Em foco

Patrícia Sucena de Almeida


Questionário / Entrevista

Parte I: raízes e educação

Como começou para si a música? Onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos a/o levaram à composição?

Iniciei o contacto com as Artes num colégio interno diurno onde, para além de aulas regulares normais, frequentava aulas de piano, educação musical, de conjunto e ballet. Mais tarde, no Conservatório de Coimbra, prossegui com o pianista Jorge Ly que me incentivou ao estudo da composição referente à análise musical e técnicas de composição. Posteriormente aprofundei os meus estudos de piano com o pianista Miguel Henriques, em Lisboa, e a composição com o compositor João Pedro Oliveira na Universidade de Aveiro, começando a delinear o meu caminho na composição.

Que momentos da sua educação musical se revelaram de maior importância para si?

Não só houve momentos mas também intervenientes marcantes e não considero nunca a aprendizagem concluída, continuando de alguma forma a ser “influenciada” durante o meu trajecto e aceitando esse facto como imprescindível para uma evolução contínua e não de estagnação. Refiro assim um período inicial de contacto com a música electroacústica e a composição durante a Licenciatura em Ensino de Música na Universidade de Aveiro; o desenvolvimento e aprofundamento da orquestração durante o Mestrado em Composição na Universidade de Edimburgo; o programa de Doutoramento na Universidade de Southampton, com supervisão do compositor inglês Michael Finnissy; seminários e aulas com compositores como Emmanuel Nunes, Jonathan Harvey, Luca Francesconi, Hilda Paredes, Gérard Grisey, Brian Ferneyhough, Mauricio Kagel, Pascal Dusapin, Luc Brewaeys e workshops experimentais e concertos com o Arditti Quartet, o Pianista Ian Pace, a Orquestra Gulbenkian, L’Ensemble Itinéraire, o Sond’Ar-te Electric Ensemble, o Remix Ensemble, a OrchestrUtopica, e com os maestros Guillaume Bourgogne, Pedro Neves, Pedro Amaral.

Parte II: prática composicional | influências | estética

Que referências assume na sua prática composicional? Quais as obras da história da música e da actualidade mais marcantes para si?

Como referências em termos de ensino da composição e supervisão saliento os compositores João Pedro Oliveira, Michael Finnissy e Luc Brewaeys. Quanto a outros compositores na história da música até aos dias de hoje refiro Johann Sebastian Bach (obras para cravo, concertos, suites orquestrais); Antonio Vivaldi (concertos e óperas); Georg Friedrich Händel (óperas); Ludwig van Beethoven (sinfonias); Anton Bruckner (sinfonias); Alexander Scriabin (obras para piano); Igor Stravinsky (“O Pássaro de Fogo”, “Petrushka”, “A Sagração da Primavera”, Sinfonia dos Salmos, Ebony Concert) pelas suas estruturas poli-rítmicas, desenvolvimento motívico, utilização de formas tradicionais e o serialismo; Arnold Schönberg (“Noite Transfigurada”, “Pierrot Lunaire” op. 21, Drei Klavierstücke op. 11, 5 Peças para orquestra op. 16, Variações para orquestra op. 31, Quartetos de cordas nº 1, 2, 3, 4) pelos desenvolvimentos na atonalidade, técnicas dodecafónicas e práticas de combinatorialidade inversa dos hexacordes, as invariâncias, os agregados, as séries derivadas, o Sprechstimme; Witold Lutoslawski (sinfonias) pela construção de texturas, utilização de pequenos grupos de intervalos, dessincronia rítmica; Krzysztof Penderecki (“Polymorphia”, “Threnody to the Victims of Hiroshima”, “Anaklasis”, De Natura Sonoris nos. 2, 3, Quartetos de cordas nº 1, 2, 3) pelo uso das técnicas modernas e não ortodoxas de performance instrumental / vocal, notação gráfica, texturas de clusters; Brian Ferneyhough (Carceri d'Invenzione I, II, III, Adagissimo e os outros quartetos) pela complexidade rítmica, tendência para sistemas criadores de material e delimitadores formais, notação complexa; Mauricio Kagel (“Staatstheater”, “Les idées fixes”, Sonant, “Match for three players”, “Dressur, Rrrrrrr...”, “Anagrama”, “Pas de Cinq”) pelo envolvimento com o teatro instrumental; Karlheinz Stockhausen (Klavierstücke, “Gesang der Jünglinge”, “Gruppen”, ciclo de ópera “Licht”) pela música electrónica, e espacialização.

