Em foco

Miguel Azguime




Questionário/ Entrevista

PARTE I. Raízes e educação

Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais?

A educação musical começou muito cedo, julgo que por volta dos 5 anos, assim como as idas aos concertos de música “clássica” (generalizando o termo) com a minha avó materna (pianista não profissional) e os meus pais. Todavia uma imensa curiosidade por todas as músicas levou-me a atravessar ao longo dos anos (desde a infância até ao final da adolescência) e fora dos contextos estritamente académicos (frequentei durante muitos anos a Academia de Amadores de Música e posteriormente de forma passageira o Conservatório Nacional antes de ir estudar para o estrangeiro), a música barroca, o rock'n’roll, o jazz e o free jazz, muitas músicas extra-europeias em particular a africana (com diversas variantes), a música árabe, a música da Pérsia, a música indiana, a música do Bali e a música japonesa (especialmente o Gagaku e o Nô). A riqueza e a fascinante complexidade rítmica destas músicas conduziu-me à percussão, deixando para traz a flauta barroca que me acompanhou até aos dezasseis anos.
O estudo da percussão iniciei-o a título particular com Catarina Latino e no Conservatório Nacional com Júlio Campos e prossegui-o depois na Alemanha com James Wood e posteriormente em França com Gaston Sylvestre no Conservatório de Rueil-Malmaison.
Foi em França com Gaston Sylvestre e por volta da mesma altura em Portugal com Pierre-Yves Artaud, que então deu várias masterclasses de flauta na Fundação Calouste Gulbenkian e que conheci através da Paula Azguime, flautista e minha amada e companheira de sempre, que tomei verdadeiro contacto com a criação musical contemporânea e conheci pessoalmente muitos dos compositores que fizeram e fazem a história musical da segunda metade do século XX, incluindo Tristan Murail, o meu único professor de composição, com quem viria a estudar a título particular em Paris, entre 1985 e 1986, curto período mas decisivo.
Outros compositores viriam a marcar a minha formação nomeadamente Emmanuel Nunes, Clarence Barlow e Brian Ferneyhough com os quais segui alguns seminários de composição.

Que caminhos o levaram à composição?

Na infância: a audição regular, fosse em casa através dos discos que o meu pai quase todas as noites ouvia, fosse em concertos aos quais me levavam, das grandes obras para orquestra do repertório clássico e romântico e a ideia de que um dia haveria de escrever “coisas daquelas”.
Na adolescência: a audição num concerto em meados dos anos 70 das Variações para Orquestra Op.31 de Arnold Schoenberg que teve carácter de revelação e me abriu um mundo musical novo ao qual passei a “aspirar”. Sucedeu-se a procura e a descoberta de um novo repertório até então desconhecido que me passou a acompanhar.
Em 1984: a participação no cursos de música nova de Darmstadt e consequentemente a decisão de que para além da actividade profissional de percussionista (que me acompanhou até aos 47 anos), a criação musical estaria no cerne do meu devir e seria o “objectivo a perseguir”.

PARTE II. Influências e estética

Existem fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

Não. Embora seja possível estabelecer todo o tipo de associações na realização de qualquer objecto artístico, no meu caso a música segue os caminhos que lhe são próprios. Ou seja a música constrói-se com a sua própria matéria e a partir da investigação sobre essa matéria e sobre a sua organização enquanto discurso musical. Tal como em ciência, a investigação sobre uma bactéria por hipótese ou sobre um qualquer fenómeno, é a própria bactéria e o seu meio ou o próprio fenómeno e as suas condições.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

Sinto-me herdeiro de todo o passado inteligente e na actualidade próximo do que é progressista e inovador. A capacidade criativa tem sido ao longo de toda a história a chave da capacidade de evolução da humanidade, trazendo ao presente as respostas que constroem o futuro. A herança que me construiu e que veio do passado é apenas aquela que fez progredir a arte musical e por conseguinte a humanidade, enquanto pelo caminho foram desaparecendo todos os supérfluos, desnecessárias repetições, epigonismos, inconsequentes reflexões, medíocres realizações... Num passado recente a abordagem que mais me marcou foi o espectralismo por aquilo que descobre e revela enquanto novo entendimento do fenómeno sonoro, por integrar acústica e psicoacústica, por reincorporar a percepção no discurso musical, por constituir-se enfim como uma concepção alargada do que é som e música, por conseguinte abrangente.

Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais?

Directamente julgo que não, não obstante o meu estudo e prática durante vários anos e enquanto percussionista de muitas músicas extra-europeias.
Todavia é evidente que estamos hoje sujeitos mais do que nunca por via da mobilidade, da internet, da globalização em suma, a uma relação permanente com a diversidade cultural e a multiplicidade de expressão dos objectos artísticos, o que tem e terá certamente consequências definitivas no nosso entendimento sensível do mundo.
Isto deveria conduzir ao abandono definitivo da ideia de superioridade cultural que tanto tem caracterizado os ocidentais, caminhando para um novo paradigma o qual é todavia ainda difícil de imaginar.
Esta exposição à pluralidade cultural está lentamente, mas decididamente, a modificar o nosso olhar sobre nós próprios e sobre o outro e por isso exerce influência indelével, mas mesmo assim é no contexto restrito da música de arte ocidental que me enquadro e fora dela serei apenas aquilo que o meu tempo me fizer ser.

O que entende por “vanguarda” e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?

Num tempo de todos os possíveis (aparentemente) vivemos paradoxalmente num regime totalitário do mercado e economia que enforma, formata, espartilha e amordaça (mesmo quando disso não temos consciência).
O passado dos regimes totalitários em nome do povo que atravessaram o século XX e a actual demagogia democrática desnaturaram pouco a pouco a necessidade e o conceito de elite e desviaram a ideia de vanguarda, desvalorizando-a, recusando-a, difamando-a até.
Vanguarda é inovação por definição e sem ela não haveria futuro. Que seríamos nós sem as vanguardas que em todos os tempos e em todas as áreas apontaram os caminhos, levaram a indagação, o pensamento, a criação essencial até às últimas consequências à luz do seu tempo e fizeram avançar a humanidade.
Em todos os tempos os homens e mulheres que assumiram a responsabilidade da vanguarda enfrentaram frequentemente preconceitos e até por vezes perseguições, não sendo rara a pobreza material e a humilhação que sofreram; e fizeram-no para alargar o horizonte da nossa sensibilidade e conhecimento. Vanguarda também é assim sinónimo de liberdade.

PARTE III. Linguagem e prática musical

Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas/estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora.

Caracterizar a minha linguagem musical parece-me um empreendimento impossível... mas entendo a minha prática composicional como uma continuidade em relação com vários passados, uns mais recentes do que outros, numa hibridação e multiplicidade que reflectem vivências igualmente diversas. Se remeter apenas para os séculos XX e XXI há contributos técnicos e estéticos que marcam o meu percurso tais como a herança de Schoenberg e o serialismo, a herança de Cage e uma certa ideia do experimental e do aleatório, a herança do espectralismo de Grisey e Murail mas também os seus antecessores (Debussy, Messiaen, Scelsi, Ligeti,...) e sobretudo a revolução iniciada com Pierre Schaeffer e a música concreta acompanhada por um aprofundado conhecimento técnico e científico do fenómeno sonoro o que conduziu a uma nova forma de fazer e pensar a música, ultrapassando o conceito de nota e substituindo-o por um outro mais abrangente de som e de timbre.

No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?

