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Paulo Bastos


Questionário / Entrevista

Parte I · raízes e educação

Como começou para si a música e onde identifica as suas raízes musicais?

Paulo Bastos: A música entra na minha vida através dos discos de vinil. Ainda na infância pensava que um dia iria ter discos só meus e colecionar muita música. Lembro-me da importância que teve a minha prenda de aniversário dos 12 anos: um gira-discos, estilo mala, daqueles em que a parte de cima era coluna stereo incorporada. Depois seguiram-se os instrumentos e a prática da improvisação, da "invenção", do tocar músicas por ouvido, da "composição" sem papel.

As minhas raízes musicais mais recônditas provêm do meu avô paterno, que era músico amador e tocava numa banda filarmónica (solista de clarinete e saxofone) e que escrevia as partes de todos os instrumentos, pois sabia ler e escrever música. Da fase da adolescência vem o meu background musical essencial, as bandas rock (Frank Zappa, David Bowie, Lou Reed, Iggy Pop, Velvet Underground, King Crimson, Pink Floyd, Genesis, Yes, etc.) algum jazz (Keith Jarrett, John Coltrane, Miles Davis, etc), alguma música clássica (Bach, Beethoven, Chopin, Debussy, Ravel, etc), entre muitas outras audições fora das categorias mais comuns.

Que caminhos o levaram à composição?

PB: Ainda hoje me parece que comecei a estudar Composição na década de 80, ao dar os primeiros passos nas aprendizagens musicais básicas, solfejo, piano, coro, formação musical, etc. Foi absolutamente natural, lembro-me da primeira música que escrevi assim que tive as primeiras aulas de Formação Musical e aprendi a escrever as primeiras notas, tendo sentido de imediato a necessidade de as combinar de um modo pessoal, de compor as primeiras músicas.

Também a influência da minha professora de piano, D. Hélia Soveral, acabou por me conduzir para a área da Composição. Todos os seus alunos tinham que estudar, para além dos itens obrigatórios do programa oficial, várias peças do Mikrokosmos de Bela Bartók, do volume 1 ao 6. A isto acrescia peças de Francis Poulenc, Igor Stravinsky, compositores portugueses do século XX, etc. Esta abordagem constante de peças do século XX influenciou a minha capacidade de ouvir, tornando-me mais aberto a tudo o que era novo.

Que momentos da sua educação musical se revelam, hoje em dia, de maior importância para si?

PB: Penso que os momentos de maior importância da minha educação musical passam pela vivência na Escola de Música do Porto, onde estudei antes da entrada no ensino superior. Aí tive a oportunidade de trabalhar em regime de aula, estágio ou workshop com a D. Hélia Soveral (figura central e a mais relevante do meu percurso), com os Percussionistas de Strasbourg, Miguel Ribeiro Pereira, Sharon Kanach, Madalena Soveral, entre muitos outros. A Escola de Música do Porto era naqueles anos um espaço de referência na cidade do Porto e no país, acontecia muita música dentro das paredes daquela velha casa. Não havendo orquestras dentro das escolas nem projectos megalómanos, os alunos tinham, no entanto, notoriedade ao nível nacional e internacional (particularmente em Piano e no Canto). Era tudo muito intenso, mas calmo, tínhamos tempo para tudo, para estudar (muito), para frequentar os workshops incríveis que nos ofereciam, para evoluirmos enquanto músicos.

Parte II · influências e estética

Que referências do passado e da actualidade assume na sua prática musical?

PB: As referências que devo assumir são Johann Sebastian Bach, Robert Schumann, Fryderyk Chopin, Gustav Mahler, Arnold Schönberg, Anton Webern, Bela Bartók, Maurice Ravel, Claude Debussy, Igor Stravinsky, Francis Poulenc, John Cage, Erik Satie, György Ligeti, György Kurtág, Luciano Berio, Louis Andriessen, Steve Reich, John Adams, Morton Feldman, Frank Zappa, Keith Jarrett, Prince, John Coltrane, Miles Davis, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, entre tantos outros...

Mas não é sequer possível enumerar todas as referências musicais que tenho no momento, basta pensar que há sempre algo novo a ouvir e que vivo em constante procura e descoberta.

