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Hugo Ribeiro


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Questionário / Entrevista

Como começou para si a música? Onde identifica as suas raízes musicais e que caminhos o levaram à composição?

Desde cedo que a música está presente na minha vida. Apesar de não haver músicos na família, sempre se ouviu música em casa.
A primeira vez que tomei contacto com o som orquestral de obras do repertório canónico, decidi, com cerca de 5 anos, que queria estar envolvido nesse mundo.
Enquanto criança tive sempre uma necessidade muito grande de criar. Entre muitos exemplos, posso destacar que quando aprendi a escrever fiz uma colecção de poemas sobre animais, mais tarde, publiquei três revistas de análise e comentário a jogos de vídeo que jogava na altura, que distribuía aos colegas da escola…
Depois de começar a estudar piano no Conservatório de Música D. Dinis, o passo para a composição das minhas próprias peças foi dado de forma natural. A necessidade de criar a minha própria música estava agora suportada pela progressiva aproximação, conhecimento e compreensão da linguagem musical. A composição nasce portanto de uma paixão muito grande por música em conjugação com a necessidade criativa que sempre se manifestou.

Que momentos da sua educação musical se revelaram de maior importância para si?

Talvez o início da minha educação musical tenha tido o maior impacto. No Conservatório de Música D. Dinis tive a oportunidade de aprender Análise e Técnicas de Composição com o compositor (e agora também amigo) Carlos Marecos que admiro bastante e a quem devo muito. Ao mesmo tempo e na mesma instituição a professora de piano Vera Belozorovitch desempenhou um papel de “mãe musical”. Levava-me para todo o lado, organizava recitais, conduzia-me até aos melhores pianistas para eu ter oportunidade de tocar para eles, enfim, foi uma pessoa incansável. O facto de a minha mãe ter feito um esforço financeiro muito grande para me comprar um piano quando comecei a estudar no Conservatório, foi também determinante para o meu estudo e desenvolvimento enquanto músico e é um factor de grande relevo.
Posteriormente, já na Escola Superior de Música de Lisboa, fui tendo um contacto muito próximo com os alunos de instrumento o que me permitiu a criação e organização da série de concertos Peças Frescas que ainda hoje, 11 anos depois do primeiro concerto, acontecem. Os concertos Peças Frescas ao mesmo tempo que os Workshops Gulbenkian para Jovens Compositores Portugueses (agora extintos), foram “tubos de ensaio” essenciais para o meu desenvolvimento; penso que a geração de compositores anterior à minha não teve tanta sorte no que respeita ao número de oportunidades.
Todos os professores com quem estudei na Escola Superior de Música de Lisboa e na Royal Academy of Music em Londres foram, cada um à sua maneira, também muito importantes para a minha formação. Não posso deixar de mencionar o professor Christopher Bochmann que me passou muito da sua sabedoria e que esteve presente desde os meus primeiros passos até ao doutoramento, onde destaco algumas das suas técnicas de composição, sobretudo as que desenvolvo na minha própria música.
Em última análise, e não considerando o processo da educação/formação musical completo (nunca o estará), qualquer ensaio, aula, conferência, acaba por ser marcante.

Existem algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem a sua música?

Em geral, sou uma pessoa que absorve muito do que está à minha volta, considerando que, de forma mais ou menos abstracta, todos esses factores absorvidos estão presentes naquilo que escrevo. Mas música é música e não a consigo imaginar capaz de ser mais do que isso apesar da sua grandeza e abrangência. Para mim, música não significará mais do que notas, dinâmicas, contornos, ritmos, articulações, compassos, claves, etc., e as várias combinações de todos estes elementos que um dia alguém toma a decisão de ordenar à sua maneira. Pela sua natureza abstracta leva-nos muitas vezes a associá-la a imagens, a lugares… e a mesma obra musical poderá inspirar diferentemente um variado número de pessoas.
É por esta razão que tenho alguma dificuldade em assumir uma influência extramusical clara porque, enquanto componho, não penso noutra coisa senão em música, mesmo que a primeira ideia possa ter surgido de outra fonte.
Sou um fã assumido de literatura. Gosto de poesia, palavras, línguas, linguística (fonética, morfologia, semântica). Gosto da forma como as palavras retiradas dos seus contextos podem ter significados vários. Tento transportar esta ideia em termos musicais: qual o impacto que terá um gesto musical retirado do seu contexto formal original.
Cada vez mais dou importância ao título das obras e às indicações agógicas que vou escrevendo ao longo da partitura (que são cada vez mais numerosas); considero que estas palavras ajudam mais a entender a intenção musical da obra do que qualquer nota de programa que possa escrever sobre ela.
A minha afeição por literatura já inspirou duas peças para ensemble:"Carta a Kundera" (2007) e "Cartas a Mia" (2012), dedicadas a dois escritores da actualidade que tanto admiro e cuja obra completa já li.
No caso da última peça, a mais recente, retirei frases dos livros de Mia Couto que inspiraram o carácter dos diferentes 5 andamentos. Por exemplo, a primeira carta, Molto feroce. Stridente., está associada à expressão “…nem barulho nem era” extraída do livro "O último voo do Flamingo", ou a quarta carta, Vuoto. Sotto voce., associada a “… o silêncio é música em estado de gravidez” do livro "Jesusalém". Mas estas duas peças pouco têm a ver directamente com os textos destes dois escritores, não são programáticas. São missivas que acabam por revelar mais sobre o remetente do que sobre o destinatário.

