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Ângela Lopes


Questionário / Entrevista

Como começou para si a música? Onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos a levaram à composição?

Nasci num meio musical popular e de pop-rock. Meu pai tocava acordeão, harmónica, órgão e piano. Fazia parte de grupos musicais de música popular e folclórica ou tocava a solo em serões de desfolhadas ou outros. Depois, os meus irmãos, que adoravam a música pop-rock da altura: habituei-me a ouvir os Queen, Supertramp, Beatles, Dire Straits, entre outros. E depois veio a música dita “clássica”, com um dos meus irmãos que estudava piano na academia de música pioneira na descentralização do ensino da música: a Academia de Música de Santa Maria da Feira. E habituei-me desde cedo a ouvir termos como: jack, mini-jack, RCA, stereo, mono, amplificador, etc. Era um mundo na altura muito masculino. Recordo de entrar em casas comerciais com meu pai onde não se via uma única mulher! (Eram casas que vendiam cabos, colunas, amplificadores etc.). Na verdade nada disto antecipava que um dia seria compositora. Foi uma opção tardia. Comecei pelo piano, e em simultâneo estudei económicas(!). Decidi dedicar-me às artes musicais no fim do curso de liceu. E aí surgiu a composição. Foi das minhas opções, a mais feliz, duradoura e consistente. Compor é uma necessidade e um prazer!

Que momentos da sua educação musical se revelaram de maior importância para si?

Académicos: sem dúvida, os meus estudos na Escola Superior de Música do Porto, no Curso de Composição. E muito particularmente, as aulas de Composição com o compositor Cândido Lima, mas também as aulas de História da Música com o professor / maestro Álvaro Salazar, de Orquestração com o compositor Filipe Pires ou de Electroacústica com o compositor Virgílio Melo. Foi um período fundamental de aprendizagens que se revelaram fundamentais para o meu crescimento como criadora. Paralelamente, também foram significativos, a minha participação como ouvinte em concertos, palestras, mesas redondas, etc., como nos Encontros de Música Contemporânea da Gulbenkian, ou no Festival “Música Viva” (a minha primeira obra electroacústica difundida em concerto público, “Cantique”, foi num concerto da Orquestra de Altifalantes, no Festival, em Lisboa, no Instituto Franco-Português, era ainda estudante na ESMAE!). A aprendizagem é contínua. A saída da escola apenas reforçou a minha afirmação e autonomia como compositora. Hoje, aprendo com as obras que ouço, que analiso, que adoro! E aprendo imenso trabalhando em conjunto e ouvindo os intérpretes e a opinião de colegas compositores. E aqui tem sido marcante a minha ligação contínua ao compositor Cândido Lima e aos seus projectos.

Que referências assume na sua prática composicional? Quais as obras da história da música e da actualidade mais marcantes para si?

Quanto às referencias, são diversas. Poderá uma obra ser fruto de uma só influência? São os autores que fui ouvindo e analisando; são os compositores que fui ouvindo e reflectindo; são as teorias que fui lendo e praticando; são as discussões a que fui assistindo entre compositores, teóricos, filósofos, pensadores, analistas, amadores. Tudo são referências na hora de compor. Referências maiores: os modos ou as escalas de Messiaen ou Xenakis; a harmonia ou a cor harmónica de Messiaen ou Cândido Lima; a orquestração de compositores clássicos mas também contemporâneos como Malher ou Boulez ou Stochkhausen. Quanto às obras marcantes, refiro aquelas que foram reveladoras na altura independentemente de poder haver outras igualmente importantes na história da música clássica ou contemporânea: o “Quarteto para o fim dos tempos” de Olivier Messiaen; o “Prometeu” de Luigi Nono; “Jonchaies” de Iannis Xenakis; “A Sagração da Primavera” de Igor Stravinsky (dirigida por Pierre Boulez no Coliseu de Lisboa); “A-MÈR-ES” ou “Músicas de Villaiana – Coros Oceânicos” ou “Quadros cinéticos” de Cândido Lima; “Pelléas et Mélisande” de Claude Debussy; "Mixtur" de Karlheinz Stockhausen; ou ainda “Madonna of Winter and Spring” de Jonathan Harvey. Quanto a obras mais clássicas de Bach, de Malher, de Schubert, de Schumann, ou de Wagner...