Existem fontes extra-musicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

PB: A poesia e a literatura de uma forma geral, são as fontes extra-musicais que influenciam de forma mais significante o meu trabalho. Essa influência destaca-se na música mais recente. Assim, a título de exemplo, posso referir: Lewis Carol em duas obras, Cinco quadros para Alice (2009) e or Alice again (2013); Miguel Torga em Cinco canções de Miguel Torga (2016); Eugénio de Andrade em Em palavra à noite (2017); Fernando Pessoa e Mário Sá-Carneiro em Três poemas de Natal (2013); Miguel Torga, Alice Vieira, Luisa Ducla Soares, Sidónio Muralha, Eugénio de Andrade, António Botto, Manuel António Pina em Pelo aroma das sílabas (2014); Leonel Neves em O Elefante e a Pulga (2012); Mário Sá-Carneiro em Cinco indícios de ouro (2012) e Íris-abandono (2016); Sílvia Mota Lopes em Terra e Theia (2014); os textos sagrados em latim em Missae Breves (2015) e dois Ave Verum Corpus (2015); as rimas populares em Lagarto macaco, burrato! (2013), entre outros.

No contexto da música de arte ocidental, sente proximidade com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

PB: Gosto particularmente da estética da música húngara, nomeadamente os casos Bela Bartók, György Ligeti e György Kurtág. Relativamente à música actual, há muitas escolas e estéticas com as quais me identifico, não me revendo, no entanto, de forma exclusiva e colegial em nenhuma corrente. Poderei destacar a música de Morton Feldman, Luciano Berio, Louis Andriessen, John Adams, Gérard Grisey, Bruno Mantovani, Kaija Saariaho, Marc-André Dalbavie, Georg Friedrich Haas, António Pinho Vargas, Arvo Pärt.

Existem na sua música algumas influências das culturas não ocidentais?

PB: Nunca pensei nisso. Não vejo nem ouço a minha música com qualquer traço que ultrapasse o aqui e agora da minha praxis, dentro dos limites da minha própria vivência cultural de ocidental. Não me parece que baste o interesse natural que tenho em alguns assuntos e questões do oriente (do Japão por exemplo) para que haja alguma permeabilidade destas culturas na minha forma de ouvir e pensar a música.

O que entende por "vanguarda" e o que, na sua opinião, hoje em dia pode ser considerado como vanguardista?

PB: A vanguarda vai estar sempre associada às correntes musicais mais complexas, aquelas que historicamente estiveram ligadas às grandes rupturas, nomeadamente as do pós-serialismo a partir dos anos 50. Hoje não vejo essas divisões de catálogo estilístico tão vincadas, no entanto, elas ainda se reconhecem claramente nalguma música francesa, austríaca e alemã, por exemplo.

Parte III · linguagem e prática musical

Caracterize a sua linguagem musical sob a perspectiva das técnicas / estéticas desenvolvidas na criação musical nos séculos XX e XXI, por um lado, e por outro, tendo em conta a sua experiência pessoal e o seu percurso desde o inicio até agora.

PB: Começarei por dizer que é muito mais difícil escrever sobre o que fazemos do que fazer apreciações técnicas e estéticas à música de outros. A minha linguagem musical não é hermética – tenho obras totalmente diferentes entre si – e faço-o de forma assumida, na medida em que penso que um compositor deve experimentar várias linguagens e técnicas. Não tenho escola, nem sou fiel a nenhuma corrente ou estética; tenho algumas referências visíveis na minha música no que toca a processos de composição, os quais têm vindo a mudar.

Grande parte da minha produção inicial é a de um miniaturista, a ideia de compor ciclos de peças em miniaturas sempre me fascinou. A força expressiva e intensidade que uma miniatura pode encerrar é enorme, desde logo pela concentração de pensamento musical, mas também pela extrema expressividade e brevidade. Tive e tenho grande influência de compositores como Robert Schumann, Arnold Schönberg (atonal), Anton Webern or György Kurtág, particularmente no modo como trataram esta forma de escrita aforística.

Por outro lado, a música de carácter pedagógico também é um campo no qual me sinto confortável e tenho escrito alguma música infantil e juvenil. Na mesma linha, também gosto de escrever peças em que o universo e imaginário infantil estejam presentes, mas não necessariamente para serem tocadas por crianças.

Entretanto, sob a influência de outras músicas que ouço e estudo, a minha música tem vindo a traçar caminhos que me estão a levar para campos que não sei ainda definir. Nesta linha tenho adoptado formas mais extensas, procurando uma sonoridade de contornos urbanos, ligada a um imaginário rock subjacente, à questão da velocidade das coisas e da vida, ao sentido repetitivo e unidirecional do mundo em que vivemos.

Há algum género / estilo musical pelo qual demonstre preferência?

PB: É sempre difícil responder a uma questão destas. Ouvi e ouço muita música desde que me lembro de mim, quase não há dia nenhum em que não descubra qualquer coisa nova...