No meu caso a composição parte normalmente do próprio material, a partir daquilo que designo por uma configuração morfo-temporal, ou seja um objecto sonoro com determinadas propriedades tímbricas e que ao nível microscópico se desenvolve no tempo, portanto que tem forma própria e que é portador de um devir determinado.
Quando me refiro ao timbre de um certo objecto sonoro, estou a referir-me às sua características acústicas, aos seus componentes espectrais, à harmonia e ao ritmo que lhe são inerentes ao nível microscópico.
Este ponto de “partida” pode ser constituído por um ou mais objectos sonoros que podem ser sintéticos, concretos, instrumentais, naturais... e a forma de uma peça constroí-se a partir de uma viagem que percorre e atravessa estes objectos sujeitos a processos vários de transição e interpolação entre eles e/ou de transformações e metamorfoses no interior si próprios. A macro-forma aparece assim posteriormente como resultado desta viagem!

Como na sua prática musical determina a relação entre o raciocínio e os “impulsos criativos” ou a “inspiração”?

A minha prática musical está intimamente ligada ao raciocínio aplicado ao fazer, à procura da resposta mais adequada (frequentemente com muita investigação e pesquisa) para a problemática que determinada configuração morfo-temporal ou contexto musical colocam. Contudo no momento de iniciar uma nova peça coloco-me sempre perante o “vazio” da página branca (ou a vacuidade do silêncio) à escuta da emergência de um objecto sonoro significante ou da ideia dele.

Que relação tem com as novas tecnologias e, em caso afirmativo, como é que elas influenciam a sua música?

A música terá sempre estado ligada (excepção para a voz) à utilização de um instrumento para a sua produção. Ao longo da história, os instrumentos foram evoluindo chegando a exemplos excepcionais de desenvolvimento tecnológico como é o caso do piano. Em cada momento o aperfeiçoamento dos instrumentos de música deu lugar concorrentemente à criação de um repertório único (sustentado por instrumentistas de excepção) que em muitos casos tem vindo a perpetuar as suas existências, atravessando épocas e estéticas. Nesta continuação surgem os instrumentos eléctricos, posteriormente os electrónicos e mais recentemente os digitais e todos eles motivaram e motivam um novo repertório, estimulam a criação de um novo conjunto de obras, que eventualmente validarão e garantirão por sua vez a perenidade dos instrumentos que lhes deram origem.
Nesta medida e assumindo aqui “novas tecnologias” como sinónimo de “novos instrumentos” (no plural porque múltiplos e diferenciados mesmo que existentes num mesmo suporte lógico e físico: o computador) que pertencem ao tempo presente, os mesmos têm lugar na minha música ao lado dos muitos outros já com história e repertório. É evidente que, tal como os demais no passado, estes novos instrumentos vêm estimular a criação de obras que lhes são especificamente destinadas ou seja que exploram as suas potencialidades dando a ouvir algo de novo e inaudito que permanece por inventar, ou a arte musical não fosse criação! A influência que os novos instrumentos exercem na minha música é pois aquela que os mesmo provocam devido às suas características próprias e neste sentido eu não escreveria a música que escrevo nos casos em que utilizo esses novos instrumentos da mesma maneira que Chopin não teria sido Chopin sem a existência do piano.

O seu trabalho afirma com frequência uma abordagem pluridisciplinar. Pode explicitar o como e o porquê?

