Entrevista a António Chagas Rosa / Interview with António Chagas Rosa
2003/Aug/25
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Formação musical
Foi muito simples. Eu estava no ensino secundário, devia ter
uns dez anos e numa aula de Canto Coral vi um miúdo a tocar piano e fiquei
encantado com a experiência. Cheguei a casa, e pedi aos meus pais para me
comprarem um piano e me porem numa professora de piano. Foi assim, de repente,
aos dez anos… Houve uma abertura para a música clássica, para música que eu não
elegia como a primeira experiência musical: gostava de valsas de Strauss, e
outras coisas, mas de repente, interessei-me por Mozart, por Haydn, Schubert,
Beethoven, foi assim uma abertura um bocado estranha.
Comecei
a ter aulas de piano - esse estudo foi acompanhando o estudo principal. Comecei
a fazer exames no conservatório; comecei por ser aluno da minha querida
Madalena Sá-Pessoa, fui fazendo o conservatório e depois entrei como aluno de
piano de Leonor Pulido. Terminei o meu curso superior em 1980-81, e
posteriormente tive uns três anos de aulas particulares com a Professora Olga
Prats. No Conservatório tive uma experiência muito enriquecedora, que foi ter
aulas de composição com a Constança Capdeville. Não pensei em seguir composição
na altura, porque eu estava convencido que já tudo tinha sido escrito, tudo
tinha sido feito, e eu não tinha nada de novo para dizer. Tive três anos de
composição, depois parei e dediquei-me ao piano.
Fui para a Holanda em 1984 para estudar piano.
Trabalhei música contemporânea e de câmara para piano, com o Alexander
Hrisanide, no Conservatório Sweelinck de Amesterdão, e foi lá que encontrei,
através de uma experiência de liberdade física e social, também a liberdade
interior de voltar à composição. Portanto, comecei a fazer composição de uma
forma quase tipo hobby, talvez um pouco naïf, mas este trabalho foi
extremamente importante. Foi engrossando, e acabei por decidir estudar
composição. Então, a partir de 1987, entrei para o Conservatório de Roterdão,
onde estudei durante cinco anos com o Peter-Jan Wagemans e o Klaas de Vries,
apesar de que, eu devo dizer, o meu estudo de composição era muito
auto-didacta. Participar nos nossos fóruns de discussão entre compositores,
assistir a concertos, participar em concertos como pianista – concertos de
música contemporânea – isso para mim era a motivação principal. Não foi tanto a
relação mestre-aluno, porque acho que, em termos de composição sou muito
teimoso e faço aquilo que eu quero, e encontro grande dificuldade em explicar a
lógica do trabalho a um professor, mas essa situação um pouco difícil foi-se
mantendo durante cinco anos, que foi o tempo que durou o curso. Em 1992
terminei esse curso, de composição e orquestração. Já tinha algumas obras
escritas, e foi uma actividade que nunca mais parou. Comecei a tocar menos
piano, a participar menos em concertos como pianista, comecei a escrever mais e
dediquei-me ao ensino também. Na Holanda, uma actividade que desenvolvi a par
da composição foi o trabalho nos teatros de ópera, como pianista repetidor, que
é um trabalho que eu gosto muito de fazer, e que foi muito importante para o
meu trabalho de compositor.
Numa
ópera, entro dentro da partitura a cem por cento, seja ela de Mozart,
Mussorgski, Verdi ou Schoenberg. Encontro nela uma lógica subjacente à relação
entre texto musical e os seus significados poéticos, que é uma temática que
sempre me interessou: encontrar essa relação directa, ou indirecta, entre a
dramaturgia e música; entre texto e música; entre figuras poéticas e música,
isto é, os elementos da música. Esse foi sempre um trabalho que me fascinou,
para além do prazer geral que para mim representa acompanhar o canto, de fruir
de um ciclo de canções, tocando a parte de piano: Schubert, Schumann, etc. É um
trabalho de muita disciplina, que nos obriga a conhecer muito bem a obra, tanto
a parte instrumental como a parte vocal. Obriga-nos a entrar no universo
poético ou dramático do compositor, portanto para mim foi uma escola espantosa,
muito, muito densa e intensa. Fiz também esse trabalho no Conservatório de
Sweenlick, em Amesterdão, onde tinha estudado na classe de ópera (durante seis
anos fiquei lá como repetidor). Acho que é daí que vem a minha grande
predilecção pela escrita vocal.