Mas a fazer algumas distinções, assim, sem mais explicação poderia destacar o jazz, o minimalismo repetitivo americano e europeu, a música húngara do século XX e XXI, e a obra de Morton Feldman.

No que diz respeito à sua prática criativa, desenvolve a sua música a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter elaborado uma forma global? Por outras palavras, parte da micro para a macro-forma ou vice versa? Como decorre este processo?

PB: A minha música desenvolve-se geralmente a partir dos primeiros gestos, são os primeiros momentos da obra que me vão apontando o caminho a seguir, sendo que frequentemente a música me leva para lugares que não planeei. Nunca é um processo rígido, a própria forma vai sendo construída sem, no entanto, fazer parte de um plano anterior, muita coisa funciona pelo "devir".

Que relação tem com as novas tecnologias, e em caso afirmativo, como elas influenciam a sua música?

PB: As tecnologias são um elemento constante na minha música, uma vez que recorro a elas de forma sistemática. Se entendermos as novas tecnologias como informática musical básica (programas de edição de partitura, sequenciadores, sintetizadores, etc.) elas são uma ferramenta essencial no meu trabalho quer como compositor, quer como professor. Oriento a produção de música electrónica com a minha classe de alunos de Composição e componho eu próprio alguma música electroacústica sobre suporte fixo. No entanto as noções básicas da música electrónica sempre desempenharam um papel essencial na forma como trabalho a plasticidade do próprio som. Utilizo algumas técnicas básicas da música electrónica na minha música instrumental. Aplico processos como fade in e fade out, alterações rítmicas provenientes de um delay, o efeito caótico da distorção, efeitos da equalização na percepção auditiva da distância sonora, o efeito morphing aplicado ao som numa peça solo, numa peça de música de câmara, ou numa peça de orquestra.

O experimentalismo desempenha um papel significante na sua música?

PB: Penso que não, se estivermos a pensar no experimentalismo histórico, o associado à vanguarda musical, por exemplo. No entanto enquanto compositor vejo-me sempre como alguém que faz experiências, de obra em obra. Com efeito, cada obra nova que escrevo é uma experiência que, apesar das imperfeições, acaba por nascer.

Quais as obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso?

PB: Mokuso para dois pianos, dois clarinetes e duas flautas em 1994, Adsum para piano a quatro mãos em 2004 e a Missae Breves para coro, oboé e órgão em 2015.

Em que medida a composição e a performance constituem para si actividades complementares?

PB: Se entendermos o termo performance apenas em contexto de palco não são actividades que costume associar. No entanto devo dizer que usar um instrumento, particularmente o piano, é um gesto permanente e essencial na minha forma de compor. Costumo dizer aos meus alunos que a improvisação é importante e parte do processo criativo, acredito que o processo de criação de uma obra musical passe também pela experimentação no instrumento.

Parte IV · a música portuguesa

Tente avaliar a situação actual da música portuguesa.

PB: Penso que a situação actual da música portuguesa é, de modo geral, positiva. Há hoje mais (não sei se melhores) instituições de ensino a funcionar, há mais iniciativa de norte a sul do país, visível na multiplicidade de associações, festivais, concursos, ideias, etc. Hoje pode observar-se um acesso mais democrático à música, quer por parte de quem a quer aprender, quer por parte do público em geral. No entanto, a par de todos estes aspectos positivos, tantas vezes ligados à iniciativa individual, existem também muitos constrangimentos no que toca à difusão da música portuguesa. A nossa música, grosso modo, não chega às grandes salas europeias e mantém-se ainda algo afastada dos programas das salas nacionais. Há um certo complexo de inferioridade, as grandes salas fomentam a subalternidade da nossa música face à música de outros países, como a Alemanha, França, Inglaterra ou América, usando grandes linhas temáticas de programação que são, invariavelmente, viradas para fora. A pretexto da inclusão da música de outros mundos, exclui-se sistematicamente a nossa. Este é um dos maiores problemas da música portuguesa, o qual António Pinho Vargas descreve muito bem no seu livro Música e Poder. [Março 2011, Almedina].

No que diz respeito à composição há hoje algum equilíbrio de representatividade no território nacional. Há muitos e bons compositores por todo o país. Esta é uma situação que começou a desenhar-se sensivelmente a partir do novo milénio. No início dos anos noventa havia ainda uma assimetria enorme no que dizia respeito ao número de compositores oriundos das escolas de Lisboa e Porto, por exemplo. A maior parte dos compositores da minha geração vinham de Lisboa, no Porto houve um hiato (com algumas excepções) de algumas décadas entre meados dos anos 80 e o novo milénio.

