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Joly Braga Santos (1924-88)


Joly Braga Santos nasceu a 14 de Maio de 1924 em Lisboa, celebrando-se este ano o 90º aniversário do seu nascimento. Compositor, maestro e crítico, figura ímpar e incontornável no que respeita à música portuguesa do século XX, deixou uma catálogo de cerca de 110 obras, entre as quais se destaca a sua música para orquestra. Mesmo que a sua obra apresente parentescos estilísticos com, por exemplo, William Walton, Ralph Vaughan Williams, Jean Sibelius, Benjamin Britten ou Dmitri Shostakovich, devido a razões sociopolíticas do tempo em que viveu e trabalhou, por um lado o fascismo mas por outro a própria posição periférica de Portugal, a sua música nunca chegou a ser reconhecida internacionalmente ao invés da de outros compositores da mesma corrente estética (tanto os aqui referidos como outros). Como diz Alexandre Delgado no seu livro A Sinfonia em Portugal: “Com Joly Braga Santos, temos um caso de continuidade pouco comum na história da música portuguesa: houve uma verdadeira passagem de testemunho entre professor e discípulo. Luís de Freitas Branco foi para ele um Mestre, na autêntica acepção da palavra – um pai espiritual que o acolheu e ensinou com generosidade, ciente do talento invulgar do aluno.”[1]

Joly Braga Santos estudou violino, piano e composição no Conservatório Nacional; foi aluno de Luís de Freitas Branco (Composição e Ciências Musicais) e de Pedro de Freitas Branco, este último o principal responsável pela divulgação da sua obra. Enquanto jovem compositor inspirou-se na música tradicional portuguesa, nomeadamente no folclore, e na polifonia renascentista; estas influências estão bem patentes nas quatro primeiras sinfonias, compostas entre os 22 e 26 anos, e que foram quase de imediato interpretadas pela Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional. Em 1947, depois da estreia da Abertura Sinfónica I no Teatro Nacional de São Carlos, foi convidado a ingressar no Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional como colaborador fixo, vivendo exclusivamente da actividade de compositor para esta instituição até à extinção do gabinete em 1954.
Nos finais dos anos 40 Joly Braga Santos teve um importante papel na mobilização da população juvenil, factor essencial para a formação da Juventude Musical Portuguesa, da qual foi membro fundador. Em 1948, frequentou o Curso Internacional de Direcção Orquestral com Hermann Scherchen em Veneza, tendo sido colega de Luigi Nono, Bruno Maderna e Fernando Corrêa de Oliveira. Como bolseiro do Instituto de Alta Cultura estudou Musicologia e Composição em Itália com Virgilio Mortari, Gioacchino Pasquali e Alceo Galliera (1959-61). De regresso a Portugal, dedicou-se durante um largo período de tempo à direcção de orquestra, e iniciou a actividade de maestro assistente de captação na Emissora Nacional, onde trabalhou com Silva Pereira e Álvaro Cassuto. Voltou a compor com mais regularidade a partir da década de 1960, desta vez apresentando as suas e 6ª Sinfonias, que marcam a transformação da sua linguagem e a assimilação de várias características da vanguarda europeia, como por exemplo o extremo cromatismo.

Como maestro, Joly Braga Santos estreou-se em 1950 na Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional num concerto organizado pela Juventude Musical Portuguesa, e ao longo dos anos trabalhou com a Orquestra do Teatro Nacional de São Carlos, a Orquestra Sinfónica do Porto e a Orquestra Sinfónica da Radiodifusão Portuguesa. É de realçar o facto que nos programas de concerto por si apresentados ter sempre dado preponderância à música contemporânea, tendo sido responsável pelas estreias em Portugal de obras de Krzysztof Penderecki, Alberto Ginastera, Álvaro Cassuto ou Jorge Peixinho.
Para além do seu vasto legado artístico, teve uma intensa actividade no domínio da crítica musical tendo escrito textos para Arte Musical, O Século, Diário da Manhã, Diário de Notícias, Época e Panorama. Enquanto professor leccionou Composição no Conservatório Nacional de Lisboa, trabalhou no Gabinete de Estudos Musicais da Emissora Nacional, assim como realizou várias conferências, como por exemplo no âmbito da acção divulgadora da Juventude Musical Portuguesa e nos Cursos de Iniciação à Música Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian.

Em 1981 Joly Braga Santos foi condecorado com a Ordem de Santiago da Espada por mérito artístico. Faleceu em Lisboa a 18 de Julho de 1988.

