrumental, obviamente eu devo muito à abordagem electroacústica e ao
conhecimento sobre o som. O que quer dizer que há certas técnicas de escrita
aparentemente apenas musicais – musicais no sentido da nota, portanto, aquela
entidade abstracta que é a nota – cuja forma de colocar deve muito à música
electroacústica. Por outro lado, um certo tipo de tratamento - ao nível de, por
exemplo, certas utilizações de filtros ressonantes, certas utilizações de
alguns processos de morphing, certos aspectos parciais na
utilização de certos morphings ou todo um outro tipo de
utilização da ideia de eco - por assim dizer, de convulsão, tem a ver com a
imposição de certos aspectos da escrita instrumental sobre os meios
electroacústicos.
Quero dizer que, mesmo em obras puramente instrumentais
minhas, mesmo em obras electroacústicas puras, creio que já não se consegue ver
muito bem a sua distinção a não ser na sua manifestação. Ou seja, há ali uma
obra que, enfim, não tem instrumentos à vista, mas ela, provavelmente, obedece
a muitos aspectos da música instrumental. Obras instrumentais que, sem o meu
conhecimento de outros tipos de práticas, não seriam possíveis considerar.
Materiais Musicais
Os meus materiais musicais, quando os integro numa obra,
há algumas preocupações que vêm a partir do som. O próprio som determina, por
vezes, tanto ou mais do que uma operação, uma manipulação meramente simbólica.
Por outro lado, eu próprio desenvolvi algumas técnicas e algumas tecnologias,
com base noutros autores evidentemente, de forma a que, até mesmo materiais
aparentemente não sujeitos a operações simbólicas – não gosto muito de empregar
o termo mas para tornar mais compreensível, materiais tipo concretos, por assim
dizer, uma espécie de espectralidade ou com textura espectral mais aproximada
de acordes ou agregados ou notas - podem encontrar as notas, por forma a criar
pontes, ou passerelles, entre este tipo de universos. Isso implica também uma
certa revolução na própria escrita.
Eu próprio tive que rever os meus conceitos de escrita
musical e de técnicas de escrita musical. Devo dizer que, uma das minhas
primeiras tentativas - enfim, já nos meus 20 anos –, aquilo que me apaixonava
numa certa parte da composição musical devo confessar que era, dada uma boa
parte da minha formação, todo o tipo de operação e manipulação simbólica que
pode vir através de um Xenakis. Fala-se muito do Xenakis a propósito da
estatística mas ele tem muito mais do que isso. Não só as operações simbólicas
como operações lógicas, todo um certo tipo de operações e de conceitos que se
podem trazer a partir de um universo digamos, mais matemático. Era esse o meu
intuito primeiro quando começo a abordar certos problemas de composição
musical. Curiosamente, através do Schaeffer, e, direi mais, através do Grupo de
Pesquisa Musical, do GRM, sou confrontado com o problema do som em si, que não
se deixa simbolizar de uma forma tão fácil e onde uma simbolização do sonoro
pode-se tornar extremamente arrogante. Esse foi talvez o meu primeiro grande
choque que, depois - através de uma Constança, de um Peixinho, de um Cândido
Lima, para além de outros compositores não nacionais - fui abordando aos poucos
e re-perspectivando todo o meu posicionamento. Portanto, quase uma espécie de
longo choque-queda, em que a pessoa vai perdendo todas as muletas possíveis e
imaginárias, até me tornar tão desconfiado da escrita que tive quase que a
reinventar para os meus propósitos, no sentido de não me deixar cair na
tentação da regulação arrogante do facto sonoro. Sobretudo quando, a partir dos
anos 80, nós assistimos aqui a uma das grandes revoluções - que já se tinha iniciado nos anos 60,
de facto - da música electroacústica, através do desenvolvimento da informática
musical e de um maior aceso ao som. Para já à eclosão daquele aparente
parâmetro - o timbre, que deixou de ser um parâmetro e passa a ser uma rede
incrível de dimensões que já estavam previstas por Schoenberg, no último
parágrafo do seu tratado de harmonia. Ele aponta já para a ideia de que lhe
parece suspeita que a altura é uma das dimensões do timbre - aliás é muito
interessante esse parágrafo pois, de facto, 70 anos depois vai ter todo o
sentido e vai demonstrar-se esse aspecto. E portanto, todo este entrecruzar de
conceitos, de ideias, de abordagens, veio ter influência, obviamente, na minha
própria escrita musical. Ou seja, eu recomendo sempre que não se olhe
propriamente para as notas que estão escritas, mas que se tente ver qual é o
som que resulta dali, porque a operação não está feita nessa dimensão do acto
da escrita musical - que é algo apenas prescritivo, para que o músico toque
- mas sim no acto da escuta. É
portanto mais centrado na escuta, do que propriamente no acto da escrita em si.