A oposição entre “a ocupação” e “a vocação” (“inspiração”) constitui uma das questões na definição da abordagem artística do compositor. Onde, na escala entre o emotivo (inspiração e vocação) e o pragmático (ocupação), se localiza a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositora? Podia descrever o processo subjacente à sua prática composicional?

Acredito que não se é só “prático” ou só “inspirado”. A criação exige as duas atitudes. O que seria da inspiração se não houvesse um espírito prático? Ou o que seria da prática sem imaginação? Sinto-me, por isso, uma “artesã” inspirada. Enquanto compositora sei que preciso de ser prática. Mesmo que me sinta vocacionada para a escrita de um ou outro instrumento, por exemplo, sei que devo “ocupar” novos domínios. É praticando e com esforço que acredito poder vencer. Já o emotivo, este surge, porque sim. E umas obras podem ser mais emotivas que outras, porque sim. Numas podemos estar mais “vocacionados” que noutras. Não é controlável, a meu ver. Mas as duas atitudes são necessárias e vivem lado a lado na criação: razão, por um lado, e emoção, por outro. Em que escala? De preferência, a meias entre uma e a outra! (ou não!). O controlável e o incontrolável! O livre e o não livre! O calculado e o imprevisto! No meu caso, talvez com maior tendência para o controlável, o calculado e o “não” livre. Normalmente inspiro-me em obras, em leituras, em conselhos de pessoas próximas, etc. à procura da emoção. Sons de um kissange que toco ao sabor da imaginação, ou de um pau-de-chuva que gravo por sabor emotivo, ou a leitura de um texto. Uma célula melódica no piano ou um acorde de que apenas gostei... Depois há que estruturar a obra e aqui penso que é sobretudo o meu espírito de artesã que trabalha. São combinações várias, transformações, geram-se materiais novos, pega-se em “crivos” ou “filtros”, pensa-se nos intervalos de cada harmonia, nos intervalos de cada linha melódica, e controla-se a emoção! Gosto de saber que tudo “encaixa” segundo as minhas condições de “artesã”. Tenho que ter explicação racional para todo o processo, caso contrário fico “preocupada”. Não sei se esta é a maneira correcta de abordar uma obra de música, mas é aquela que pratico embora nem sempre da mesma forma já que tudo pode acontecer de maneira diferente a cada nova peça. Cada obra é um desafio!

Há quem diga que a música, devido à sua natureza, é essencialmente incapaz de exprimir qualquer coisa, qualquer sentimento, atitude mental, disposição psicológica ou fenómeno da natureza. Se a música parece exprimir algo, é apenas uma ilusão e não realidade. Podia definir, neste contexto, a sua postura estética?

Nem sempre são necessárias palavras (um texto) para que eu sinta determinadas emoções ou sentimentos. Um som, pode, a meu ver, exprimir tanto como uma palavra. Porquê? Hábito? Educação? Natureza? Se ouço, por exemplo “A Sagração da Primavera” de Stravinsky, o que sinto? Se ouço o “Tristão e Isolda” de Wagner, o que sinto? Bem sei que as emoções podem variar consoante o indivíduo. Mas, se é humano... É uma questão sem fim, essa da música pura e da música não pura, do formalismo em música e da significação da música. A semântica das palavras é uma coisa, a “semântica” dos sons é outra, próximas e distantes.

Existem algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem a sua música?

Há algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciam a minha música. Por exemplo: frases de textos, que funcionam como inspiração, emoção, cor, ambiente, ou sentimento global à obra, é disto exemplo a minha peça “La forêt”, para flauta de bisel solo.

Como vê a sua música no panorama de evolução da música ocidental?

No panorama musical ocidental une-me o sentido e o sentimento da contemporaneidade. A procura constante da inovação, da diferença, do pessoal, do que ainda não foi feito. Mais do que a preocupação de encontrar-me em estéticas, técnicas ou tecnologias comuns actuais e contribuindo para a diversidade, na contemporaneidade, de linguagens, de estéticas ou de caminhos. É assim que vejo a minha música na evolução da música ocidental. É assim que me imagino.

Sente proximidade particular com alguma escola ou estética?

Sim. Tenho algumas proximidades estéticas. Ao compositor Cândido Lima e através deste, à “escola” de Xenakis. Estes são dois autores marcantes para mim e que admiro. Mas há outras tendências: Debussy e Messiaen pela cor e harmonia.