Eu conheci a Constança com quinze anos, fui aluno
dela entre os meus 16 e 18 anos, sensivelmente. Hoje diria que gostava de a ter
conhecido se eu tivesse sido um pouco mais velho, se eu estivesse um pouco mais
informado, mais maduro. Tal não aconteceu, mas para mim, ter conhecido a
Constança na altura foi uma grande experiência de liberdade. Em primeiro lugar
foi uma experiência de libertação e de estímulo criativo. Em segundo lugar, no
contacto com a Constança, eu notei que essa liberdade e essa postura criativa
dela, tinha uma base de disciplina muito forte. E eu, nessa altura, não
conseguia entender essa dualidade. A Constança era uma pessoa que tinha uma
estrutura como compositora muito exigente. Era exigente consigo própria, a
nível da selecção dos sons, das opções de forma, da direcção que a obra tinha
de tomar, com que público é que essa obra iria entrar em contacto. Era uma
pessoa muito rigorosa nesse aspecto. Eu acho que houve momentos em que a minha
indisciplina e a minha exuberância infantis, incomodaram-na um pouco.
Lembro-me, ao mesmo tempo, de uma Constança extremamente aberta e extremamente
generosa, e de uma Constança extremamente rigorosa, e assim quase que indignada
com certos passos que um músico não deve dar porque acaba por se perder. Eu
acho que nela, em relação ao aluno, havia uma preocupação grande em que o aluno
não se perdesse, ou que ele, ao menos, se se fosse perdendo, se fosse perdendo
no caminho certo. E depois a situação no Conservatório alterou-se um pouco,
porque eu tinha de acabar o meu curso. Eu não continuei Composição, a saúde da
Constança também não permitia um contacto muito frequente. Encontrávamo-nos às
vezes quando Deus deixava, mas ficou desse contacto sempre uma grande saudade e
uma grande nostalgia, e acho que a memória me ajudou a recuperar esse tempo e a
conhecê-la melhor do que a conheci de facto.
A Holanda, para um músico, é uma grande loja de
brinquedos de criança, onde há uma escolha infinita de produtos de todos os
tamanhos e feitios, cores e sabores. E, de facto, nota-se que há uma grande
liberdade de escolha, e há uma relação muito simples, muito pedestre, entre a
cultura e as pessoas. As pessoas usufruem de óperas e concertos com as melhores
orquestras, concertos de música de câmara, de lied, recitais com os melhores artistas
do mundo, por preços razoáveis. Há, de facto, uma cultura de ir ao concerto, ir
à ópera, grandes filas de espera, muita organização em relação, por exemplo, a
pessoas que desistem dos seus bilhetes. Há muita procura de bilhetes de
desistentes, há uma febre cultural muito grande. Isto, do ponto de vista da
música, e das outras áreas também – artes plásticas, cinema, etc. – mas para a
música de repente tens acesso à grande música, aos grandes artistas, sem
parecer que eles estão no Olimpo. Pegas na tua bicicleta, vais ao Concertgebouw
e ouves o Horowitz. Isso implicava algum sacrifício financeiro, sobretudo para
quem era estudante, mas era possível. Ia regularmente à ópera e ficava em pé…
Portanto, nesse aspecto, sinto muita falta dessa acessibilidade, da grande
diversificação de concertos e de programas. Tenho saudades dessas facilidades.
Eu acho que, em Lisboa, não estamos numa situação particularmente boa neste
momento, com muito poucos concertos, poucas óperas… já tivemos dias melhores.