A oposição entre “a ocupação” e “a vocação” constitui uma das questões na definição da abordagem artística do compositor. Onde, na escala entre o emotivo (inspiração e vocação) e o pragmático (ocupação), se localiza a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositor/a?

Ao que se chama inspiração, não surge sem activar o nosso interior, implicando sempre pesquisa e trabalho. Não nos podemos sentar e esperar que a inspiração nos bata à porta. É claro que ela existe e impulsiona todo o tipo de actividade do ser humano. Todavia e segundo Stravinsky, esta actividade só se desenvolve quando se investe esforço/trabalho colocando-a a funcionar.

Podia descrever o processo subjacente à sua prática composicional?

Numa primeira fase, é sempre essencial um trabalho que pode abranger pesquisas nos campos musicais ou noutras áreas artísticas, sempre aliadas a qualquer acto de composição e que serão as chamadas fontes de impulso inspirador. Estas fontes podem tornar-se elementos essenciais no processo de composição ou estarem presentes, interagindo com a música, caracterizando a obra como multidisciplinar. Numa fase seguinte, é utilizado um processo que envolve uma relação com o título da obra, para uma delimitação do material sonoro e rítmico e uma predefinição estrutural. Os títulos são escritos em latim, já que se pretende ir à raiz da língua Portuguesa e encontrar o significado exacto pretendido. Surge uma ligação entre as letras dos títulos e o material sonoro delimitado para cada obra, com métodos específicos, que implicam regras que transformam as palavras latinas num código musical. Este interesse por códigos, cifras, verificou-se em compositores como Johann Sebastian Bach, Robert Schumann, Maurice Ravel, Alban Berg, etc… Em seguida, há uma ligação com as práticas seriais em termos melódicos, todavia não como no serialismo integral mas associado à existência de uma escala com um certo número de notas e intervalos relacionados, neste caso, com o processo referido anteriormente (letras do título) e com processos transpositores cromáticos. Quanto aos processos rítmicos, estes implicam transformações de diminuição e aumentação dos valores. No plano formal, é concebida uma pré-delineação da forma, por vezes associada a uma "narrativa" contínua com pontos fulcrais, climáticos de chegada e resolução e cujo esquema inicial pode sofrer, como será natural, alterações durante o processo de composição. Refiro que, quando uma obra se desdobra em várias vertentes artísticas (obras multidisciplinares), todas elas são conjugadas como um todo para uma coerência final total.

Existem algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem a sua música?