O encontro com Constança Capdeville
É curioso porque encontro indícios, sintomas desta
atitude, em alguns trabalhos meus para cinema até antes de conhecer a
Constança. O que para mim me deixa provavelmente mais contente, é que o nosso
encontro não foi tão fortuito como isso, mas que advêm da necessidade… Ou seja,
havia algo que eu já procurava numa escrita musical, e é com ela que eu vou
sentir que posso desenvolver isso. Acho que nesse aspecto assim, talvez tenha
conseguido, o melhor que pude, apanhar – digamos – as suas reflexões. Aliás ela
dizia, muito curiosamente, que nós tínhamos mais ou menos o mesmo objectivo,
por meios diferentes. Eu estaria mais ligado ao cinema e ela mais ligada ao
teatro. Eu estaria mais ligado, por exemplo a uma tecnologia e aspectos
tecnológicos, computadores, emercivos, síntese de som e tudo mais, e ela
estaria mais ligada à dança. Nunca deixando os dois de ter uma grande ligação à
música, por um lado, sobretudo, creio eu, muito sensual. Sensual, do ponto de
vista físico. Acho que não é por acaso, que ela faz um espectáculo dedicado à
dança, à Valsa onde coloca uma valsa minha dum outro filme. Também não é por
acaso que eu faço uma peça dedicada à Constança, 5 anos após o seu
desaparecimento, que na verdade é uma valsa e que se chama Komm, tanz mit
mir!, que é uma frase de Pina Bausch utilizada nos
espectáculos da Constança e que, na verdade, é uma dedicatória à Constança
porque também se pode ler Constance mit mir.
Colaboração com Constança Capdeville
Eu penso que tenho uma sorte muito grande, – para além de outras pessoas que trabalharam com a Constança – a situação que eu tenho é um bocadinho particular, porque na verdade (e tirando já mais tarde o Sérgio Azevedo na Escola Superior de Música) eu fui o único compositor que fez uma formação completa com a Constança. Nem eu próprio sabia disso, até ao dia em que me formei no conservatório. Ou seja, creio que fui o único aluno da Constança que ela fez questão de acompanhar até ao fim. Na verdade no meio do curso superior de composição tive outro professor - tive também o Bochmann -, mas a grande orientação do curso, até à sua finalização, foi a Constança.