Como músico… A palavra “compositor” é tão pesada,
não é?… Traz associações… Quer dizer, eu oiço um quarteto de Beethoven e acho
que aquilo é que é ser compositor. Agora, eu apresentar-me como compositor… não
sei se tenho ainda esse direito. E não é falsa modéstia, não sei ainda.
É preciso de ter uma grande obra muito boa. Não
basta ter muitas obras escritas, ou ter uma só muito boa. Acho que é preciso
haver uma prova abundante e generosa de quantidade e de qualidade. Portanto, um
compositor pode ser alguém que trabalha em composição, mas “o compositor”… acho
que é uma palavra um bocado arriscada. Mas às vezes, só por uma razão prática,
digo que sou compositor - lá fora de Portugal é mais fácil explicar isto. Mas
diria que sou músico.
Aqueles dez anos que mediaram o período em que
estudei com a Constança e que depois pude estar envolvido em festivais de
música contemporânea na Holanda, eu comecei (ao entrar em contacto com obras de
colegas, de jovens compositores holandeses) a sentir que a tal experiência de
liberdade lhes tinha dado a possibilidade de se auto-descobrirem. A questão de
se saber que notas é que se vai escrever, de onde vêm as notas, o que significam,
duas notas juntas significam o quê, que sinais, que hieróglifos, que mensagem é
que se pode aí descodificar? Eu achei que era necessário entrar numa
experiência de liberdade interior. Esse degelo ocorreu quase como uma
brincadeira. Ocorreu num nível muito sensorial, não foi uma experiência
metafísica – foi uma sensação de “eu quero experimentar: vamos ver… se eu fizer
esta combinação de sons, se eu inventar este modo, se eu fizer umas variações à
la…, se eu
inventar uma forma nova…” – foram perguntas bastante simples, que comecei a
resolver em termos de escrita. Havia um mistério intimidador que desapareceu
para dar lugar a um mistério mais benigno. A questão: o que são as notas, para
que é que servem? A partir de que momento é que essas notas têm um significado,
isso mantém-se no nível do mistério. Mas não havia uma inibição física da minha
parte em experimentar, essa inibição desapareceu. Eu acho que essa foi a grande
mudança, e não sei porquê ocorreu. Acho que ocorreu pelo seguinte, é que eu
como pianista eu não estava a realizar-me. Como pianista perguntei “porquê é que vou estudar a Hammerklavier? Porquê? Há tanta gente a
tocá-la tão bem.” De repente, houve algo como isto, deixei de ter gozo em
dedicar-me só ao trabalho de desbravar partituras. Achei que não me chegava.
Precisava de uma experiência de risco, e então fazer música proporcionou-me
isso.
Ainda hoje me identifico bastante com essa Sonata. A
opção pelo instrumento foi fácil, porque era um instrumento que eu conhecia bem.
