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Bruno Gabirro


Questionário / Entrevista

PARTE I - raízes e educação

Como começou para si a música? Onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos o levaram à composição?

Tinha por acaso um instrumento em casa, uma guitarra... por acaso porque ninguém o tocava, estava lá apesar de não ser um objecto decorativo. Estava apenas lá, em casa. Um dia resolvi que ia tocar esse instrumento... que estava lá, em casa, e do encantamento inicial da descoberta acabei por começar a estudar de forma regular a guitarra e outras coisas gerais sobre música, ou músicas. Dessa fase autodidacta recordo-me particularmente de ter estudado o tratado de Rameau, pois foi depois disso que começou a materializar-se a ideia de que tinha, ou queria mesmo estudar música.
Raízes musicais não sei... tenho memórias sonoras iniciais de músicas populares portuguesas rurais e urbanas... de bandas filarmónicas também. De ter ouvido em certa parte do início da minha infância numa feira ou festa ou alguém... e depois essa guitarra que estava lá em casa.
A composição era uma coisa que me interessava, mas via-me essencialmente como um instrumentista, ou estudante de instrumento. Estudava violino na Academia de Amadores de Música de Lisboa com Garegine Aroutiounian, e soube que na Gulbenkian ia haver um concerto com música para violino de Luigi Nono. Isto no início, meados, dos anos 90. Acabei por ir a quase todos os concertos, o festival de música contemporânea da Gulbenkian era nesse ano dedicado à música de Luigi Nono. Foi depois desse momento que a composição foi aos poucos assumindo maior importância para mim, e de algo que me interessava foi-se tornando em algo que me ocupava.

Que momentos da sua educação musical se revelaram de maior importância para si?

Os cerca de oito anos que estudei com Garegin Aroutiounian na Academia de Amadores de Música de Lisboa, e os também cerca de oito anos que visitei Emmanuel Nunes nos seminários de composição da Fundação Gulbenkian em Lisboa.

PARTE II - influências e estética

Que referências assume na sua prática composicional? Quais as obras da história de música e da actualidade mais marcantes para si?

Perotin, Vivaldi, Satie, Varèse, Xenakis e Nono. A ter uma linhagem homérica esta gostaria que fosse a minha.

A oposição entre “a ocupação” e “a vocação” constitui uma das questões na definição da abordagem artística do compositor. Onde, na escala entre o emotivo (inspiração e vocação) e o pragmático (ocupação), se localiza a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositor? Podia descrever o processo subjacente à sua prática composicional?

Sendo a minha ocupação aquilo que eu decidi fazer, e a minha vocação aquilo que eu quero e gostava de fazer, tenho que para o caso da composição, vocação e ocupação são absolutamente simultâneas. Não o vejo como uma escala entre uma coisa e outra mas como desejo e poder. Não me parece existir qualquer tipo de relação de proporcionalidade inversa entre as duas, são antes um complexo unitário que se manifesta sob a forma de uma energia vital, de uma razão, necessária a todas as coisas. Citando Fernando Pessoa “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.
Para trabalhar ocupo espaço e tempo, e ocupo-o(s) pensando, experimentando e imaginando.

PARTE III - linguagem e prática composicional

Como caracteriza a sua linguagem musical?