A Constança tinha-me proposto, desde as primeiras aulas de harmonia com ela, ir trabalhar com ela, embora para tal me exigisse ter o curso completo. Na verdade 1 ou 2 anos antes de eu ter o curso acabado ela vai-me começar a chamar para trabalhar com obras suas, começar a acompanhar o Colecviva e, mais tarde, integrar mesmo o Colecviva, já no meu último ano de curso, quando também comecei a dar aulas no conservatório. Creio que, na altura, era uma situação muito rara um finalista estar já como professor no conservatório. De qualquer maneira, isso permitiu-me uma situação muito especial - se até 1985 é uma Janine Moura que conhece muito bem a produção de uma Constança, a partir de 85, e salvo raras obras pontuais, eu tive a espantosa sorte de acompanhar a feitura de praticamente todas as obras da Constança. Tirando 1 ou 2 trabalhos que, por razões várias (não acompanhei) - ou porque eu estava a fazer um outro ao mesmo tempo e estava noutro local, ou porque ela estava a trabalhar com outro grupo e portanto obrigava a outro tipo de disponibilidade - mas, não desde o Don't Juan, mas logo a seguir eu começo a acompanhar a Constança. Isso permitiu-me observar um pouco melhor os seus métodos de composição. Aliás, muitas vezes, nós mostrávamos um ao outro o que estávamos a fazer. Rapidamente se estabeleceu uma enorme cumplicidade entre os dois, a nível de criação musical, e eu, mesmo por brincadeira, dizia-lhe sempre que nunca lhe mostrava nenhuma obra minha que não estivesse já pronta, precisamente porque estava perante, apesar de tudo, um compositor de muito maior craveira e uma figura que, como sabes, tinha a enorme capacidade de nos fazer crer que éramos geniais! E, precisamente por isso, eu dizia-lhe sempre: "Só te mostro o que faço depois de estar feito porque aí podemos discutir o que eu fiz mas pelo menos eu sei que resulta da tua presença e não propriamente da tua influência, digamos, nota por nota." De qualquer maneira é evidente que essa presença – espero eu – está lá sempre. A própria Constança gostava de dizer que eu era seu discípulo, ela própria o assumia, e isso era uma coisa que me dava muito prazer, é lógico. Por outro lado permitiu-me ver alguns aspectos que eu acho interessantes, na carreira da Constança, e que representam, provavelmente, bons pontos de referência, sobretudo para quem esteja nestas áreas da criação. A atitude da Constança perante o som resulta de uma reflexão muito grande sobre o facto sonoro, e que vai implicar uma atitude digamos, também nessa óptica de um Schaeffer, da tal escuta reduzida. Escuta reduzida esta que é apenas escutar o som em si mesmo, portanto independentemente das causas que o produzem - aquilo que está mais ou menos nos manuais. Ora, no caso da Constança esta atitude é muito interessante porque é uma atitude que nós vamos encontrar de alguma forma – embora isso depois seja discutível – também numa fenomenologia husserliana, através da chamada redução eidética, em que vamos encontrar - enfim não quero entrar no calão filosófico, até porque não é a minha área de todo - uma capacidade de retirarmos tudo o que é não-essencial, para captar a essência das coisas.
Curiosamente a Constança, paralelamente, na sua atitude perante o som e perante a própria música, cultivava uma espécie de atitude-espanto que as pessoas gostavam de associar a uma espécie de criança permanente que a Constança tinha dentro de si, e que ela própria gostava, ou pelo menos apresentava como uma espécie de atitude quase infantil, isto é, desprovida de uma forte herança cultural condicionadora. Portanto na Constança havia sempre uma atitude de revisão, quer da própria história, quer da própria música em si. E eu creio que esta atitude é profundamente coerente com a sua atitude perante o próprio som, e perfeitamente coerente até sob o ponto de vista filosófico do termo. Não é uma atitude, digamos, como por vezes as pessoas diziam, infantil, embora ela aceitasse muito bem esta espécie de infantilidade, mas tem a ver, quanto a mim, com uma atitude muito mais profunda, que se trata de saber olhar para o mundo, ou olhar para o mundo sem este tipo de cargas, e portanto, apanhá-lo nas suas essências e, a partir daí, saber desenvolver um trabalho de criação sem qualquer espécie de amarras, sem qualquer espécie de complexos, moralidades, cedências - comprometimentos que a Constança não tinha.