Na altura sentia uma resistência grande em relação a compositores pós 1950, uma
resistência grande à obra pianística de Boulez, de Stockhausen. Eu acho que
nunca dispus da chave do entendimento, da descodificação poética desse
repertório, portanto quis fazer qualquer coisa que não tivesse nada a ver com
isso. É claro que, na escrita pianística da Sonata, se vê que há um pianismo de
alguma forma coincidente com Boulez, sobretudo nas Segunda e Terceira Sonatas,
mas não sendo uma obra serial e eu estando absolutamente convencido de que
estava a lançar através daquela obra uma recado completamente romântico,
pensava “bem, esta é uma coisa minha, Boulez não é tão romântico quanto isto, e
é uma obra que não deixa de ser actual”. Isto é uma formulação extremamente
simplória…
A minha Sonata para Piano, à qual, com algum humor,
chamei de Opus 1 (porque no catálogo quase não há opus nenhuns) fiz uma experiência de
construção, com três temas, e explorei contrapontisticamente e variacionalmente
essa relação tri-temática, e a obra está muito rigorosamente construída, apesar
do carácter quase improvisatório que a audição suscita. Teve imensas críticas
negativas pela parte dos meus colegas em Roterdão na altura, porque achavam (e
isso acharam sempre os holandeses que a minha música era muito germanista… o
grande gesto romântico. O holandês não gosta deste gesto romântico, mas sim de
música mais à la Mondriaan, mais geométrica. Por isso relacionam-se melhor com a música
americana, com Stravinsky, com música escandinava, inglesa, mas aquele grande
inimigo, aquele monstro alemão que “os vem comer” - qualquer associação com
essa estética eles acham perfeitamente deplorável, e podem ser bastante
agressivos na sua crítica). Portanto, em relação a essa Sonata, houve pessoas
que gostaram muito, professores etc., e foi tocada várias vezes. Fiquei um
pouco admirado, porque achava formalmente tão lógica, que não havia espaço para
tanta polémica, tanta interpretação em relação ao tal gesto romântico por trás,
mas afinal parece que isso até lá estava, não é? Fiquei contente a
posteriori pelo
facto de nesta Sonata no fundo o conteúdo se ter sobreposto à forma e ter feito
esquecer a forma, e acaba por ser o quadro que conta, e não a técnica do
pincel.
Songs of the Beginning é um ciclo de canções escrito para
soprano coloratura e piano. Escrevi-o em finais de 1991-1992, e foi escrito a
pedido de uma cantora canadiana dedicada à música contemporânea, Janice
Jackson, que vive na Holanda. E eu, como comecei tarde para a composição,
digamos a sério, e tinha uma grande preocupação de rigor na selecção de
materiais, na organização dos modos, dos temas, das minhas séries, senti-me
sufocar um pouco nesse amontoado de regras, que acabam por se tornar um
impedimento e então decidi “vou fazer um ciclo de canções sem pensar na grande
forma, sem pensar em relações internas, sem pensar em co-relações.” Pensei:
“vou escrever música au fur et à mesure que o texto vai sugerindo, que a
palavra me dá o som, e esse som vai sugerir, então, que haja música. Então,
peguei nesta obra, que não é uma encomenda de composição, mas foi um pedido,
foi um convite, e que exigia que houvesse textos em inglês, em espanhol, ou
português, e eu peguei numa tradução inglesa de um texto do Lao-Tse, extraído
do Tao Te Ching.
Eu escolhi este texto – já conhecia a obra, não
posso dizer que a conhecia profundamente, mas superficialmente (se calhar ainda
a conheço muito superficialmente) – que falava justamente da aprendizagem.
Falava na não-aprendizagem que representa a acumulação de saber, se esse saber
não se transformar nunca em ser. Dividi o texto em 22 fragmentos, mas não na
horizontal. Dividi, primeiro, na vertical – há uma linha que corta palavras a
meio - e depois na horizontal. Portanto, o texto de cada canção são duas
meias-frases, ou uma meia-frase. Muitas vezes a linha separadora corta uma
palavra no meio de duas sílabas, e fica uma sílaba de cada lado, mas às vezes
no meio há uma sílaba também, ficando uma letra apenas – um “a” ou um “q”.
Portanto, eu fiz uma peça que fosse uma anti-obra, que fosse um anti-saber, que
fosse uma anti-construção, só por experiência. O resultado acabou por revelar
correspondências entre alguns destes fragmentos. Em momentos encontramos música
que já apareceu de uma forma ou de outra, mas essa relação não foi intencional.
Eu também não fui matar essa relação, porque ela existia. Ela também era uma
evidência; não era uma mentira, não foi um artifício. Então decidi fazer música
para a palavra, obviamente a minha associação de palavra. Se eu falar de olhos,
de barco… tenho uma associação, e se calhar nessa associação entram arquétipos
daquilo que ouvimos, desde Monteverdi e Wagner, Alban Berg… Mas foi uma
experiência de liberdade total. No final, sente-se que o ciclo é coeso, e essa
coesão é fortuita, é ocasional.