Como caracteriza a sua linguagem musical?

A minha linguagem musical caracteriza-se por diferentes modos de expressão, combinados num só “falar”. Encontramos, por um lado, uma linguagem modal com a utilização de modos construídos à medida das minhas obras; são, por exemplo, texturas melódicas ou modos num movimento contínuo, como na obra “Movimento perpétuo”; por outro lado, há a integração das escalas (das grandes escalas) usando “crivos” como na “teoria dos crivos” de Xenakis, em “Partita”, “Ressonâncias”, ou “Caster Music”, por exemplo. Encontramos ainda, por um lado, uma expressão musical que é dada pela utilização de intervalos próximos, isto na maioria das minhas obras (uma linguagem baseada no “continuum”); por outro lado, há também, uma certa diagonalidade e descontinuidade intervalar, como nas linhas da flauta transversal em “Dual”. A minha música expressa-se também por um tratamento tímbrico / orquestral combinado (num jogo de combinações sempre variadas) como em “Duas Cantigas de Amigo”, ou “A floresta em Dodona”, por harmonias trabalhadas em função da cor e por linhas que se desenvolvem em células fixas ou imóveis, como em “Trítonos”, por exemplo; há ainda o uso de linguagens com atenção especial ao idiomatismo dos instrumentos, em peças de solistas como em “Corais - No Mar, à noite...” (e o piano) ou “La forêt” (e a flauta de bisel), “Mirror 2” (e a guitarra clássica), “Peça X” (e o violino) ou peça, ainda sem título, para tuba solo. Nas minhas músicas electroacústicas e mistas, expresso-me, sobretudo, pela música concreta, pela captação e tratamento de sons pré-existentes, como por exemplo, em “Harmonium”, “A menina dos olhos de chuva” ou “Granulations – sons do parque”, entre outras. Há outras obras que são baseadas nas grandes densidades, de massas (o ponto de partida), filtradas em diferentes “malhas”, transformando a densidade, a cor e fazendo sobressair determinadas frequências, isto em “Cantique”; ou a utilização de timbres e de combinação de alturas de natureza extraeuropeias – de África, em “Granulations – sons do parque”. Na música mista há nas minhas obras a tentativa de uso de uma linguagem de proximidade entre as partes do(s) instrumento(s) acústico(s) e da electroacústica como em “Fong song”. Aqui, a proximidade é dada pelos intervalos usados entre a flauta (o instrumento acústico) e a electroacústica sendo este o elemento unificador na obra. Noutros casos ou momentos, pode haver também a sobreposição de mundos e significados distintos, aparentemente não conciliadores: como a justaposição de texto com tratamento electroacústico (espécie de recitativo tratado electroacusticamente) e as partes da flauta e electroacústica, em “Fong song”.

Quais as técnicas que emprega no processo de composição? Há alguns géneros musicais pelos quais demonstra preferência?

Justaposição, colagem, fusão, expansões harmónicas ou melódicas, contracções harmónicas ou melódicas, combinações de intervalos e de timbres, transposições, inversões, retrógrados, espelhos diversos, modulações de harmonia, de modos, de escalas, de ritmos, de timbres; estruturas melódicas do tipo “antecedente” e “consequente”, variações melódicas, entre outras. O que se entende por géneros musicais? Categorias como a da instrumentação, do texto ou da função, entre outras? Gosto de experimentar todos os géneros musicais. Da música de solista à música de orquestra, passando pela música de câmara; da música acústica à música electroacústica, passando pela música mista; da ópera, à música de teatro ou à música de cinema, ou à música para exposições, instalações, entre outras. Da música profana ao mundo religioso, do mundo romântico à música formal. Na verdade muito do que componho é uma imposição exterior, neste campo. Na maior parte dos casos, não nos é dado a escolher a instrumentação, o texto, a função, ou a contextualização da obra, isto, no caso de encomendas. Mas sempre que possível faço as minhas opções, para não dizer que apesar deste tipo de imposições externas o conteúdo, a essência da obra musical, a verdade do produto artístico, essa sim é totalmente livre e só ao compositor diz respeito. E aqui não há, nem pode haver concessões!

Que relação tem com as novas tecnologias e como estas influenciam a sua maneira de compor, e também a sua linguagem musical?