Penso que nunca devemos ignorar as outras artes, mesmo que a vertente em termos de composição seja puramente instrumental. Todas elas seguem um caminho que acaba por ser comum e neste sentido é de todo o interesse analisá-lo. No meu caso, não as considero unicamente como fontes, influências, mas também como intervenientes no meu trabalho em obras multidisciplinares com interacção entre estas e a linguagem musical. Neste sentido, refiro por um lado algumas fontes e influências provenientes da Fotografia como Berenice Abbot, Ansel Adams, Diane Arbus, Brassaï, J. Gutmann, Josef Koudelka, Sebastião Salgado, Gérard Castello Lopes, Alfred Stieglitz, Paul Strand, Claude Cahun, Bill Brandt, Edward Weston, Clarence Laughlin, Paul Outerbridge, Rodney Smith, Joyce Tenneson, Jerry Uelsmann, Ralph Eugene Meatyard, Paul Cava; da Pintura, no Renascimento com Hieronymus Bosch, Pieter Bruegel; nos Pré-Rafaelistas com Dante Gabriel Rossetti, John Everett Millais, John William Waterhouse; no cubismo com Pablo Picasso, Georges Braque, Juan Gris; no Dadaísmo-Surrealismo com Max Ernst, Yves Tanguy, René Magritte, Paul Delvaux, Leonora Carrington, Varo Remedios, Leonor Fini, Frida Kahlo, Salvador Dali; do cinema, no filme mudo (ênfase da linguagem corporal e facial) com “Metropolis”, “Sunrise”, “City Lights”, “Nosferatu”, “La passion et la mort de Jeanne D'Arc”, “Das Cabinet des Dr. Caligari”, “Die Buchese der Pandora”, “The Wind”, “Broken Blossoms”, “Der lezte Mann”, “Faust”, “The Hunchback of Notre Dame”, “Dr. Mabuse”, “Der Spieler”, “The Lodger”, “Der Golem”, “Der mude Tod”; no Film noir (influências do expressionismo alemão) com “The Big Sleep”, “The Big Heat”, “The Set-Up”, “Night and the City”, “Gun Crazy”, “Double Indemnity”, “Detour”, “Sunset Blvd”, “The Third Man”, “Scarlet Street”, “The Woman in the Window”, “The Big Clock”; e de realizadores como Fritz Lang, Robert Siodmak, e Michael Curtiz, Ingmar Bergman, Federico Fellini, Stanley Kubrick, Luis Buñuel, Alfred Hitchcock, Michelangelo Antonioni, Luchino Visconti, Roberto Rossellini, Vittorio De Sica, Rainer Werner Fassbinder, D. W. Griffith, David Lynch; da Literatura filosófica com Gaston Bachelard, Jean Paul Sartre, Roland Barthes, Michel Foucault, Susan Sontag, Carl Gustav Jung, Martin Heidegger, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Bertrand Russell, Theodor Adorno; da Poesia Portuguesa, Inglesa, Francesa, Espanhola e Alemã; da Prosa (contos, romance) com tendência para géneros policiais, mistério, investigação. Em termos mais específicos relativos a obras, saliento “Mens Sana in Corpore Sano” (madeiras e 2 actores) com um grupo de câmara dividido em dois, simbolizando a dualidade mente-corpo implícita no título (mens + corpus). A presença de dois actores, com figurinos específicos tal como as suas acções miméticas como bobos, foi influenciada pela personagem do bobo em “The Ship of Fools” de H.Bosch e pelas xilografias de A.Dürer incluídas no livro de S.Brant com o mesmo título. “Dulce Delirium” (quarteto de cordas) foi composta “En Hommage à Ophélie”, sendo a sua história de vida e a pintura de Sir John Everett Millais as principais fontes de impulso inspirador. As palavras de Arthur Rimbaud são citadas na introdução da obra, caracterizando Ofélia pela sua suavidade, inocência (Dulce) e loucura (Delirium): “Sur l’onde calme et noire où dorment les étoiles, / La blanche Ophélia flotte comme un grand lys, / Flotte très lentement, couchée en ses longs voiles / On entend dans les bois lointains des halalis… / Voici plus de mille and que la triste