Eu creio que não é por acaso que a Constança assume claramente o seu teatro-musical e tem essa coragem tendo ouvido muitas vezes, uma vez até inclusivé ao próprio e saudoso Peixinho, dizer: "Que pena a Constança dedicar-se tanto ao teatro-musical porque ela quando escreve música puramente instrumental é uma música de óptima qualidade!" E isto é uma coisa que eu acho que é muito interessante, porque se nós olharmos para a música da Constança ela de facto é de uma qualidade excelente, ela sabia disso, mas teve coragem para trilhar um caminho que provavelmente para outro seria um caminho secundário, ou pelo menos, que não estaria tão dentro daquilo que seria mais normal esperar-se. E eu acho que esta atitude de extrema coragem, de renegar ou pelo menos não se deixar comprometer com certos status quo, faz uma das maiores lições dela em composição. Eu tive a sorte de trabalhar com ela – trabalhei também o exame de composição, de piano com a Constança - não por boas razões porque, quando fiz o meu exame de piano - que era necessário na altura para terminar o superior de composição - infelizmente a minha professora de piano tinha falecido nesse ano. Foi um dos trabalhos mais espantosos de composição que fiz com ela, as minhas aulas de piano com a Constança Capdeville. Foram aulas de análise, também, porque todas as obras eram dissecadas. Para estudar a sua interpretação, ela própria, como tu sabes, fez também muitos trabalhos a nível da musicologia e era uma pessoa que conhecia não só, profundamente, as várias correntes pedagógicas, quer ao nível do próprio piano quer ao nível da própria composição, como as várias correntes filosóficas musicológicas.
Como a Constança só trabalhou com grandes nomes, até da nossa musicologia, ela própria fez, desenvolveu e continuou alguns trabalhos a nível musicológico, nomeadamente o Lux Bella e portanto era alguém cuja vastíssima cultura era sempre um enriquecimento. Eu tive esta sorte de trabalhar com ela nestas vertentes, não só composição, por acaso marginalmente também o próprio instrumento – neste caso o piano – e, por outro lado, depois acompanhando-a como assistente. Mas a lição que tiro dela é sobretudo esta - a ausência total de comprometimentos de qualquer espécie, a não ser com uma espécie de grande honestidade ou, pelo menos, de grande abertura perante o mundo que se nos abre mas também com a ideia de desenvolvimento de graus de rigor. A Constança dizia-me que o seu ensino, nas suas aulas, nunca seria, propriamente, ensinar-me coisas mas sim retirar-me todas as muletas, para que eu pudesse encontrar-me perante mim próprio. Que achava que seria para ela a grande lição ou a fase mais importante num processo de aprendizagem – mais do que aprendermos muitas coisas, para aprendermos a esconder-nos perante o mundo, seria encontramo-nos perante nós próprios, para depois podermos desenvolver todos os nossos processos plenamente.
Obras
Há uma obra minha, de 1986, que é uma peça chamada Para
2 pianos – da qual depois veio a aparecer um Para 2 pianos nº
2, que tem 7 instrumentos –, onde se vão estabelecer uma
série de preocupações básicas, nomeadamente a ideia – e talvez esta ideia venha
do cinema – de que eu vejo a música, não como resultado do desenvolvimento e de
certos processos de proliferação mas sim como uma espécie de fotografia. Na
altura eu veria como uma fotografia de um planeta num dado momento, ou seja,
onde há materiais musicais que se entrechocam, que se entrecruzam, e naquele
momento eles aparecem daquela forma. Não uma música onde exista ideia de
desenvolvimento - aliás, esse era o problema que se me punha nessa altura, que
era como ir "enquanto jovem compositor" contra uma espécie de tradição,
quando me parecia que todas as técnicas que eu conhecia naquele momento, ou
pelo menos a maior parte das técnicas de desenvolver música que eu conhecia
naquele momento, pela própria palavra de "desenvolvimento",
acarretava consigo uma espécie de concessão a princípios de continuidade de uma
certa tradicionalidade, com a qual me interessava romper. Nesse aspecto
pareceu-me que o ponto que eu tinha de atacar era a ideia de desenvolvimento, e
portanto a minha música deixa de ter ideia de desenvolvimento e passo a
desenvolver os materiais musicais antes. Portanto, antes da obra eles são