Fiz as minhas primeiras incursões neste mundo das tecnologias, na criação musical, aquando da minha entrada para o Curso Superior de Composição, na disciplina de electroacústica, com o professor Álvaro Salazar. A primeira obra musical académica é “Cantique”, para electroacústica solo, de 1999. Um ano mais tarde trabalhei a música mista com “Canção de Izis”, para barítono e electroacústica. Ainda que não tenha a consciência de uma influência directa na minha maneira de compor nestas para outras obras musicais de outros géneros, na verdade parece-me que há necessariamente “vasos comunicantes”. Há a procura, sobretudo no campo da música mista, de identificação do mundo electrónico com o mundo acústico e vice versa. Podemos sempre transpor gestos do mundo electrónico/concreto para o mundo acústico instrumental e vice versa. Em “Canção de Izis” a voz foi tratada como se se tratasse de um instrumento de orquestra, como se fosse um violoncelo, um fagote, etc. Não há significados das palavras porque não há palavras, apenas monemas e sílabas. Há um “transfert” de conhecimentos do mundo instrumental para o mundo da voz. Por outro lado há igualmente um tratamento da voz instrumental numa integração total da electroacústica, para isso há “transferts” de conhecimentos, técnicas específicas da electrónica, para a voz, e vice versa. As influências são mútuas, e em ambas as direcções: da electrónica para o mundo acústico; do mundo acústico para a electrónica e dentro do próprio mundo acústico.

Quais as suas obras que constituem pontos de viragem no seu percurso enquanto compositora?

1ª) “Dual”. “Dual” é a minha primeira obra de responsabilidade total. É a minha obra de libertação do meio académico (mesmo que não seja a primeira obra composta após o término do Curso). Foi escrita num compromisso de autonomia da autora e é por isso um dos pontos de viragem no meu percurso de crescimento enquanto compositora. Por outro lado, “Dual” foi a obra eleita para gravação em CD pelas flautista e pianista Monika Streitová (flauta) e Sofia Lourenço (piano), em 2008 pela editora Phonedition, um projeto do compositor Álvaro Salazar, tendo mesmo dado origem à própria designação do CD – “Dual”. 2ª) “A floresta em Dodona”. “A floresta em Dodona” é uma “mini-ópera” ou ópera de bolso, escrita para a primeira edição do Concurso Nacional Bienal – Ópera em Criação 2005/2007, com libreto original de Luísa Costa Gomes. É significativa no meu percurso pela oportunidade de concretização de um projecto de dimensão e qualidade raro em Portugal. Quantos são os jovens compositores que têm a oportunidade de compor ópera e ver, com dignidade, a sua obra em palco? Por outro lado, considero “A floresta em Dodona” das minhas obras de viragem em termos de combinações orquestrais (já havia usado o mesmo método de orquestrar/combinar timbricamente os instrumentos mas em música de câmara, em “Duas cantigas de amigo” – num mundo reduzido de instrumentos (5)). Com “A floresta em Dodona” pude expandir o método e conquistar novas combinações, novos timbres, novas sonoridades, novas maneiras de pensar a orquestração. 3ª) Apesar de não considerar projectos marcantes no meu percurso artístico, até pela dimensão das obras (ainda que a qualidade de uma obra não deva ser em proporção à dimensão), há duas peças que pela emoção, pelo significado ou pelo “amimar”, pelo onirismo, pela poesia desses projectos guardo-os como raros na minha produção artística. São eles: “A Menina dos Olhos de Chuva” (Junho de 2008), e “7 Peças Fáceis” – “Mimo”, “BEA”, “Corrente”, “Zig”, “Harmonias”, “Espelho meu, espelho meu...”, “Obra aberta" (Janeiro 2012). Obra para teatro electroacústico, para crianças, no caso da primeira (Contos Contados com Som, projecto da Miso Music Portugal) e obra didáctica para jovens pianistas, no caso da segunda.

O que acha sobre a situação actual da música portuguesa? Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia?