Ophélie, / Passe, fantôme blanc, sur le long fleuve noir, / Voici plus de mille ans que sa douce folie, / Murmure sa romance à la brise du soir.” “Aranea insidiis noctis sereanae...”, (fl, cl, vl, vla, vc, piano e bailarina/filme) foi influenciada por “Confessions of an English Opium Eater” (1821) de Thomas De Quincey onde refere os "Carceri D'Invenzioni" de Giovanni Battista Piranesi. As “sensações” predominantes basearam-se na condenação a um no way out, à necessidade de libertação e luta constante sendo-nos transmitidas: pelas construções fantásticas labirínticas, escuras, cavernosas e fantasmagóricas, atravessadas por caminhos vertiginosos; pela constante sensação de abismo e da sua fascinação hipnótica - chegar a um fim abrupto - podendo cair-se num buraco fundo; pelas escadas sem fim, sem saída para uma fuga; pelas maquinarias, cabos, alavancas, arcos, que parecem armadilhas; pelas teias desordenadas/ordenadas; pelo horror solitário do espaço, a sua expansão e contracção. “Aranea” tem duas hipóteses de performance - com bailarina ou projecção de filme: no primeiro caso inclui um plano específico de palco, cenário e performance da bailarina encontrando-se esta ao fundo, envolvida num pano formando uma espécie de casulo; no segundo, um filme, com o mesmo princípio do caso anterior, é projectado unicamente em determinadas alturas da obra. “Monstrum Horrendum”, com três grupos (grupo 1: fl, cl in Bb and bsn, grupo 2: vl, vla and vc, grupo 3: pno) inclui a performance de um actor vestido como uma criatura horrífica, deformada, gigante ou então a de um grande boneco necessitando da intervenção de várias pessoas para o manipular e que se movimenta atrás de uma tela transparente, conforme indicações de performance, sendo a sua sombra um elemento essencial. A fonte de impulso inspirador é proveniente da Literatura – “Frankenstein”, romance de terror gótico de Mary Shelley – implicando a ideia de criar vida a partir de partes mortas, a conquista da morte e das doenças e o simples acto de criação, sendo este acto um pecado não só contra Deus / Natureza, mas também contra o princípio humano feminino. Está dividida em quatro secções e cada uma delas em sub-secções relacionadas com as ideias anteriores: a secção 1 relaciona-se com o gradual desenvolvimento e criação do ser humano; a secção 2 com o processo de nascimento; a secção 3 com as personagens do romance; a secção 4 com o desaparecimento do monstro criado pelo Dr Frankenstein. “Silens Clamor” (fl, cl, vl, vla, vc e 3 bailarinos / actores), com um plano específico de palco, iluminação e performance dos bailarinos/actores que utilizam três máscaras brancas feitas de porcelana com um sorriso exagerado, roupagem preta e cuja coreografia é criada por um coreógrafo com instruções prévias, teve como fonte de impulso inspirador, “Merry-go-round” de Mark Gertler. Um grupo de militares e figuras civis –com túnicas, chapéus, bocas abertas – é apanhado num ciclo vicioso de carrossel, subindo e descendo de uma forma autómata com uma velocidade extrema histérica. Um horror mecanizado, sentindo-se inicialmente como aventura e tornando-se subitamente numa corrida da qual não consegue sair. Não há ninguém a quem se possa pedir ajuda e ninguém está a ouvir. O carrossel é utilizado como metáfora para a própria vida, com altos e baixos. O que todos os que cavalgam nela podem fazer é observar o que está a acontecer. Ao dar conta que não têm forma de escapar, gritam, gritos que são congelados no tempo e no espaço - gritos silenciosos que quem olha pode só imaginar e o ouvinte sentir.