desenvolvidos e na obra digamos, o facto de existir maior ou menor agitação -
que pode dar ideia de que há um desenvolvimento de materiais - resulta das suas
colisões, dos seus encontros. É neste sentido que vou abordar a ideia de uma
espécie de planeta que é fotografado num certo momento, uma espécie de boletim
meteorológico, por assim dizer. Esta ideia de planeta tinha, para mim, uma
vantagem no momento, pois era uma ideia bastante poética, por um lado, e que me
permitia um largo grau de mobilidade. Posso fazer o que quiser dentro de um
planeta, um planeta é uma coisa tão grande, que nos permite fazer quase o que
se quer. Por outro lado, o planeta tem uma coisa interessante, os seus pólos
são extremamente diferentes ,– no caso da Terra e não noutros casos como a Lua
mas vejamos o caso de uma Terra –, do seu equador e isso permitia-me começar a
ter uma ideia de como ir integrar provavelmente posturas, materiais e ideias
tão diferentes como, provavelmente, materiais concretos electrónicos, materiais
instrumentais, ainda que eu não soubesse bem como. Ou seja, tinha aqui uma
figura que era extremamente lata, não excessivamente definidora, mas que me
permitia uma primeira postura. Algumas vezes fui-me afastando desse tipo de
situação ao longo do meu percurso. Vão, portanto, aparecendo obras, em dado
momento, em que vou abordar outro tipo de situações, de soluções, mas sempre
com este mesmo tipo de ideia - o material é desenvolvido antes, e quando
aparece na obra não estou muito preocupado em que se escute a sua história.
Isso vai-me permitir um percurso onde se vai juntar outra ideia. É a ideia que,
quanto a mim, não é muito importante na maneira como se olha para música, mas
creio que é importante na maneira como se escreve. Vou abandonar rapidamente a
ideia de música enquanto linguagem com as suas ideias de sintaxes, pesquisa de
uma eventual semântica, uma abordagem de uma eventual pragmática e portanto vou
partir do princípio que música, no meu caso, pode obedecer a um conjunto de
situações. E esta ideia do planeta vai ser recuperada mais tarde, em dado
momento, com a ideia de obra como interface para uma base de dados, onde
vou integrar finalmente um aspecto
que tinha ficado – apesar de tudo – um bocadinho esquecido, que é o facto de eu
ter tido uma formação na área das engenharias. Embora eu tivesse recuperado
sempre o aspecto matemático – mais matemático do que
físico – dessa minha formação – eu confesso que é uma coisa que nunca menciono
mas quando fui para engenharia eu estive muito hesitante pois a minha ideia
inicial era seguir matemáticas puras e depois, como poderia entrar igualmente
nos dois locais, acabei por me decidir na altura por seguir engenharia, mas era-me
profundamente indiferente na altura, o meu interesse mesmo era pelas
matemáticas. Mais tarde também estudei todos os problemas inerentes às
tecnologias, e neste momento, vim reintegrar – agora já com outro tipo de
perspectiva mais alargada – a ideia, já não de um planeta, mas de uma espécie
de base de dados orientada a objectos. Os tais objectos que às vezes são
sonoros, outras vezes são musicais, e outras coisas
mais, que se vão alargando e para os quais, de repente, me começa a aparecer
não só a ideia poética do tal planeta mas também do interface para o qual nós
podemos ver os mesmos materiais de outras formas. Portanto não se trata aqui de materiais que aparecem de umas
obras para as outras - mas sim materiais cujas obras são, no fundo, janelas
para aquele mundo. Isso permite-me também uma espécie de estabelecimento de uma
álgebra relacional, em relação a certos tipos de modelos de bases de dados, em
que a escrita de um filtro pode ser igual, ou pode ter o mesmo valor que uma escrita
para uma grelha harmónica, chamemos-lhe assim, ou para operar com notas.
Portanto, diferentes níveis de escrita - uma escrita mais simbólica, uma
escrita mais sobre o código, uma escrita, digamos, sobre o processamento do
próprio som, ou de certos tipos de algoritmos que vão permitir uma manipulação
simbólica da forma como esse som vai ser operado -, que depois provavelmente
pode resultar numa partitura para instrumentos, vai ser todo integrado numa
espécie de grande universo que é uma base de dados orientada a objectos, com
este tipo de metáfora.