Apresento alguns aspectos e preocupações importantes na minha forma de trabalhar, que talvez ajudem a caracterizar o que poderá ser a minha linguagem musical.
Papel, lápis e borracha. São estes os recursos que geralmente utilizo enquanto trabalho. Claro que isso implica uma prévia experimentação e conhecimento dos instrumentos e meios electrónicos que vá utilizar, bem como todos os anos de estudo e experiência adquiridos enquanto instrumentista e compositor. Também não quer dizer que não utilize outros recursos pontualmente, mas em essência papel, lápis e borracha são aquilo de que preciso. Experimentei outros recursos quando iniciei os meus estudos de composição, acabando por regressar sempre ao papel, lápis e borracha. De certa forma adapta-mo-nos ao que temos reduzindo o pensamento e a imaginação ao que pode ser escrito no computador ou tocado no piano, por exemplo. O objectivo do papel, lápis e borracha não tem por isso que ver com qualquer ideal asceta ou de privação, antes o contrário - máxima liberdade do espírito e da acção.
Não tenho acordes ou intervalos preferidos, ou qualquer tipo de som que considere melhor e mais belo que outro. Em si, isoladamente, é-me tudo igual. Tratam-se de sons com determinadas características e potencial, mas cada um como objecto isolado não representa ainda coisa nenhuma, não têm valor ou peso. Só depois de se começarem a estabelecer relações entre os diversos objectos é que estes adquirem vida, vida essa de que eu tenho que estar completamente consciente e atento. As coisas existem e são, não por si próprias, mas nas suas relações, na forma como actuam e vivem. Por exemplo, um conjunto de notas que formam um objecto a que historicamente se chama de acorde perfeito maior não é para mim, inicialmente, nada mais que um conjunto de notas com determinadas características e potencial. É ao começar a estabelecer relações entre esse objecto e outros que este ganha vida, e pode assumir esse potencial de acorde perfeito maior... ou não.
O discurso é para mim o aspecto mais importante, posso mesmo dizer que para mim tudo é discurso. É a forma como ocupo o espaço e o tempo em música, não tem nada a ver com o estabelecimento de uma narrativa. Discurso é logos, a razão activa que tudo anima, é a energia vital. É no discurso e através do discurso que as relações se estabelecem e tudo ganha vida, é no discurso que se encontra a razão de todas as coisas pois é ele próprio razão - logos.
Podemos toda a nossa vida construir algo, a pouco e pouco, fruto de uma constância e regularidade. E isso é importante. Mas tudo isso é quase sempre condicionado por acontecimentos singulares que estabelecem um antes e um depois, irregularidades com as quais tudo se relaciona em absoluto. A singularidade não é por isso uma estranha inconsistência a debelar, mas a fonte da vida. A singularidade e a irregularidade são muito importantes para mim e é a partir delas que olho para todas as coisas.
A repetição como caso extremo da não-irregularidade, interessa-me particularmente. Não tanto os fenómenos repetitivos, cujo objectivo é o de produzir uma textura ou trama e por isso repetição inumerável, mas a repetição pura e simples, enumerável, de uma nota, um acorde, de todo um bloco, etc. Quantas vezes repito? duas vezes? vinte? cem?... porquê? como?... mais uma vez tudo é discurso...
... até o silêncio. Um extremo sonoro e por isso algo sobre o qual me interessei e que tenho trabalhado continuamente. Coisa fácil e erudita de se pôr numa peça, mas... não tenho uma única peça com silêncio, nunca foi esse o meu objectivo. Silêncio é o nada, é o antes do início e o depois do fim logo coisa nenhuma... é uma não-existência. Tenho silêncios em quase todas as minhas peças, pelo menos a partir de certa altura, silêncios que soam, que vibram no discurso, que se ouvem... têm duração, intensidade, posição e direcção no espaço, timbre, altura, etc. Nunca imaginei os meus silêncios como um silêncio, como um vazio cheio de nada. São antes objectos complexos na sua simplicidade e nas relações que estabelecem, são silêncios que soam.

Que relação tem com as novas tecnologias e como estas influenciam a sua maneira de compor, e também a sua linguagem musical?

Os recentes desenvolvimentos computacionais na música, dos últimos 20 anos pelo menos, com a chamada electrónica-em-tempo-real, reafirmam a importância do executante. A música é não só aquilo que deseja ser, mas também e principalmente aquilo que pode ser, e com a electrónica-em-tempo-real veio a possibilidade de extensão dos instrumentos e respectiva técnica instrumental. Esse é para mim o grande acontecimento recente.
Com os instrumentos bem definidos e quase imutáveis há já tanto tempo, tinha-se criado uma ideia da música como que pertencendo a um qualquer plano irreal abstracto, para além desta realidade. Sob diversas formas vivia-se, e vive-se, no mundo dos desejos... a realidade foi criada fora da música, na maior parte das vezes sob a forma de público, disposto a pagar um entretenimento refinado, noutras na de um artigo a apresentar em ambiente académico... e científico... Uma espécie de grande ressurgimento neo-romântico ocorrido nos anos 90 sob a égide da política oficial da felicidade - “eu quero é ser feliz!” proclamava-se então, e agora, como argumento válido em qualquer discussão que já tenha ido longe demais.
A electrónica-em-tempo-real vem abalar estas fundações pois põe a realidade dentro da música, materializando-a nos instrumentos e instrumentistas, desejo e poder unidos na acção.
A consciencialização de que a electrónica-em-tempo-real não se tratava apenas de um apetrecho tecnológico, ilusório e puramente ornamental, foi para mim da maior importância e permitiu a continuidade do meu desenvolvimento enquanto músico através do encontro e realização de coisas que procurava há muito, mas que de alguma forma me estavam vedadas. Permitiu-me ver claramente visto o lume vivo.

PARTE IV - a música portuguesa

O que acha sobre a situação actual da música portuguesa? Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia?

Não sei se haverá muito para dizer sobre a situação da música em Portugal. Há certamente coisas interessantes que se vão fazendo e a acontecer, gente a trabalhar e aspectos positivos e negativos como em qualquer outra parte do mundo. Há no entanto problemas antigos que nunca foram resolvidos, e que continuam a existir, que impediram sempre uma real implantação de uma vida musical saudável no nosso país. Podemos invocar a importância do São Carlos no passado, ou a franca melhoria do ensino e do valor das novas gerações de músicos em Portugal, e muitos outros casos, mas nunca se conseguiu em Portugal uma vida musical com capacidade para dar um contributo real e efectivo à sociedade em que se inscreve e que permita um real desenvolvimento e integração dos seus intervenientes.
E isso só se resolve com uma séria discussão sobre o que queremos para a música no nosso país, podemos até não querer música de arte e declarar a sua inutilidade para os nossos desígnios e objectivos e se alguém a quiser fazer é um problema pessoal seu, mas é necessário que os músicos discutam a situação e o que querem, e que essa discussão seja estendida ao poder político institucional, a nível nacional, local e partidário, e que estes digam claramente o que pretendem e ajam em conformidade.