Julgo pertencer a uma geração de compositores afortunados, quando comparada com gerações mais velhas. Algumas das oportunidades que agarrei eram impensáveis noutros tempos: Os Workshops da Orquestra Gulbenkian, os concursos Ópera em Criação, os festivais Música Viva e outros, ou os grupos de música contemporânea que toca(ra)m várias obras de autores portugueses da minha geração como, o Grupo de Música Nova, a Oficina Musical, o Performa Ensemble ou o Sond'Ar-te Electric Ensemble. Por outro lado, são cada vez mais os profissionais de competência, com uma preparação técnica adequada e capaz. Este empenho e interesse crescente dos músicos como que desperta a imaginação e a vontade de fazer mais e melhor. Escrevi algumas obras solicitadas por instrumentistas-colegas: “Scherzando”, “Mirror 2” (obra publicada pelo Ciclo de guitarra de Guimarães 2007), ou “Fong song”. Há, ainda, encomendas institucionais, mesmo que algumas a custo zero(!): “Coor”, “Duas Cantigas de Amigo”, “A Menina dos Olhos de Chuva”, “La Forêt”, “Caster Music”, “Corais – No Mar, à noite..." e “7 Peças Fáceis”. É verdade que recentemente, num contexto de crise económica, verifica-se um decréscimo de actividades culturais e com isso uma diminuição de solicitações de obras musicais. Se não há concertos, não há obras. Paralelamente, há lugares onde a música portuguesa, a contemporânea, não chega. Certas casas de música onde a programação é quase exclusivamente aquela do grande público ou a de músicos estrangeiros relegando para planos subalternos os compositores portugueses. Há ainda as escolas, meios académicos onde o conservadorismo que aí impera não permite mudanças no que diz respeito à nova criação, à inovação, à diferença, ao novo, ao contemporâneo. Muitas vezes as escolas funcionam como “bolhas” de ar, como um mundo musical insular – a escola, é a escola, o mundo lá fora, é o mundo lá fora. Falta um ensino que aborde e pratique, com liberdade e abertura, diferentes músicas, diferentes épocas. Há que modificar mentalidades! Para mim, é no mundo “lá fora”, onde e apesar de uma crise dos valores culturais há alguma respiração. Neste panorama, a situação actual da música portuguesa não é certamente a desejável, mas talvez aceitável...

Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia?

O nosso papel, o papel do compositor é sobretudo o de formar, instruir, divulgar, dar a conhecer, manifestar-se pela diferença, intervir (nos meios culturais, de escola ou não, nos meios políticos, etc..), corrigir, modificar, inovar, alterar caminhos, saber fazer bem a sua arte, não fazer concessões, ser um exemplo de mudança, ser aquele que vai sempre mais à frente .... não sei se todos o fazemos com a mesma convicção. Penso que esta é a melhor definição do papel de compositor!

Como poderia descrever a situação das compositoras, hoje em dia, em Portugal e na Europa?

A situação dos compositores-sexo feminino em Portugal e Europa é diferente da situação dos compositores-sexo masculino em Portugal e Europa? Como em tantas outras profissões, socialmente aceites masculinas, penso que sim, que a situação do compositor-mulher é diferente da situação do compositor-homem. Veja-se a história da música, da clássica à contemporânea. No meu dia a dia não sinto que haja grande diferença de tratamento conforme o sexo. Mas na verdade tenho alguns episódios de compositora em que essa questão surge. Lembro-me que, quando participei no 1º Workshop da Orquestra Gulbenkian para jovens compositores portugueses, com a minha obra “Sequência”, para orquestra, alguém me avisou: “Cuidado com os músicos da orquestra”, porque sou mulher! Mas nada aconteceu, na verdade, aliás foram, do maestro aos músicos, de um respeito e delicadeza para comigo incalculáveis. Há inclusive, um episódio bonito. Quando me devolveram os materiais da partitura pelos quais os músicos da orquestra tocaram a obra, num deles vinha escrito, a lápis: “la belle”. Já noutro episódio senti claramente que ser mulher faz diferença. Ao contrário de um compositor-homem temos que dar provas máximas dos nossos conhecimentos. Felizmente estes são meros episódios ocasionais!

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros?