Para além desta dimensão específica do computador enquanto instrumento musical, o seu papel é muito mais amplo enquanto suporte da textualidade. Aparentemente não há grande mudança entre a “cultura impressa” representada pelo livro (suporte privilegiado da revolução de Gutenberg) e a “cultura electrónica” representada pelo computador, mas é preciso não perder de vista o facto de que para o conjunto das suas diversas aplicações o computador tem uma função singular: a manipulação de dados em formato binário.
Constitui assim um suporte polivalente de escrita graças à sua capacidade em receber diferentes fontes de entrada, quer sejam visuais, auditivas, tácteis ou conceptuais,... e que são todas convertidas em informações elementares por esta série de alternâncias eléctricas entre zero e um. Uma vez capturada e reduzida a esse denominador comum binário, as diferenças entre os vários tipos de informação fica esbatida e facilmente combinável. Ao permitir esta integração transparente dos dados sensoriais, intelectuais e históricos, o computador tornou-se no primeiro instrumento artístico (e talvez o catalisador) da convergência de todas as representações. A lógica subjacente do computador pode parecer a quintessência das lógicas e das construções lineares próprias da “cultura impressa”. Mas se a experiência d’um utilizador na “cultura impressa” pode ser reduzida a uma linha que vai de um ponto A para um ponto B, a experiência de um utilizador de computador é mais parecida com um único ponto central com vários raios, que chegam e partem dele, cada um deles ligado a um outro ponto, que poderia por sua vez estar ligado a uma outra série de raios e assim por diante. O ponto central seria o resultado da mistura das entradas de todos os raios, indo da simplicidade de um curto texto à complexidade d’uma simulação virtual de um qualquer movimento ou modelo.
A capacidade de trabalhar, pensar e comunicar sob esta forma é uma ruptura maior face ao constrangimento da progressão sequencial impressa. O lugar deixa de ter importância, o contexto torna-se mais relativo do que absoluto e a informação passa a ser associativa em vez de linear. O computador vem assim proporcionar os meios para uma transversalidade criativa e graças às suas entradas e saídas múltiplas vai permitir uma representação e uma operacionalidade integradas da textualidade (entendida em sentido lato enquanto reflexão) portanto do pensamento. Esta hibridação intertextual vai assegurar não só a transversalidade operatória dos parâmetros musicais mas também a transversalidade desses mesmos parâmetros com os parâmetros d’outras áreas e disciplinas que decida integrar nas minhas peças. Consigo traz ainda uma profunda diferença na maneira como escutamos e apreendemos o mundo, nomeadamente o dos sons e por via desta mesma tecnologia a maneira como o conhecemos e o compreendemos. Isto também é dizer que a natureza dos elementos que fazem sentido, musicalmente falando, foi consideravelmente alargada.

Defina a relação entre a música e a ciência e como esta segunda eventualmente se manifesta na sua criação.

Para além da intuição milenar dos músicos para entenderem o fenómeno sonoro, o contributo da ciência nas últimas décadas para o aprofundamento do conhecimento do fenómeno sonoro foi decisivo e tem no meu caso implicações fundamentais. Toda a música que escrevo está pois profundamente marcada por estes avanços e nem seria concebível sem eles. A capacidade de compreender este complexo fenómeno (e de o relacionar com a percepção) paralelamente à existência e desenvolvimento de instrumentos de análise e outros instrumentos “operatórios” que permitem manipular o ADN do som (perdoem-me a analogia) e organizar assim novas cadeias de sentido e proporcionar novas correntes de pensamento está no cerne de todo o meu trabalho composicional.
Esta ligação é tanto mais importante quando no meu universo musical não só todos os sons têm lugar, independentemente da sua origem ou modo de produção: ambientais, concretos, instrumentais, electrónicos, sintéticos,... mas também todos eles devem ser passíveis de transformações e especulações abstractas e associativas, em suma capazes de integração num todo musical coerente capaz de comunicar.

Qual a importância do espaço e do timbre na sua música?

O timbre tem uma importância fundamental no meu trabalho composicional conforme já referi e deve ser entendido como elemento estruturante passível de uma especulação abstracta e da sua organização enquanto discurso e veículo de comunicação. Recordo pois que quando me refiro ao timbre, refiro-me às suas características acústicas, às propriedades intrínsecas do som, aos seus componentes espectrais e ao perfil dinâmico dos mesmos...
O espaço não é tratado no meu trabalho instrumental de forma igualmente estruturante mas em muitas obras é tido em consideração na própria escrita. É necessário contudo considerar de modo diferente o espaço na escrita para os instrumentos acústicos do espaço na composição electroacústica, que considero ser na sua própria essência a arte musical dos espaços sonoros. Uma arte que é produzida dentro de um espaço sonoro geral constituído por vários espaços sonoros, os quais fazem referência aos espaços que existem entre os sons, entre cada elemento musical, e que são os espaços espaciais e musicais que se criam durante a composição de uma peça electroacústica.