PARTE III: linguagem

Quais as suas obras que constituem pontos de viragem no seu percurso enquanto compositor/a?

Quanto a referir as obras que considero importantes, estão implícitos vários factores que as tornaram fulcrais: as fontes inspiradores, a instrumentação, o grupo/solista que a estreou, para quem foi escrita e a experiência que a obra proporcionou. Refiro as orquestrações realizadas durante o Mestrado em Edimburgo (Syncopes, Allegro, Bela Bartók ; Romanze, Ziemlich Langsam, Robert Schumann; “Feuille D'Album”, Allegro Vivace e Grazioso, Edward Grieg; Ballade, Andante, Bela Bartók; Variations, Più largamente, Aaron Copland; Prélude, Op. 3, Nº 2, Sergei Rachmaninoff; Serenata, Isaac Albéniz; “La Flûte De Pan”, Claude Debussy) proporcionando uma prática orquestral/instrumental tal como durante os I, II, III e IV Workshops da Gulbenkian para jovens Compositores Portugueses, orientação e direcção de Guillaume Bourgogne com orquestração/composição experimentada directamente com orquestra, de obras escritas para ensemble (“Mostrum Horrendum”, “Silens Clamor” e “Mens Sana in Corpore Sano”). Refiro “Solitudo” (fl, cl, vla, vc e piano), seleccionada para o concurso International Gaudeamus Music Week 2001 – Amsterdam, onde trabalhei com o Ensemble Studio New Music de Moscovo, dirigido por Igor Dronov, sendo uma das primeiras experiências fora do país e a sua criação interliga-se com a ida para Inglaterra e o começo de uma nova fase no meu projecto composicional com compositores ingleses e o compositor belga Luc Brewaeys. O título provém da palavra solitudo, solitudinis, significando “solidão”, estando relacionada com momentos nostálgicos (deixar o país e a família), com o acto solitário da composição e com a minha presença numa cidade (Londres) onde a característica principal é abundância de “tudo” – pessoas, actividades e cultura. Refiro “Dulce Delirium”, como sendo a primeira obra para quarteto de cordas, escrita para o Arditti Quartet no âmbito do workshop do “Centre Acanthes”, em Metz, 2005, posteriormente tocada pelo mesmo quarteto no Atlantic Waves Festival, Londres (2006), no Auditório da Reitoria da Universidade de Aveiro e Centro Cultural de Belém no âmbito do Festival Internacional de Aveiro (2007). O segundo quarteto, “Nocturna Itinera – sum in magna animi perturbatione...”, foi também escrito para o Arditti Quartet, integrada nos Cursos Internacionais para a Nova Música em Darmstadt (2008), com prévia experimentação e composição diária em ensaios intensivos no 2º Workshop Blonay de Música Contemporânea para Quarteto (2008). Refiro as duas obras para piano, “Fatum Hominis” (piano solo e dois actores) e “In Occulto” (piano solo e actor), apresentadas em concerto por Filip Fak e Ian Pace. Quanto a “Fatum Hominis”, a fonte de impulso inspirador surgiu do Fado (temas do Fado e a atmosfera onde estes são cantadas / tocadas com os 3 performers: voz, duas guitarras) e da palavra latina fatum. Há a intervenção de dois actores, com duas longas túnicas, capuz, sendo os seus corpos completamente cobertos. Simbolizam o desconhecido e indefinido destino que no final da peça toma conta do pianista que é completamente coberto por uma dark moving cloud (actor) e a vela que foi acesa no início é agora apagada com um suave sopro. Foi seleccionada em concurso Internacional para os ISCM World Music Days / 23rd Music Biennale Zagreb 2005, com concerto pelo pianista Filip Fak e integrada nos concertos da Ny Musik – Secção Norueguesa da ISCM (International Society for Contemporary Music) e no York Late Music Festival (2006) com concertos por Ian Pace. Quanto a “In Occulto”, a fonte de impulso inspirador foi o livro de Victor Hugo – “Notre-Dame de Paris” – mas também os filmes que foram criados e baseados nesta história. As linhas que se seguem, retiradas do livro, descrevem precisamente as “sensações” essenciais inspiradoras e neste sentido estão citadas na introdução da obra: “Et il est sûr qu'il y avait une sorte d'harmonie mystérieuse et préexistante entre cette créature et cet édifice. Lorsque, tout petit encore, il se traînait tortueusement et par soubresauts sous les ténèbres de ses voûtes, il semblait, avec sa face humaine et sa membrure bestiale, le reptile naturel de cette dalle humide et sombre sur laquelle l'ombre des chapiteaux romans projetait tant de formes bizarres... C'est ainsi que peu à peu, se développant toujours dans le sens de la cathédrale, y vivant, y dormant, n'en sortant presque jamais, en subissant à toute heure la pression mystérieuse, il arriva à lui ressembler, à s'y incruster, pour ainsi dire, à en faire partie intégrante. Ses angles saillants s'emboîtaient, qu'on nous passe cette figure, aux angles rentrants de l'édifice, et il en semblait, non seulement l'habitant, mais encore le contenu naturel. On pourrait presque dire qu'il en avait pris la forme, comme le colimaçon prend la forme de sa coquille. C'était sa demeure, son trou, son enveloppe. Il y avait entre la vieille église et lui une sympathie instinctive si profonde, tant d'affinités magnétiques, tant d'affinités matérielles, qu'il y adhérait en quelque sorte comme la tortue à son écaille. La rugueuse cathédrale était sa carapace.” Foi apresentada em concerto por Ian Pace no Ciclo de Concertos Momentum, no Teatro Aveirense, 2009; no New Music Festival (Transit 2009), Leuven, e na Temporada da City University of London, 2010. Refiro ainda “Sublime Volans” (fl, cl, vl, vla, vc e piano) onde se experiencia a escrita de uma miniatura para posterior junção numa obra colectiva de 25 compositores Portugueses, no âmbito do 25.º aniversário da Miso Music Portugal e apresentada em concerto pelo Sond'Ar-te Electric Ensemble, no Instituto Franco-Português, Lisboa, 2010; no Fórum Internacional para Jovens Compositores, Goethe-Institut, Lisboa, 2011; na Korea Foundation – Cultural Center Gallery, Seul (2011) e em Guimarães Capital Europeia da Cultura 2012.