O que, em seu entender, distingue a música portuguesa no panorama internacional?

PB: Penso que quase nada. Hoje compõe-se com as mesmas ferramentas, as mesmas técnicas, os mesmos estilos, em todo o lugar. Poderá até haver algo que distinga a nossa música, mas tal nunca será suficientemente marcado para dizermos que ela é distinta por ser portuguesa. Estou convicto que há, ainda assim, países onde essa marca “nacionalista” se pode fazer sentir. São geralmente países onde a educação musical das pessoas é muito forte, países onde há uma grande tradição da literacia musical, países onde a música é parte essencial das grandes valências sociais e educativas. Não é o caso de Portugal...

Como define o papel de compositor hoje em dia?

PB: Naturalmente só posso basear-me na minha própria experiência para responder a esta pergunta. Sempre senti que devia compor, apesar de o fazer muitas vezes, como costumo dizer, para a "gaveta". O compositor precisa que as suas obras sejam tocadas (particularmente as que nunca o foram), necessita de encomendas para a sua música, precisa de compor e ver reconhecida (mal ou bem) a sua obra. Penso frequentemente nas obras que já fiz e tenho, sem qualquer tipo de efabulação, a consciência de ter já uma obra relativamente extensa, mais de uma centena. É um número considerável de obras, apesar de apenas algumas serem tocadas com frequência. Infelizmente uma parte muito significativa das minhas obras não é tocada ou não passa da estreia. Tenho consciência de que tal se deve ao facto de a minha música não fazer parte dos "circuitos" da mainstream portuguesa, nomeadamente os das grandes salas de espectáculo, dos grupos de música de câmara e orquestra de maior destaque.

O compositor dos nossos dias deve também, se puder e tiver essa oportunidade, ter um papel de referência como professor. Como professor de Composição tenho exercido o meu papel enquanto formador de jovens compositores. Com efeito, no ano de 2000 iniciei o primeiro curso de Composição do ensino secundário do país. O Curso de Composição do Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Braga (único até 2014, segundo sei) demonstrou desde o início os seus objetivos e a sua função de formar futuros e novos compositores portugueses. Essa tem sido a minha vivência pedagógica diária desde há 19 anos, com um número significativo de jovens compositores formados e reconhecidos nacional e internacionalmente, dos quais posso destacar por ordem cronológica Ana Seara, Osvaldo Fernandes, Sara Claro, Sofia Sousa Rocha, Francisco Fontes, Pedro Lima, Jorge Ramos, João Carlos Pinto, entre outros. A minha função essencial de professor tem sido a de estimular a renovação de gerações na área da Composição.

Parte V · presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros?

PB: Neste momento estou a concluir uma obra para orquestra de sopros e percussão resultante de uma encomenda. Estou também a trabalhar numa peça para coro a quatro vozes e órgão com texto de José Augusto Mourão.

Poderia destacar um dos seus projectos mais recentes, apresentar o contexto da sua criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

PB: No contexto do projecto Transmusica, uma produção transnacional de cinco compositores e dois pianistas, escrevi recentemente Sou já do que fui (2019) para piano a quatro mãos. Os compositores envolvidos para além de mim são Theo Herbst (África do Sul), Michael Walter (Alemanha), Nicolas Jacquot (França) e Riccardo Vaglini (Itália). Os pianistas são o Duo Jost Costa, Yseult Jost (França) e Domingos Costa (Portugal). Esta obra versa o tema unificador da identidade numa perspectiva individual, a identidade do "eu". Sou já do que fui é uma obra autobiográfica uma vez que aborda de forma consciente as sonoridades e traços gerais da minha música ao longo dos últimos anos. Posso destacar a escrita com alterações de métrica constantes e diferenciadas para cada um dos pianistas, o sentido repetitivo e obstinado de alguns momentos, as modulações harmónicas rápidas, e o carácter lírico de alguns instantes e suspensões.

Como vê o futuro da música de arte?

PB: Vejo o futuro da música contemporânea com alguma perplexidade uma vez que cada vez mais, tudo se mistura, tudo se confunde, qualquer gesto mais ou menos musical é entendido como música, está instalado um certo caos no que respeita à arte em geral. Há hoje músicos que vivem centrados em opções conceptuais, que "compõem" sem conhecerem o metier, um verdadeiro desnorte que acaba por dificultar a percepção do público do que é realmente a arte musical na linha da tradição ocidental.

Paulo Bastos, Junho de 2019
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