Como encara as relações da música e do texto?

As relações da música com o texto estão no cerne das minhas principais preocupações, provavelmente pela minha dupla condição de compositor e poeta. Após ter escrito uma obra em meados dos anos 90 na qual utilizei um texto em chinês antigo, cantado em chinês, forçoso foi confrontar-me com a problemática relação que existe entre texto e música nas línguas ocidentais ao contrário do que acontece com a língua chinesa por exemplo, que pelas suas características elimina a dicotomia entre semântico e fonético, razão do "conflito" subjacente nas nossas línguas a toda a utilização de um texto em música. Resultou da escrita desta obra a necessidade de conceber a escrita de textos especialmente para serem utilizados em música, nos quais fosse possível realizar um estado de integração entre composição poética e composição musical por via de uma regulamentação específica dos parâmetros, passando então a conduzir operações composicionais sobre a própria linguagem, no sentido de garantir um conteúdo semântico em textos vincadamente "sonoros" onde transparece a organização fonética enquanto dimensão própria da composição.
Isto é dizer que todas as obras que escrevi desde 1996, nas quais utilizei textos, todas elas foram submetidas a estes princípios no sentido de assegurar um estado de integração tão grande quanto possível entre texto e música. Entre os elementos fundamentais para esta integração está evidentemente o conhecimento das características tímbricas da voz e as propriedades espectrais das línguas utilizadas. Nos últimos 20 anos compus várias peças que dão conta desta problemática da “música enquanto texto” e “do texto enquanto música” em especial todas as peças cénicas realizadas em colaboração com a Paula Azguime e que designámos por New Op-Era (nomeadamente O Ar do Texto Opera a Forma do Som Interior, Itinerário do Sal, A Laugh to Cry) mas também outras peças como Conver(say)tions, Mes Ententespour 4 Personnages...

O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música?

Se entendermos experimentalismo, não como uma corrente estética com históricas conotações, mas sim como uma postura de pesquisa e de investigação artística, independente de quaisquer estéticas particulares, então o experimentalismo tem efectivamente um papel significante na minha música. Julgo mesmo que não há nenhuma possibilidade de verdadeira invenção sem uma aturada pesquisa e sem o empirismo da experimentação. Somente a coragem de sermos nós próprios, de aceitarmos os perigos da ousadia, de corrermos os riscos do desconhecido, permitirão desbravar o caminho a percorrer e afirmar a nossa responsabilidade plena de artistas criadores perante a humanidade e a civilização.

Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares?

A minha prática musical começou como instrumentista e além do gosto, sinto-me particularmente à vontade em palco. Muitos têm-no reconhecido e não o posso negar. A prática estritamente composicional é radicalmente oposta: é um trabalho solitário, em recolhimento. Assim ainda que tenha abandonado a minha actividade de percussionista, este apelo do palco faz-me intervir vocalmente em muitas peças minhas, lado a lado com cantores e instrumentistas, numa problemática da presença e ausência do autor a qual pus em perspectiva em Itinerário do Sal nomeadamente. Esta posição que assumo de forma muitas vezes complementar entre a composição e a performance também me dá o pragmatismo dos limites da interpretação face ao texto musical, abrindo com isso uma comunicação privilegiada com os performers da minha música. E ainda a confrontação da experiência e da consciência do tempo real da performance com o “fora do tempo” da composição, é motivadora de uma reflexão rica de repercussões para a criação musical.

Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?