Parte IV: a música portugesa

O que acha sobre a situação actual da música portuguesa? Como vê o futuro da música de arte? Como poderia descrever a situação das compositoras, hoje em dia, em Portugal e na Europa?

Em termos de concertos e projectos, a situação hoje em dia não é muito diferente de há anos atrás. Definitivamente não há possibilidade de mudança porque os sistemas políticos, de ensino e culturais não se decidem a enveredar por novos caminhos para um desenvolvimento de mentalidades maleáveis. Ainda permanece a dificuldade em organizar concertos direccionados para programas de música contemporânea, e neste sentido as apostas continuam no repertório pré século XX, já que são estes que provavelmente irão ter a audiência necessária às exigências monetárias da organização e lucros. Neste sentido, as tentativas de organização e apresentação de projectos com programas contendo obras dos séculos XX-XXI, nem sempre são aceites com facilidade, devido à falta de público e a gastos sem lucro. Ainda se torna mais difícil quando as obras são multidisciplinares, necessitando não só de músicos mas também de outros performers e condições. No que respeita aos meios humanos, há uma necessidade urgente de valorizar as pessoas (artistas) de gerações que agora se sentem capazes de partilhar/ensinar e formar “escolas” em Portugal, para que no futuro se consigam delimitar correntes artísticas. Se esta situação não se proporcionar, nada ficará nem para se apresentar como nacional. Refiro por exemplo, a situação dos bolseiros com projectos de investigação, que não sentem qualquer incentivo para se dedicarem ao seu País. São aliciados a ensinar durante o percurso do seu projecto, retirando tempo para a investigação individual e sem segurança profissional aquando do final desta investigação. Se não forem persistentes não conseguem sobreviver neste contexto. Sentem-se ainda “espaços” de conhecimento vazios, que poderiam ser ocupados por pessoas altamente qualificadas se lhes abrissem as portas, e que necessitam de ser preenchidos para a formação e criação de correntes de conhecimento. Estes “espaços”, e sem negligenciar os séculos anteriores, deveriam abarcar matérias viradas para a contemporaneidade quer a nível instrumental, teórico e de composição. Sente-se por vezes uma falta de interesse por parte dos docentes em descobrir, incentivar e guiar as potencialidades dos alunos, encaminhando-os para um possível campo artístico tal como a existência de cursos, necessitados de remodelação, com intuito de ir ao encontro dos ideais dos alunos e em que o lema fosse “Cursos para os alunos e não para os Professores”. No que respeita aos Festivais e Encomendas, é necessária a sua organização para se proporcionar um intercâmbio contínuo de conhecimentos e a organização de concertos com novas obras encomendadas. Sem Festivais ou Encomendas, os compositores / músicos terão que continuar a escrever por vezes quando têm tempo ou mesmo por livre vontade e necessidade como artistas. É claro que não podemos comparar a nossa realidade com outras, mas é clara a existência de Festivais de Música Contemporânea noutros países e nos quais qualquer músico, compositor deve participar como ouvinte ou participante. Para além disso e conforme as possibilidades, é conveniente o contacto com outras realidades artísticas e trabalhar com outros profissionais fora do país, abrindo-nos os olhos para diferentes possibilidades e neste sentido fazermos as nossas escolhas e seguirmos um caminho que, no entanto, poderá ter sempre desvios durante o seu percurso.

Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia?