Para mim foi muito importante, sobretudo, o confiar no acaso, o confiar
no instinto, o confiar na intuição. Portanto, eu necessitava de estar mais em
contacto com esse mundo do instinto, do acaso e da intuição. Estava a
bloqueá-lo com travões de uma falsa aprendizagem. Para mim o ciclo foi um ponto
de viragem, porque à partir daí, tento conciliar os dois mundos, o da procura
de uma forma ideal e ao mesmo tempo mantendo os pés no mistério, ou a cabeça no
mistério. Que haja só uma parte do mistério que seja declarável… eu acho que é
isso.
Nos últimos anos tenho feito experiências com música
vocal, experiências variadíssimas, desde utilizar uma espécie de lista de Leitmotiven, experiências de
sobreposição rítmica, de prosódia, etc., e com essa aprendizagem, eu então,
faço música instrumental e exploro os instrumentos de uma forma para-vocal. No Moh, no terceiro andamento, há
uma secção que é bastante vocal, porque Moh significa aquele sopro divino no
nariz de Adão. Portanto, eu imagino Deus soprando no nariz de Adão como se
tratasse de um instrumento de sopro – imagina uma ocarina em forma de nariz.
Portanto, esse momento de sopro é um momento bastante vocal e tens a flauta de
êmbolo (ou slide whistle) cantando uma cantilena, acompanhada por uma linha muito
sinuosa, notas de viola de arco ligando ao clarinete baixo, fagote e
contrafagote, e de repente há um bocado vocal inegável ali… a música vocal
nunca está ausente da música instrumental. Eu acho que, no Moh, que são dez minutos de
música – está ali uma sinfonia compacta – está bem realizado esse encontro
entre o intuitivo e, digamos, o inteligente. Acho que há momentos, naquilo que
fiz, em que fui inteligente. Há muitos em que não fui! A maior parte não fui,
mas há muitos em que fui inteligente, e às vezes gostava de os recuperar. É por
isso que eu às vezes oiço coisas minhas – pego numa gravação para descobrir
esses momentos em que fui inteligente sem saber porquê. É engraçado… eu penso
muitas vezes no meu trabalho como pianista, em que um professor ou uma
professora me dizia “Mas porque é que não te descontrais? Quando te descontrais
o som é muito mais bonito.” Isso é uma aprendizagem muito difícil, mas tem de
vir de nós, tem de vir de dentro, porque quando alguém diz para te
descontraíres, é claro que não te vais descontrair, não é? Mas, nos momentos em
que essa graça surge, somos inteligentes. E faz sentido aquilo que o Mário
Sá-Carneiro dizia, “só sou sensível quando inteligente, inteligente quando
sensível”. E eu perco essa inteligência. Se tenho uma disciplina no meu
trabalho, é de ir ao encontro dessa inteligência sensorial, que é muito
difícil.