Se procurar percorrer tudo o que fiz de uma forma geral, desde inícios dos anos 80 até hoje começaria por dizer que há pelo menos 3 fases. Uma fase inicial e que corresponde ao início da minha vida profissional activa dedicando-me inicialmente à interpretação mas praticando ao mesmo tempo géneros e formas musicais distintas e que me levaram a abordar o jazz, e a partir daí a prática da improvisação livre, período durante o qual todavia a composição começou pouco a pouco a fazer caminho.
A segunda fase é marcada pela fundação do Miso Ensemble na sua versão original para flauta, percussão e meios electroacústicos fossem eles amplificação ou recursos electrónicos e de tratamento em tempo real. No final desta fase (finais dos anos 90) as colaborações cada vez mais frequentes com músicos estrangeiros viriam a provocar uma dedicação mais acentuada à composição para formações cada vez mais alargadas e assim dar lugar a uma 3ª fase da minha actividade de músico e criador na qual a composição ocupa o lugar principal na minha prática. Na segunda fase há peças emblemáticas como As 4 Estaçoes (1986) que eu considero o meu opus 1, Constelações (1989), Água ou Maré – Nome de Pedra (1991), Icons...
Entretanto outras peças como De l’Étant Qui le Nie (1994-98) para piano e electrónica, Yuan Zhi Yuan (1996-1998) para soprano, tenor, 6 instrumentos tradicionais chineses, coro e electrónica (cantado em chinês), O Centro do Excêntrico do Centro do Mundo (1999-2002) para 16 vozes solistas, 2 recitantes e electrónica; são etapas importantes no meu percurso, mas o início do que eu chamo a minha 3ª fase dá-se em 2001 com Derrière Son Double para 6 instrumentos e electrónica, peça na qual julgo ter encontrado um caminho que me é próprio e singular, e que foi seguido; entre muitas outras peças, de Águas Marinhas (2005 – ensemble de 15 instrumentos), Le Feu qui Dort (2008 - quarteto de cordas), De Part et d’Autre (2011 - ensemble e electrónica), En Gêne Engin ni Gemme (2015 - ensemble e electrónica), Illuminations (2016 – orquestra), ConCordas (2015-2016 – orquestra de cordas), etc para me referir apenas às peças para formações de câmara ou formações alargadas.
Transversalmente a estas obras há um caminho complementar que persigo incessantemente, aquele que habita as relações da música com a poesia, da música com a palavra, afinal procurando integrar as minhas duas práticas criativas, a saber: a composição musical e a composição poética. Neste sentido desenvolvi um caminho próprio de hibridação intertextual e transmedialidade que se afirma numa procura de integração do semântico e do fonético. Peças para voz solo, voz e instrumentos, ópera e teatro musical ou mesmo instrumentos que “falam” são paradigmáticas desta abordagem. Entre elas devo referir Itinerário do Sal (2003-2006) que é um marco significante, mas também Circundante Circunstância dos Círculos (2007), Conver(say)tions (2011), Mes Ententes pour 4 Personnages (2012), A Laugh to Cry (2013) e a nova Op-Era que está em curso e que será estreada no final de 2016 e ainda sem título, entre outras peças escritas desde 1998 que tratam esta problemática.

PARTE IV. A música portuguesa

Tente avaliar a situação actual da música portuguesa.

Se em termos do ensino artístico e da formação musical o que foi investido em Portugal nas últimas décadas deu resultados excepcionais, com músicos qualificados, o mesmo não se pode dizer do fomento à criação e das condições da sua produção com modelos precários de subsistência das “companhias musicais” tais como ensembles e pequenas formações, que permanecem subfinanciadas e frágeis (nos casos, poucos, de sobrevivência), num triste desperdício de talentos e competências, e ficando as apresentações muito aquém do imenso público a que poderiam chegar.
A situação actual da música portuguesa, não obstante a sua qualidade e riqueza é pois de resistência activa para alguns e de sobrevivência para quase todos.
Urge pois dar à arte musical em geral e à criação musical em particular o direito e dever de cumprir o papel fundamental da sua necessidade e utilidade qualificável.