Linguagem musical

“A grande orquestra sinfónica foi o veiculo preferencial da personalidade expansiva de Joly Braga Santos[2], contudo o catálogo das suas obras inclui uma variedade de géneros orquestrais, música de câmara, óperas, música coral e bandas sonoras. “(...) iniciei o estudo da música aos seis anos e comecei a compor muito cedo. As linguagens dominantes eram então o leve cromatismo nos países nórdicos e a politonalidade e o modalismo nos latinos onde, salvo raras excepções, se procurava de preferência renovar por meios diatónicos. (...) a evolução da linguagem musical não se processa linearmente e segundo um desenvolvimento cronológico contínuo, mas sim através de avanços e retrocessos (...). Certos exemplos (...) são disso testemunho: (...); Debussy é contemporâneo de Schönberg e o seu Prélude a l’aprês-midi d’un faune da 4ª Sinfonia de Brahms; em pleno século XX Sibelius, Richard Strauss, (...), e outros muito mais novos como Benjamin Britten, William Walton ou Dmitri Shostakovich compunham tonalmente; quase ao mesmo tempo surgiram os pioneiros do atematismo e do predomínio da importância do timbre, seguidores de Anton Webern. Foi no cruzamento de todo este contraponto linguístico-musical que procurei ao longo dos anos forjar a minha própria linguagem, tendo sempre em conta a sinceridade com que me exprimia.”[3]

As primeiras composições de Joly Braga Santos são marcadas pela figura de Luís de Freitas Branco, contudo na sua música dos anos 40 e 50 podemos distinguir vários tipos de abordagem e características de linguagem. Por um lado são distintivos os elementos melódicos e harmónicos modais, repetição de padrões rítmicos, tão típicos da polifonia portuguesa renascentista, aliados a uma estruturação que privilegia as formas clássicas. “Foi ainda influenciado pelas melodias da música tradicional do Alentejo, que utilizou nos processos da génese temática, e pela grandiosidade da paisagem alentejana, que inspirou a imponente orquestração”[4], cujos exemplos são obras como a e a 4ª Sinfonia (de 1949 e 1950, respectivamente) assim como as Variações sobre um tema alentejano (1951).
O fim dos anos 50, depois de um contacto mais amplo de Joly Braga Santos com as correntes musicais predominantes nos outros países da Europa, marca uma transformação na sua linguagem em que se assume uma oscilação entre cromatismo e diatonismo no plano melódico, enquanto no plano harmónico já não se reconhecem centros tonais, devido ao acentuado polimodalismo, às harmonias simétricas ou mesmo à utilização de clusters. Os investigadores da sua música, Alexandre Delgado[5] (aluno de Joly Braga Santos) e João Paes[6], assinalam as duas obras compostas no início da década de 60, Três esboços sinfónicos (1962) e Sinfonietta (1963), como pontos de viragem do seu estilo musical. “Entre 1955 e 1961 as constantes viagens e a actividade de chefe de orquestra, espaçando o trabalho criador, proporcionaram-me um repouso útil que seria decisivo para a transformação do meu estilo. (...) Como a forma clássica da sinfonia está ligada ao funcionalismo harmónico que a viu nascer, ao renovar a minha linguagem tive que voltar costas à estrutura sonática, uma vez que o principio tonal e seus derivados haviam desaparecido (...) do meu próprio estilo (...).”[7]
A 5ª Sinfonia de Joly Braga Santos (1965-66), que foi escrita 16 anos depois da e distinguida pela Tribuna Internacional de Compositores (UNESCO) em 1969, constitui o culminar da transformação da sua linguagem, com a sua riqueza de clusters, efeitos orquestrais específicos (glissandi), assim como com a predominância do timbre e livre cromatismo enquanto factor construtivo. Em vez da forma da sonata com dois temas opostos, há na 5ª Sinfonia um tema gerador caracterizado pela assimetria e largos intervalos em que se baseia toda a obra, naquilo a que Joly Braga Santos chamou de “amplificar ao máximo o espaço físico em que o elemento musical se insere.”[8] “A sinfonia (...) surpreende pela instrumentação megalómana, requerendo ao todo um mínimo de 105 instrumentos.”[9] Apesar da inclusão de certos elementos rítmicos e melódicos populares da África Oriental presentes sobretudo no segundo andamento, que evoca a música dos tocadores de marimba de Zavala, é uma obra não programática onde o mais importante é a própria arquitectura.
A ópera Trilogia das barcas, escrita entre 1968 e 70 logo depois da 5ª Sinfonia, é outra obra de Joly Braga Santos que evidencia a afirmação da renovação da sua linguagem assim como a tentativa de assimilação da sua natureza mais lírica e expansiva com as técnicas do modernismo. Como diz Alexandre Delgado: “Essas duas criações radicalmente diferentes, escritas tão próximo uma da outra, mostram como é inexacta a divisão estanque da produção de Joly em duas fases, uma primeira modal e uma segunda de livre cromatismo. (...). Em Joly Braga Santos os mundos tonal e atonal funcionaram como os dois pólos opostos que geram uma corrente eléctrica.”[10] Depois da sua e última Sinfonia (1971-72), que “é a expressão mais exacerbada dessa dicotomia”[11], o compositor nunca mais abordou o género sinfónico, tendo composto concertos para Piano (1973) e Violoncelo (1987), assim como música de câmara e vocal, obras marcadas pela sua percepção profunda da cor instrumental e pela preferência de formas mais livres.