Creio que no meu percurso existe por um lado esta espécie
de reintegração dos vários saberes que fui adquirindo ao longo da vida, por
outro lado há algumas obras que na minha tendência actual traçam rapidamente
vários pontos chave do percurso. Há um processo que eu penso que é o culminar
da minha herança, para um cinema narrativo, que é, em 93, com um filme chamado Chá
Forte com Limão, onde penso que está a súmula das minhas
preocupações do entrecruzamento entre uma história da música, desde uma
tonalidade até ao século XX, e a integração de diferentes formas de escrita
aplicadas a um cinema narrativo, recuperando também a própria tradição mais
recente, de uns meros 100 anos, que esse mesmo cinema tem. Do ponto de vista
instrumental há uma série de obras - todas elas têm certos pontos e certos
marcos, nas minhas investigações últimas e formam um trajecto, embora todas
elas formem várias direcções. Nomeadamente o Estranho Movimento para um Dia
como o de Hoje, por exemplo, é uma obra que não tem qualquer
espécie de reverberação, uma obra electrónica, onde é abandonado qualquer tipo
de causalidade, porque há apenas sons praticamente electrónicos, há um sons ao
princípio e ao fim de origem mais causal, que se reconhecem mais ou menos, mas
onde a ideia dos espaços é muito claramente posta, não há nenhum espaço de
obra, tudo se passa na sala.
Há uma obra como o T3 onde os
diferentes espaços e os diferentes tratamentos de materiais começam a aparecer,
são integrados, onde parece que fui buscar a ideia de um objecto sonoro, ou de
uma certa tipologia no campo dos objectos sonoros, para, a partir daí, integrar
e colocá-los em espaços diferentes, em estratos diferentes. Se, por exemplo,
pegares no Quand Trois Poules Vont au Champ, a
causalidade, que no caso de um objecto sonoro – do ponto de vista até mais
Schaefferiano ou até mesmo uma espectromorfologia – está completamente
eliminada, nesse caso volta a ser integrada, ou seja, tu ouves sons que te
remetem para certos códigos de escuta e certos comportamentos. Ouves galinhas,
ouves galos, ouves portas a bater, portanto, mas aquela música está construída
de uma forma em que ficas entre 2 conflitos - ou seja, não só os ouves dessa
maneira mas como também os podes ouvir como entidades e estruturas abstractas
passíveis de um tratamento e de uma manipulação simbólica. Esse aspecto vai
confluir numa obra que, neste aspecto das bases de dados, eu acho que vai ser
muito importante que é o Ressonâncias Memórias, uma obra
para instrumentos e banda, que é uma espécie de índice, uma espécie de
directório das minhas obras todas - onde estão todos os elementos das obras, já
não de obras anteriores, mas sim de materiais que me têm acompanhado ao longo
da vida, e com uma ideia que eu acho que é interessante, apesar de tudo, porque
é uma obra que tem sempre uma articulação muito rápida - “teca teca teca teca”,
sempre baseada mais ou menos neste tipo de pulsação. Ela não deixa de ser
interessante porque parece que tenta fazer uma ponte entre uma ideia platónica,
digamos de uma memória, o estabelecimento de uma memória como algo que se
imprime pela insistência, mas ao mesmo tempo, como ela contém acordes e outros
materiais que vão ser apresentados noutra obra a seguir – que na verdade não
existem ainda nessa obra porque vão existir na outra obra a seguir mas já lá
estão –, é uma espécie de ponte entre um Platão e um Bergson. Ou seja, a
memória neste caso como actividade, ou seja não passiva - uma memória activa
que já vai, ela própria, engendrar novas coisas que vão aparecer depois, noutra
obra que é o Trois Chansons Inachevées, para
soprano, sax e banda.