Podia descrever o processo subjacente à sua prática composicional?

O meu processo composicional varia de peça para peça, consoante aquilo que ela requer, e dependente da minha posição geográfica e das ferramentas que tenho em mãos. Escrever uma peça em Montreal é diferente do que escrever uma peça em Odivelas, em Londres, ou em Canterbury, nomeando locais onde já vivi. O café matinal sabe diferente, os parques e as caminhadas são diferentes, a motivação para compor música é diferente.
De uma forma mais técnica: cada peça apresenta um problema distinto porque tento que cada peça seja sobre algo diferente. O meu ponto de partida é invariavelmente a instrumentação e as suas combinações e possibilidades de orquestração: o som.
De certa forma, tenho uma maneira muito abstracta de absorver internamente a música que passarei para o papel; penso muito antes de começar a escrever. O material harmónico e melódico (as notas) é encontrado no fim, depois de ter uma “visualização auditiva” total do gesto que quero desenvolver.
Uso o piano com muita frequência para tocar o que consigo e fio-me na audição interna e imaginação. Uso programas de edição musical apenas para preparar a partitura final depois de manuscrita, muito raramente para ouvir o resultado do que escrevi. No caso de muitas das minhas peças, a opção pela utilização de uma notação gráfica em que a interpretação é determinante para o resultado musical final da obra, já por si impossibilita uma audição eficaz através de softwares informáticos.

Quais as técnicas que emprega no processo de composição? Há alguns géneros / estilos musicais pelos quais demonstra preferência?

À semelhança da resposta anterior, as técnicas vão variando consoante aquilo que é pretendido especificamente: uma peça pode ser mais rítmica do que outra, ou mais dedicada à exploração tímbrica, ou ao contraste entre partes... Só depois de saber o que vou fazer musicalmente é que procuro uma técnica que me facilite a organização do material com que quero trabalhar. Para mim, uma técnica está sempre dependente de uma intenção musical e não o contrário.
Dou especial importância ao uso de intervalos, restringindo-os a um número limitado que permita a caracterização sonora do material harmónico e melódico. Desde as minhas primeiras obras que os acordes simétricos me fascinam. A disposição intervalar igual para cima e para baixo tendo como raiz o centro e não a nota do baixo, permite-me alcançar um equilíbrio harmónico que é, para mim, importante.
Por exemplo a peça "Gestos III: (sem título)" (2008) para 4 trompetes em Dó e percussão começa com uma sucessão de acordes simétricos construídos preferencialmente com os intervalos 6 e 7 (números de meios-tons). Estes acordes estão associados a uma orquestração homogénea em que cada trompete contribui para a criação de um “novo instrumento”, recorrendo à utilização da surdina harmon e ao efeito wa-wa. Na mesma peça, no final, o pensamento intervalar mantém-se, mas de forma melódica e recorrendo aos intervalos 1, 3 e 5 que contrastam com os utilizados na primeira secção.
Há outros exemplos de princípios de simetria que utilizo recorrentemente, não necessariamente relacionados com a escolha das notas. Na peça "Mensagens Soltas" (2009) para flauta, harpa e quarteto de cordas, o equilíbrio formal foi prioritário. O planeamento da ordem dos acontecimentos surgiu naturalmente depois do estudo das possibilidades instrumentais do ensemble. Apesar de ser uma peça onde o discurso é bastante fragmentado, todas as secções dependem umas das outras, ora pela sua continuidade formal, ora pelas suas relações de duração.
Pelo facto de primariamente me concentrar em questões de orquestração, tenho tendência a preferir escrever para ensemble e para orquestra. As possibilidades sonoras que um grupo alargado de instrumentistas permite, são uma motivação extraordinária para o meu trabalho.

Quais as suas obras que constituem pontos de viragem no seu percurso enquanto compositor?