Eu relaciono-me melhor com umas obras do que com
outras, porque há obras em que vejo demasiado esforço de aprendizagem. Foram
todas um passo importante, mas há obras em que, para além disso, eu recebo um feedback da obra, que é poder
ouvi-la como se não fosse uma coisa minha. Eu para já tenho esse desprendimento
em relação ao que faço. Não fico nada preso com um cordão umbilical sobre
aquilo que faço, e sou capaz de ter uma crítica muito, muito dura sobre o que
faço, como se fosse de outra pessoa qualquer. Às vezes tenho necessidade de
ouvir coisas que fiz para aprender com elas, porque a experiência de uma
estreia é uma experiência demasiado rápida e volátil. Estamos sob tensão, e o
concerto passou. Portanto, esse registo é muito importante para aprender aquilo
que se fez de bem, e aquilo que se fez de mal, e sobretudo ir ao encontro dos
tais momentos de harmonia entre intelecto e instinto, de fusão entre o mundo
poético e uma realização formal conforme essa informação, e também, ao mesmo
tempo, identificar ali zonas neutras, zonas em que não se passa nada, zonas mal
construídas ou retóricas. Não gosto da retórica, não gosto daquilo que seja
redundante, tudo que numa obra anuncie algo que se vai repetir. Não, não gosto
nada disso. Gostava que as minhas obras fossem um bocadinho como o mobile do Alexander Calder –
nunca é igual, não é? Um mobile ao vento. As coisas estão penduradas umas nas
outras, e isso é uma lógica suficiente, e a obra é sempre diferente e não tem
nada de previsível. Muitas vezes a pessoas me dizem: “Mas foi curtinha, podia
ter durado mais tempo.” Pois, então, vamos ouvir outra vez! Porque os
acontecimentos foram demasiado rápidos, mas eu procurei essa velocidade,
evitando repetições. Portanto há uma trajectória rápida que é para mim
fascinante. Agora, se essa trajectória for lenta e poder explicar calmamente
todos os espaços, mostrá-los, e dar tempo para as pessoas se habituarem.
… e poder em momentos lentos sugerir um bocadinho de
eternidade, poder sugerir um espaço largo, um horizonte. É apenas sugestão, não
há contagem de tempo real, que justifique, de facto, a coisa. Quando nós
sentimos que a música é lenta, ela já está a ser aborrecida, e quero evitar o
aborrecimento.
A ópera Melodias Estranhas foi escrita em 2000-2001
para as Capitais Europeias da Cultura de Roterdão e do Porto. Foi a obra mais
difícil, mais complexa e trabalhosa que fiz até agora. Um libreto difícil, por
não manifestar imediatamente, digamos, a sua qualidade dramatúrgica. Era
preciso ir buscar ao texto a níveis mais profundos o drama que à superfície não
aparecia. Havia um embate muito visível de personagens. Era mais um drama de
ideias do que um drama de acção. Mas o texto era muito rico, muito bom, da
autoria de Gerrit Komrij, um grande escritor e poeta holandês que vive em
Portugal, e com essas experiências de Songs of the Beginning com confiança no instinto…
A relação entre voz e orquestra, os registos a
utilizar, a prosódia, a relação que há entre o tempo da dramaturgia quando se
lê um texto, do tempo da dramaturgia musical, numa ópera, é diferente. É uma
das coisas mais interessantes e fascinantes de fazer esse trabalho, que é na
obra, no drama, no texto escrito, descobrir qual é o seu tempo, o seu
verdadeiro tempo. Porque às vezes parece-nos que o tempo é muito largo e não é
nada, é muito rápido, e outras vezes ao contrário. Portanto, eu tive de
encontrar no texto do Gerrit Komrij o verdadeiro tempo, o tempo do drama.
Portanto é um exercício que já trouxe da outra ópera; houve muitas experiências
nesse momento, nos Cânticos para a Remissão da Fome, que me serviram com enorme
utilidade para este novo trabalho. Esta segunda ópera, as Melodias Estranhas, é uma ópera com a qual eu
estou satisfeito com algumas coisas, talvez até muitas coisas que ela contém e
uma delas é a rapidez musical do drama, que neste momento se colou à rapidez do
drama das ideias, do choque de ideias. Há uma sincronia entre isso. Para o
ouvinte da ópera, ou o espectador da obra, a crítica era a mesma: parece que os
fenómenos ocorrem depressa demais, que há muita densidade e que poderia ter
introduzido mais tempo, etc., mas isso ia estragá-la. O meu projecto não é
esse. Eu não gosto de ouvir um quadro de uma ópera, ou uma cena de uma ópera em
que eu estou como se estivesse numa banheira de jacuzzi. Tenho todo o tempo para
estar naquela água morna, sendo massajado… não, eu não quero isso, quero uma
instabilidade, uma inquietação. Se o libreto for isso, vamos entrar na banheira
do jacuzzi,
tudo bem, mas não é! O libreto é outra coisa: o tema principal é a intolerância
e o castigo. Como personagem principal, há o Damião Góis, humanista português,
um jovem sequioso de aprender, que vai para Antuérpia muito jovem, com vinte
anos, como secretário da Feitoria de Flandres. Ele aproveita o estar no centro
da Europa civilizada para se dedicar ao estudo da música, da filosofia, das
religiões. É uma pessoa extremamente interessada. Ele é incumbido de operações
diplomáticas delicadas por parte do Rei de Portugal. Ele, no seu périplo,
encontra Erasmo de Roterdão, que era a grande figura dos humanistas europeus,
com o qual tem uma relação bastante cordial. Mas há meses em que Erasmo hospeda
Damião de Góis na sua casa, já nos seus trinta e quatro, ou trinta e cinco
anos. Portanto, Góis foi hóspede de Erasmo, ao mesmo tempo que era seu aluno.