De qualquer forma, neste momento, voltei novamente ao
cinema, neste caso ao documentário e ao filme experimental, agora com aspectos
já completamente afastados de todo o processo narrativo, mas considero que todo
esse tipo de experiências, desde um cinema mais “comercial” num certo sentido
narrativo do termo, como séries para televisão, até o próprio teatro-musical - eu próprio tenho uma obra de
teatro-musical de 1998 - tudo isto
faz parte de um percurso que creio que se vai tornando cada vez mais claro. Eu
gosto de pensar nisso. Ou pelo menos mais definido à medida que vai avançando.
Manifestações de uma linguagem pessoal
Creio que, ao longo dos anos, fui assumindo certos
materiais como, digamos, materiais fetiche, na minha produção. Se houve um
momento em que tinha algum problema porque poderia parecer rapidamente estar-me
a tornar um cliché de mim próprio – que é um risco – pareceu-me que, ao longo
dos anos a sua integração de uma forma natural leva-me a um percurso que também
podemos encontrar, de outra forma, em todos os compositores. Por exemplo também
na própria Constança, quando encontramos a série dos Amen para uma Ausência que,
no seu caso, é mesmo a obra que é re-perspectivada, mas onde ela própria também
– noutras obras – utilizava, reutilizava os mesmos materiais, tal e qual como
se utiliza um acorde ou um outro tipo de material. A sua própria reconfiguração
pode trazer um dado novo.
Normalmente as preocupações mudam e, creio que a ideia de
haver, no caso do meu percurso, um material musical, não como vindo de uma
outra obra mas como estando longinquamente colocado numa espécie de
reservatório – onde ele se manifesta, evidentemente, através da obra – onde eu
próprio, enquanto compositor guardo a sua memória das suas técnicas de
engendramento, e que portanto permite, muitas vezes, certos tipos de materiais
completamente diferentes que me aparecem noutras obras. Na verdade são
resultados como se fossem campos de cálculo. Vou voltar outra vez à mesma
metáfora, – numa base de dados eu posso ter a data de nascimento de alguém mas
ser-me apresentado a sua idade, este dado não está inscrito nessa base mas
resulta do próprio interface que vai impor algo sobre o material, portanto,
esta visão do material muda também, ela não é estática.
Por outro lado, eu aí recuperei uma outra ideia, que
integra a ideia de filtro, que depois pode ir a outros aspectos, e que é uma
espécie de ideia de palimpsesto também, ou seja, muitas vezes eu uso os
próprios materiais ou as mesmas técnicas sobre outros materiais, e isso faz
que, quando reescrevo o material – os sons, os acordes, seja o que for – ele
vai aparecer, digamos, com uma outra configuração e isso é imposto através de
certos tipos de procedimentos que são aplicados, que são desenvolvidos para uma
obra específica. Lá está, o tal interface - mas aqui atenção porque gostava de realçar que o interface
não é algo desligado, ele próprio vai ter importância sobre o material da obra.
Podemos pensar que, provavelmente, e porque não, uma obra, ela própria, pode
passar a fazer parte de uma base de dados, e portanto nesse momento ela própria
está sujeita a ser alvo de nova manipulação também. Portanto quer dizer que,
mais até do que materiais que circulam de umas obras para outras, obras
inteiras podem circular de umas para outras. Pode-se colocar mesmo esta
possibilidade, não no sentido da versão diferente.
E depois há obras que podem funcionar, digamos, - eu, por
brincadeira, classifiquei algumas obras minhas como canibais para dentro ou canibais
para fora - umas alimentar-se-iam de um material que já preexiste
nessa base de dados e portanto não sentem necessidade de ir buscar materiais de
alguma forma diferentes, de fazer uma nova recolha mas sim de re-perspectivar a
maneira como esses materiais são trabalhados, de encontrar novas técnicas de
engendramento, de alteração, de revisão dos materiais, dar-lhes outras
direcções. Outras obras funcionam
como uma espécie de motores de busca, vão buscar novos materiais, encontrar
outras coisas, numa espécie de mundo exterior e que vão alimentando essa base
de dados, que vai crescendo. Eu devo dizer que esta base de dados, embora seja uma
ideia um pouco informática, pode ter um forte componente metafórica. Eu não
dependo de um programa de escrita musical, de trabalho musical, quer dizer que
há ideias que podem estar dentro da minha cabeça, outras apontadas em papel,
outras em suporte digital. Não estou aqui a falar de uma base de dados que se
situa fisicamente num lugar, nem estou a falar, digamos, de um programa para
trabalhar com esses materiais.