O que, em seu entender, distingue a música portuguesa no panorama internacional?

A capacidade de ser ela própria e de simultaneamente pertencer a uma espaço cultural alargado supranacional deveria conferir-lhe uma distinção que afinal não tem pela impossibilidade desconsolada de o afirmar internacionalmente por falta de meios e políticas construtivas (entenda-se aprofundadas e não superficiais com os seus habituais eventos de lógica mercantil, desenraizados e estéreis).

Conforme a sua experiência quais as diferenças entre o meio musical em Portugal e em outras partes do mundo?

Presentemente, e em relação aos países economicamente mais desenvolvidos, apenas a diferença de meios para a sua valorização, o seu reconhecimento e a sua exposição a uma comunidade alargada. Face à qualidade do que actualmente se cria e se produz em Portugal, aflige-me a dessensibilização e estupidificação auditiva e não me conformo que esta grande música, certamente de inigualável riqueza na história da música portuguesa, seja tão mal conhecida, desfavorecida que está pela preguiça auditiva, pela avidez mercantil, pelo voyeurismo imbecil da maior parte dos meios de comunicação e pela falta de visão estratégica e desperdício por parte do estado consumado pelas suas sucessivas tutelas.

PARTE V. Presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros?

Após quatro meses passados com 4 estreias, o imediato será decantar as experiências e a aprendizagem proveniente desta novas obras; mas num próximo horizonte estão já várias peças para formações diversas (peças para coro infantil, para trio (violino, violoncelo e piano); para flautas de bisel e electrónica) que irão aparecer antes do final do ano sendo de destacar ainda uma nova ópera em co-criação com a Paula Azguime e que prossegue o caminho das demais peças que se inserem no que designamos por Nova Op-Era.
2017 verá também aparecer um concerto para clarinete e orquestra entre outros projectos de composição que estão ainda em fase de gestação.

Como vê o futuro da música de arte?

Como uma sobrevivência resistente em oposição com o totalitarismo do mercado, em oposição com todas as formas de formatação redutoras e estupidificantes, em oposição com a alienação dos valores mais altos da condição humana e da civilização.
Considero da maior importância, e mesmo vital, que a Arte em geral e a Arte musical em particular, em sociedade, e fora dos interesses económicos e de mercado continue a resistir e possa continuar a ser desenvolvida no sentido de assegurar a perenidade desses mesmos valores.
O seu papel é tanto mais relevante neste ambiente de crise profunda de ordem filosófica e civilizacional que hoje atravessamos (bem mais grave e a montante da crise económica).
A Arte tal como a ciência e a investigação científica é conhecimento, e constitui um verdadeiro modelo de pensamento civilizacional; tendo sempre desempenhado - e continuará a fazê-lo, um papel fundamental na interligação entre os conhecimentos, no desenvolvimento das capacidades do pensamento para pensar os problemas individuais e colectivos na sua complexidade, fomentando o sentido da responsabilidade comunitária e o sentido da solidariedade, estimulando a interdependência acrescida de cada um e de todos, indivíduos e comunidades; constituindo-se assim num verdadeiro modelo intelectual, psíquico e civilizacional. E para que a Arte possa continuar a existir tem de permanecer livre e é preciso evitar a todo o custo o seu encerramento numa lógica técnico-económica de desenvolvimento e é por isso necessário combater o cálculo como instrumento de suposto desenvolvimento, ou seja é necessário evitar o quantificável e fomentar o qualificável, fomentar a parte que não tem preço da existência e sobretudo o que não pode ser calculado na existência humana que é a essência propriamente dita das nossas vidas. Acredito na aspiração multimilenária da humanidade à harmonia, que é a razão de todos os paraísos, utopias e ideologias. Esta aspiração renasce e renascerá sempre e ela está presente na proliferação de iniciativas múltiplas que estão na base duma sociedade livre. A Arte consuma esta aspiração.

 

 

 

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