Considero duas vertentes, de acordo com o projecto artístico de vida de cada um, e que deveriam ser delimitadas para um melhor funcionamento de todo o sistema: por um lado aqueles que tendencionalmente são criadores deveriam dedicar a sua vida à investigação; e por outro lado aqueles que tendencialmente são criadores e educadores sentindo necessidade não unicamente de criar mas também de partilhar e educar. O papel do compositor como educador deveria incentivar uma atitude por parte dos alunos caracterizada pela disciplina, concentração e disponibilidade mental e física para realidades de performance e criação, já que o ensino muitas vezes cria uma ligação tensa entre aluno-educador; um caminhar para uma maior consciência existencial do corpo/mente e descarga de tensão com a finalidade de libertação de preconceitos para a exploração descontraída do que se propõe; uma análise de conceitos que se tornaram essenciais nos estudos contemporâneos de criação (Performance Art, o Teatro Musical Experimental e o Teatro Instrumental) como o tempo (importância da organização do tempo nas estruturas criativas), o corpo (importância do factor físico do instrumentista na produção do som) e o espaço na performance; uma exploração da espacialização (fontes sonoras variadas e vindas de vários pontos da sala – até offstage); uma exploração de diferentes fontes sonoras como a voz, o instrumento e o corpo tal como os mecanismos de cenário e do meio ambiente; uma análise das atitudes dos vários intervenientes numa obra multidisciplinar tais como o compositor, o/os instrumentista(s),os actor(es), etc...e a própria audiência; um caminho para o desbloqueamento e diluição das barreiras entre a música e outras linguagens artísticas com o intuito de produzir obras unitárias e coesas; uma exploração de técnicas contemporâneas (extended techniques) não convencionais, não ortodoxas e não tradicionais; um conhecimento de repertório passado mas essencialmente do séc. XX e XXI e outros estilos musicais que não a dita "música séria". O papel de compositor de música clássica (é importante referir a vertente composicional) como criador não é tornar-se num indivíduo socialmente distinto nem superior em relação aos outros géneros de composição, apesar de frequentemente ser julgado como tal. Para além de criador deve tornar-se reflexivo em relação ao panorama musical e das outras artes. Neste sentido, o estar atento pode conduzi-lo ao desenvolvimento de novos conceitos e modelos tal como a sua aplicação nas suas obras, não querendo isto dizer que se coloca constantemente um ênfase no único e novo. Apesar disso, qualquer evento artístico envolve uma mistura de estabilidade e mudança mesmo estando num enquadramento tradicional. Deve enriquecer a cultura Portuguesa contribuindo com um aprofundamento das suas pesquisas diárias, com um conhecimento da realidade actual e abrir caminhos para o futuro.

Parte V: presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

O meu projecto principal neste momento é o de Pós-Doutoramento na Universidade de Aveiro, como bolseira da FCT, que implica um Estudo, Análise e Desenvolvimento de Novos Conceitos de Interacção entre as Diversas Artes com a Linguagem Musical e sua Aplicação em Modelos Composicionais Multidisciplinares. Neste sentido, por um lado, tem havido um estudo analítico de temas que abordam a Performance Art, as influências estéticas e composicionais de John Cage, o Experimentalismo, o compositor Mauricio Kagel – Instrumental Theatre e o Music Theatre –, e por outro, a elaboração e aplicação a aplicação de novos conceitos referidos em modelos composicionais, tendo como conceito base a união entre as diversas artes e a música. Este processo resultou na escrita de “Nocturna Itinera” (quarteto de cordas e filme), “Sublime Volans” (fl, cl, vl, vc e piano), “In Occulto” (piano solo e actor), “Tempus Fugit” (fl, cl, vl, vla, vc, piano, filme e fotografia) e na continuação de “Imaginis umbra est” (4 sopranos, actor masculino e 2 pianos), “Somnium” (soprano, narrador, fl, cl, fg, 2 vls, vla, vc, piano, harpa, percussão), e “Reditus ad vitam” (piano solo e marioneta / 2 bailarinos). Destaco a obra em curso, “Reditus ad vitam”, que implica a performance de um solista tal como a presença de outros intervenientes (manipulação de uma marioneta ou 2 bailarinos), ainda em estudo como obra multidisciplinar, tendo em conta a interacção entre as artes e a linguagem musical. Tal como “In Occulto”, também foi escrita tendo em conta um performer / pianista específico (Ian Pace) e neste sentido uma total compreensão e conhecimento “estilístico” da obra.

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