A figura de Damião Góis é uma figura trágica na
cultura portuguesa. Porque ele foi uma vítima da intolerância da Inquisição
portuguesa. A Inquisição conseguiu prendê-lo no final da vida, aproveitando-se
de muitos passos que ele deu na sua vida, de diplomata, de músico, de homem de
negócios. Para mim, o importante foi explicar, ou talvez iluminar, com o meu
trabalho, o seguinte: a liberdade é um bem que é preciso defender e preservar
sempre. Não tem automatismos; a liberdade é um processo educacional, que nunca
deve ser vista como um dado adquirido, como seguro – é sempre fruto de um
esforço de algumas pessoas, ou de uma colectividade. É necessário tratar bem da
liberdade. Portanto, o Damião Góis
é uma figura comovente nesse aspecto, em que foi um homem generoso, que
confiou, que quis aprender, voltou para Portugal e Portugal não o tolerou.
Portanto, há este episódio quase folclórico de Damião Góis estar a fazer música
polifónica em sua casa, uma casa bastante rica em Alfama, já velho, com setenta
anos. Fazia música polifónica com os amigos estrangeiros com que se dava muito bem
em Lisboa, e havia um vizinho, um senhor João Carvalho, que achava que da casa
de Góis, saíam melodias estranhas. Essa suspeita, essa acusação consta dos
autos da acusação, que são bastante abundantes no caso de Damião Góis, e nós
podemos seguir bastante bem o espaço do seu julgamento. Portanto, acusado por
produzir melodias estranhas, acaba na prisão, onde está lá dois anos. E depois
da sua libertação, por intervenção real possivelmente, é assassinado. Portanto,
é alguém que é um grande desafio à autoridade, à liberdade de pensamento e à
intolerância, e, portanto esse símbolo achei que era bom.
E a relação com Portugal, como compositor português?
Eu acho que entre o compositor e o meio há uma
relação de tensão que é comparável à criança na família, ou ao filho na
família. Há sempre dialéctica; se não houver dialéctica, se não houver
resistência, não há crescimento. Portanto, não temos aqui um tipo de
resistência que noutros países não haverá, mas há outros tipos de resistência.
Conheço bastante bem o meio holandês, e não é um meio fácil. Conheço
compositores americanos que estão com imensas dificuldades também. Em Portugal,
logisticamente nós estamos numa situação débil, porque temos poucas saídas a
nível de concertos. Os meus colegas compositores, e eu próprio posso dizer,
temos regularmente encomendas, mas é pouco, continua a ser muito pouco. Nós
precisamos de orquestras sinfónicas, em Lisboa – no Porto já temos, mas uma
política constante e consequente de encomendas e de apresentação, isso
falta-nos. Para nós é difícil, porque havendo menos eventos, claro que há mais
tensões e situações delicadas por causa disso.