Os meus projectos decorrentes e futuros são: O lançamento em CD (Miso Records) de uma peça minha para violino – “Peça X”, composta em 1998, enquanto ainda estudante do Curso Superior de Composição, na ESMAE. Trata-se de uma obra para Violino solo, com uma breve duração e que teve estreia a 28 de Maio de 1999, no Café – Concerto / ESMAE / Porto. A mentora e intérprete do projecto/CD, com lançamento público para breve, é a violinista Suzanna Lidegran. Este é um CD com música para violino solo de compositores contemporâneos portugueses tais como Cândido Lima, Emanuel Nunes etc.; outro projecto, é a minha participação na gravação de um outro CD, pelo Grupo Música Nova, dirigido pelo compositor Cândido Lima, e que inclui 10 obras deste autor, das quais 3 com electrónica (“Cenas de Villaiana-músicas do mar e da montanha”, “Nynyana – old time sounds” e “Optic Music – Quadros Cinéticos”). Aqui, participo como colaboradora na produção/realização das partes electrocústicas das obras (Este é o projeto de um CD-Duplo monográfico do compositor Cândido Lima, pelo grupo Música Nova); último projecto próximo é o desejo de escrever uma obra para coro infantil. É um convite da maestrina Iryna Horbatyuk que dirige as classes de conjunto vocal de uma escola do ensino artístico especializado em Vilar do Paraíso – a “Academia de Música”.

Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

Obra recente: “7 Peças Fáceis” – “Mimo”, “BEA”, “Corrente”, “Zig”, “Harmonias”, “Espelho meu, espelho meu...”, “Obra aberta", um conjunto de miniaturas para piano solo, estreada a 21 (e 22) de Abril de 2012. É uma obra de carácter didáctico e foi uma encomenda do 2º Concurso nacional de piano – cidade de Gaia – peça imposta. “7 Peças Fáceis”, é um título que alude às “23 Peças Fáceis” do álbum Anna Magdalena. Trata-se de uma aproximação a esta obra de Bach quer pelo seu caráter pedagógico quer pela sua simplicidade técnica, quer pela duração de cada andamento. É uma obra poética. Cada uma das 7 miniaturas possui um subtítulo: “Mimo”, “BEA”, “Corrente”, “Zig”, “Harmonias”, “Espelho meu, espelho meu...” e “Obra aberta”. “Mimo”, 1ª peça, é pequena e delicada. É para mimosear, amimalhar ou amimar. Harmonias arpejadas em ecos; o tempo e o som; registos leves e luminosos; e um suave gong, final. “BEA”, 2ª peça, em contraponto de “2ª espécie” ou duas figuras para uma, a duas vozes, como em Bach, nas “Peças fáceis” ou nas “Invenções”. O subtítulo é a combinação das três primeiras letras das notas da linha melódica (si (si bemol), mi e lá bemol). “Corrente”, 3ª peça. Como água, ou como um andamento de uma suite barroca. Nota pedal Ré5 e Ré6, em contraponto com um registo profundo. A natureza ou a fluidez são aqui espelhos sonoros de um contínuo movimento. “Zig”, 4ª peça. O subtítulo é o diminutivo da palavra “ziguezague”. A sua escrita é em diagonal. “Harmonias”, 5ª peça, ou as harmonias em quartas. São acordes articulados ou filtrados ou combinados ou ornamentados. Aparecem em registos diferentes, arpejados ou não, e com diversas suspensões de tempo. No essencial de “Harmonias” há a cor. “Espelho meu, espelho meu...”, 6ª peça, o subtítulo é uma alusão a um conto para crianças “A branca de neve”. Em simultâneo é a alusão ao uso da técnica de composição a inversão ou o espelho. Obra brevíssima. “Obra aberta”, 7ª peça, como o subtítulo indica, trata-se de uma obra com a forma indeterminada ou aberta, à semelhança de tantas obras de tantos outros autores sobretudo dos anos sessenta do século XX, como Pierre Boulez ou Karlheinz Stockhausen, por exemplo. Aqui, o intérprete é convidado a participar activamente na construção final do objecto artístico. Constituída por nove fragmentos de música que podem ser tocados por uma ordem à escolha do intérprete “obra aberta” é o último momento das “7 Peças Fáceis” e a mais longa. É título homónimo do livro de Umberto Eco.

Como vê o futuro da música de arte?

Com optimismo. Porque sou optimista por natureza. Ou porque fui tornando-me optimista ao longo dos anos (talvez mais a segunda). Atravessamos tempos complicados, é certo, mas de nada vale lamentarmo-nos. Portugal tem talentos (onde já ouvi isto?!). Acreditemos pois, nestas gerações jovens que segundo o nosso poder político é das mais bem preparadas de sempre!

 

 

 

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