Joly Braga Santos criou um idioma próprio, com um intuito universalista, absorvendo as influências do folclore português, da música do passado, assim como várias características da linguagem da vanguarda europeia do século XX, todavia “sem perder o sentido de expressividade e de comunicabilidade necessário à vontade de escrever para o público do seu tempo.”[12] Apesar da boa recepção da sua obra tanto em Portugal como no estrangeiro, por exemplo graças às gravações de Silva Pereira a partir dos anos 60, ou de Álvaro Cassuto, grande parte da sua música “permanece desconhecida tanto do público melómano como do meio musical.”[13] Para este facto contribui, por um lado, “a falta de edições de partituras e o difícil acesso ao espólio do compositor”[14], e por outro a escassez de investigação no que diz respeito ao seu percurso, sobretudo ao nível dos condicionalismos sociológicos que podiam influenciar a sua linguagem musical, tendo em conta que, tal como Dmitri Shostakovich ou Serguei Prokofiev na União Soviética, o autor da 5ª Sinfonia – Virtus Lusitaniae composta para as comemorações dos 40 anos do Estado Novo, desenvolveu a sua actividade sob as condições do regime político. Esta problemática reforça ainda a necessidade do maior reconhecimento da obra de Joly Braga Santos que “pela sua envergadura, sensibilidade e imponência [é] a legitima representante da música orquestral portuguesa do século XX. Só falta levá-la às salas de concertos do mundo.”[15]

Joly Braga Santos no Música Hoje: Antena 2, 26 de Abril; disponível através do RTP Play.

Joly Braga Santos no YouTube:

Sinfonia nº 1 (1946)
Orquestra Sinfónica Portuguesa
Álvaro Cassuto – maestro

Sinfonia nº 4 (1951)
Álvaro Cassuto – maestro

Variações sobre um tema alentejano (1951)
Álvaro Cassuto – maestro

Três Esboços Sinfónicos (1962)

Sinfonia nº 5 (1965-66)
I Prelúdio
II Zavala (Scherzo)
III Largo
IV Allegro energico ed appassionato
Orquestra Sinfónica Portuguesa
Álvaro Cassuto – maestro

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1 Alexandre Delgado, A Sinfonia em Portugal, Lisboa, 2002, p. 181
2 Alexandre Delgado, fragmento de uma nota escrita pelo compositor incluída na edição discográfica dos Quartetos de Cordas de Joly Braga Santos pela PortugalSom (SP4356)
3 Joly Braga Santos, fragmento de uma nota escrita pelo compositor sobre a sua 5ª Sinfonia incluída na edição discográfica desta obra pela PortugalSom (SP4043)
4 Anabela Bravo, Santos, José Manuel Joly Braga em: Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direcção Salwa Castelo-Branco, Lisboa 2010, p. 1175
5 Alexandre Delgado, A Sinfonia em Portugal, Lisboa, 2002
6 João Paes, A transformação do Estilo de Joly Braga Santos, 2005, incluído na antologia Dez Compositores Portugueses sob coordenação de Manuel Pedro Ferreira, Lisboa, 2007
7 Joly Braga Santos, op. cit.
8 Ibidem
9 Manuel Durão, A transformação estilística na obra orquestral de Joly Braga Santos em: Glosas, Número 3 Semestral, Maio de 2011, p. 45
10 Alexandre Delgado, op. cit., p. 241
11 Ibidem
12 Anabela Bravo, op. cit., p. 1175
13 Manuel Durão, op. cit., p. 46
14 Ibidem
15 Ibidem

 

 

 

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