É evidente que quem conheça a minha obra reconhece, de
repente, certas estruturas harmónicas. Reconhece sempre que há sempre uma porta
a bater algures – a cada um os seus fetiches –, há sempre um acorde tipo, que
me vai acompanhado logo desde as primeiras obras, que é re-perspectivado de
várias maneiras diferentes e que é uma espécie de cruzamento entre um certo
espectralismo, um certo webernianismo, e uma espécie de Varèsianismo. Há ali
uma coisa que sempre me agradou bastante naquele tipo de configurações e que,
às vezes, se impõe noutros materiais. Ele não está lá mas é um filtro, outras vezes
representa o resultado em termos de notas, outras vezes horizontalizado, outras
vezes verticalizado, outras vezes compactado e, portanto, vai dar origem a um
tipo de figuração completamente diferente. Há certos materiais que vão
circulando mas - com o aspecto que
eu espero ter sempre aprendido ao longo da minha vida - sem comprometimento
absolutamente nenhum. Gosto de pegar sempre numa frase que o Debussy diz a
Guirot, em dado momento, a propósito de umas quintas paralelas. Guirot diz:
“Sim, mas isso não se pode fazer!” e Debussy diz: ”Sim, mas soa bem!”. E ele
diz: ”Sim, mas não se pode fazer, as regras não permitem!” e o Debussy diz-lhe:
”Não há regras! Basta escutar, o prazer é a regra!” E eu gosto de manter este
espírito - aliás o mesmo espírito que me levou a ser compositor, o enorme
prazer que tinha em escrever, e portanto gosto de tentar manter isto mesmo
neste tipo de universo. Ou seja, não há compromissos de espécie alguma, o
objectivo é fazer uma obra pertinente, que me agrade, e que, enfim, tenha
alguma pertinência no contexto em que se insere.
Novas direcções e desafios
O aspecto que referi, até mesmo em relação à Constança,
digamos, de assumir o seu próprio caminho e tudo o resto, neste momento,
leva-me a uma espécie de grande beco, que não é propriamente sem saída mas
provavelmente é uma grande entrada porque, apesar de tudo, na minha própria
carreira enquanto músico, de uma certa maneira esta minha grande ligação ao
cinema e às outras artes do espectáculo foram, de alguma forma, postas sempre
um pouco à margem e neste momento, as últimas direcções do meu trabalho, o
facto de assumir um novo suporte de escrita e assumir que esse mesmo suporte me
vai trazer modificações à própria forma de pensar musical, está-me a conduzir à
ideia de me aliar muito mais a trabalhos tipo multimédia. Não como sendo eu um
conceptor de trabalhos, digamos, pensando eu próprio os meus filmes ou nos meus
trabalhos de teatro por assim dizer em CD-ROM, ou seja o que for, mas num
sentido de integrar equipas de trabalho. Para já tenho estado interessado muito
mais no desenvolvimento de certas ideias que eu próprio já tinha sobre a
articulação entre imagem e som – eu não gosto de dizer correspondência, porque
é um termo que eu odeio. Gosto mais de usar o termo articulação entre som e
imagem, - do que a ideia de correspondência, que eu penso que é algo que se
tentou no séc. XIX, sem grande sucesso, e francamente sem grande interesse hoje
em dia – que estou a tentar desenvolver nos últimos trabalhos que estou a
fazer, e que, provavelmente, me levarão mais na direcção da instalação, da
vídeo-arte, do cinema experimental e provavelmente a abordar outras zonas onde
eu sempre estive mais ou menos colocado, mas colocando-as para mim de uma forma
mais assumida. Penso que será uma opção, nunca esquecendo que a minha formação
é uma formação tradicional.