Sendo a situação do compositor diferente em cada período da história humana, e dadas as grandes mudanças à escala mundial que se têm verificado nos últimos 20 anos, o compositor de hoje vive uma situação nova na forma como se relaciona com a sociedade e com o poder. No entanto penso que independentemente da sua situação, o papel do compositor é e foi sempre o mesmo. Dentro das condições, problemas e exigências de cada época, o trabalho do compositor é o de questionar, pensar, imaginar e fazer música, e dessa forma agir como uma força de mudança no mundo que o rodeia, percorrendo outros caminhos, outras possibilidades.

PARTE V - presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

Estou neste momento a trabalhar com o José Grossinho numa peça para electrónica-em- tempo-real. É só e apenas para electrónica-em-tempo-real, sendo o José o instrumentista, o que quer dizer que todo o sistema de electrónica estará montado e não haverá qualquer instrumento ou fonte emissora de som a não ser o próprio sistema no espaço de execução musical. Ainda está num estado inicial de estudo e experimentação e há muito trabalho pela frente, sendo por isso um projecto que decorre de momento e se estenderá pelo futuro próximo, do próximo ano pelo menos.
Uma das minhas peças mais recentes foi “but I have many friends, and some of them are with me”, para o Sond’Ar-te Electric Ensemble e electrónica-em-tempo-real. Foi uma encomenda do Sond’Ar-te Electric Ensemble estreada o ano passado em Junho. É uma peça que veio numa altura em que procurava romper, não no sentido de corte mas de desvelar tão nú e crú quanto pudesse o que pensava sobre a música e aquilo que queria, e quero fazer... romper, romper sempre é fundamental.

Como vê o futuro da música de arte?

Qualquer tipo de conhecimento, pelas forças que liberta, é uma ameaça a todo e qualquer poder instituído em determinado momento. O objectivo principal de qualquer poder é o de controlar e perpetuar-se, enquanto que o objectivo de qualquer tipo de conhecimento é o de contínua descoberta e renovação.
Sendo a música de arte um tipo de conhecimento, a escolha histórica do poder até ao período entre as duas grandes guerras mundiais do século passado, foi a de manter a música, e todas as outras formas de conhecimento perto de si e sempre que possível na mais absoluta exclusividade, não só na esperança de controlar as suas forças vivas, mas também de legitimar desse modo o seu poder através da posse e exibição tanto dos bens materiais como imateriais - um poder absoluto e divino.
Tudo muda, e hoje o poder, na Europa e em grande parte do mundo, necessita do voto popular para se legitimar. Há por isso muito mais interesse por parte desse tipo de poder actual em se identificar, e ser identificado, com tudo o que seja popular, e no caso da música a atenção por parte do poder passa da música de arte para a música popular, ou para certos tipos de músicas populares e circunstâncias em que se realizam. Se para outros tipos de conhecimento, como o científico por exemplo, os ganhos parecem compensar os riscos de perda de controlo das forças geradas por esse conhecimento, para o caso da arte parece não ser esse o entendimento por parte do poder que vigora na maior parte do chamado mundo-livre. É por isso que se assiste a uma pressão por parte de diversos agentes da sociedade actual, para que a música de arte se guie pelos mesmos princípios da música popular, ou seja que procure a sua validação como produto sujeito a leis de mercado de compra e venda por parte das massas, o que implica um suicídio ao passar de conhecimento a entretenimento. Embora essa pressão não seja normalmente exercida de forma clara e óbvia, pode observar-se na forma como dinheiros públicos são distribuídos de acordo com a lotação conseguida, maior ou menor venda de apresentações, entre outros quantificadores de indústria utilizados. Uma lista exaustiva seria imensa. Como alternativa o poder político oferece à arte a sujeição a processos académicos próprios de outros tipos de conhecimento, em particular da ciência, tendo como consequência um esvaziamento de conteúdo e dissipação de todo o potencial da arte. É como perguntar a um condenado à morte “prefere morrer na cadeira eléctrica ou na forca?” Não surpreende por isso que a música de arte esteja practicamente circunscrita a uma existência museológica, validada na procissão em registo fúnebre de glórias passadas.
Apesar de parecer estar a dizer que não há futuro, penso que há. E parece-me também que o conhecimento, e a arte como forma particular de conhecimento, esteve sempre sujeito a diferentes tipos de violência ao longo dos séculos, por isso de certo modo a novidade apenas está nos meios com que se exerce essa violência hoje. Entretanto o mundo continua, “e no entanto ela move-se” disse-se um dia, para desespero dos arautos do fim do mundo, ou na versão actual, do fim da história.

Bruno Gabirro, Agosto 2013
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