Agora, em relação ao ser compositor português, e
estar em Portugal, neste caso em Lisboa a escrever, eu não sei muito bem o que
hei-de dizer, pelo seguinte: é porque fecho a cortina. Autenticamente cerro a
cortina quando estou a escrever. Claro que a minha sensibilidade terá muito a
ver com a sensibilidade galaico-portuguesa… poética, sensível à luz, ao
nevoeiro, à humidade, etc., mas também vivo muito de estímulos da tradição
ocidental, por um lado enriquecida com informação da vida dos gregos e dos
fenícios e da norte de África, e por outro lado é formatada pelo pensamento
germânico, pela tradição da sinfonia, da sonata, das variações, etc., portanto
tudo isso são estímulos que contribuem para a nossa definição ou identificação.
Agora, eu não encontro em nada daquilo que oiço, por exemplo, dos compositores
da nova geração que seja marcadamente português; não oiço portuguesismo nenhum,
a não ser que alguém pegue em algum texto de um poeta português, e de repente
que encontre ali qualquer coisa que faça lembrar outras coisas feitas em
Portugal. Mas eu acho que há um grande cosmopolitismo na escrita portuguesa
neste momento. Eu não direi que sou um compositor cosmopolita, mas naquilo que
eu faço é muito possível encontrar relações, linhas que me levam até
germanismos, até uma melodia indo-europeia.
Relação com a poesia e com o texto.
Nós todos crescemos com aquele lugar
comum de que a música em primeiro lugar é a voz humana e que a eterna tentativa
será sempre a de imitar a voz humana, e que é necessário que seja cantabile, com legato
vocal,
etc., e é inegável que o primeiro passo para o entendimento disso é ouvir voz,
se possível cantar também, ou conviver com canto, ou trabalhar com canto –
aprende-se muito daí. Agora, eu observo quando vejo aquilo que escrevi, ciclos
de canções, ou as óperas, que por exemplo, a escrita entre piano e canto é
bastante unitária; portanto, não há canto com acompanhamento. Eu acabo por
tratar as vozes de uma forma bastante instrumental, e o instrumento de uma
forma vocal, criando às vezes hierarquias dentro da obra, mas que não têm
propriamente a ver com o facto do cantor estar acima do instrumentista, ou
dentro de um grupo de instrumentos haver um que é principal. Essas hierarquias
têm mais a ver com o desenrolar formal da obra. Eu, durante muito tempo, achei
que a música tinha de ser mensagem, em primeiro lugar uma mensagem, de facto
teria de haver um esforço de comunicação, um texto, uma motivação, qualquer
coisa como um gesto… a música continua a ser um gesto de comunicação, mas agora
tenho dúvidas acerca da mensagem, e muitas vezes o texto interessa-me só a mim,
como compositor, e dirá muito menos ao ouvinte; a poesia que utilizo poderá ter
apenas, digamos, a faísca que faz explodir a pólvora e para ti, como ouvinte,
no fundo é o resultado musical da fusão entre canto e instrumento que conta, e
a mensagem não está lá.
Portanto,
eu hoje em dia tenho algumas dúvidas acerca da eficácia da mensagem. Eu acho
que nos últimos anos o que aconteceu foi que o texto, a poesia, provocou a
criação musical, e essa criação musical acabou por se tornar quase um discurso
autónomo, porque, por muitos esforços que eu faça para que o ouvinte receba o
poema como eu recebi, ninguém é capaz de o fazer. É uma experiência muito
pessoal e irrepetível. Por isso eu hoje em dia estou bastante… não é céptico,
mas eu direi que, para mim, faz sentido a poesia que utilizo, que eu leio, mas
não sei se para quem recebe será só música. Porque a dicção do texto, de um
poema em música, é sempre muito problemática. O outro dia estava a ouvir Le
Martyre de Saint-Sebastien de Debussy, e eu percebi talvez cinco por cento do texto.
Ora, com certeza que teve muita importância para Debussy aquele texto, e fez a
música para aquilo, mas eu só percebi cinco por cento. Portanto há outra
mensagem por trás do texto que essa é que é capaz de ser a verdadeira.