Parece-me que a minha carreira ainda não é longa o suficiente para considerar a existência de pontos de viragem significativos, mas aproveito esta pergunta para responder sobre uma tendência que me tem vindo a acompanhar desde a minha primeira peça em catálogo Quarteto de Cordas (2001): o reaproveitamento do mesmo material musical em diferentes peças, com o intuito de criar uma linha de continuidade entre elas. Esta tendência está obviamente associada ao fascínio pelas consequências psicológicas e formais de retirar um objecto musical do seu contexto original e usá-lo noutro, como atrás foi explicado.
O ciclo de peças "Gestos" é o melhor exemplo: pretende exactamente servir de ensaio sobre determinadas intenções musicais que serão desenvolvidas noutros contextos, noutras peças. O material musical usado em "Gestos I" (2006) para flautim solo e quaisquer quatro instrumentos (ou quatro naipes de qualquer instrumento) é reaproveitado em "Inventio" (2007; rev.: 2009) para orquestra e "Fragmente-Spiel" (2008) para flauta solo; e "Gestos II: conversas sobre um contorno" (2006) para clarinete em si-bemol, piano e percussão originou o material musical de base de "Quatro Personagens Saídas de um Conto" (2007) para clarinete em si-bemol, violino, violoncelo e piano. Um outro exemplo importante são as peças "Nocturne: rituel" (2010) e "Diurne: alter ego" (2010) ambas para 15 instrumentistas, que representam uma das mais antigas dicotomias da história da humanidade: noite e dia, luz e trevas. As duas peças reutilizam material musical da ópera "Os mortos viajam de metro" (2010), "Nocturne" apresentando-se mais lírico e expressivo e "Diurne" mais energético, feroz e rítmico.
A ideia de começar uma peça onde a anterior terminou é uma das minhas idiossincrasias mais vincadas, e as peças que eventualmente constituem os “pontos de viragem” a que a pergunta se refere, são as que acabam por gerar novos materiais musicais que serão reaproveitados.

Quais os motivos da escolha de ir viver / desenvolver a sua actividade criativa no estrangeiro?

Sempre gostei de viajar e de estar em constante contacto com outras paisagens, outras culturas, outras pessoas. A minha primeira saída de Portugal para ir estudar para Londres deu-se quando eu tinha 22 anos e desde esse momento que me habituei às vantagens de viver no estrangeiro: mais oportunidades, mais actividade, mais possibilidades para aperfeiçoar idiomas.

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

Neste momento estou a estudar direcção de orquestra em Montreal o que me faz ter menos tempo para compor, mas estou dedicado a escrever obras de música de câmara porque a maioria das que escrevi neste género são de uma fase mais académica da minha carreira e consequentemente começo a distanciar-me delas.
Estou agora a rever a peça "Danza" (2007) para violino e piano e a escrever uma nova para a mesma instrumentação, ambas para serem interpretadas pelo Doppio Ensemble.
Há várias outras peças que me foram solicitadas e que fazem parte dos meus projectos a médio prazo: clarinete e piano, piano solo e acordeão solo. Tenho também o desejo de escrever um duplo concerto para flauta, percussão e ensemble, mas é ainda um projecto que poderá demorar algum tempo a ser concretizado. Finalmente, gostaria de trabalhar num concerto para piano e orquestra, aproveitando a minha peça "paisagem cor de ferrugem" (2007) como um dos andamentos.
Dos projectos mais recentes, destaco as peças "et sequentes" (2011) para cravo solo, "et alii" (2012) para clarinete em si-bemol e acordeão e "et alibi" (2012) para quinteto e electrónica. As três peças, apesar dos seus diferentes contextos de criação, partilham o mesmo ciclo, que tem como intenção principal a exploração tímbrica. No caso de "et sequentes" esta exploração é feita através dos diferentes registos do instrumento, recorrendo a um vigor rítmico variado; no caso de "et alii" tentei insistir na homogeneidade dos dois instrumentos, criando um instrumento único através da fusão tímbrica entre o clarinete e o acordeão. Finalmente, em "et alibi", encomendada pelo Sond’Ar-te Electric Ensemble e estreada em Outubro de 2012, dirigida por Guillaume Bourgogne, tive a intenção de criar um espaço sonoro descontínuo onde cada instrumento vai intervindo no discurso musical de forma tímida e fragmentada (desconexa), a electrónica assumindo uma função conciliadora e, no final, quasi-humorística.
Considero que estas três peças abriram uma porta muito importante na minha criação porque arrisquei por caminhos narrativos que não tinha explorado até então e que, certamente, estarão presentes no futuro.

© Junho de 2013
Entrevista realizada em Maio de 2013

 

 

 

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