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Ângela da Ponte


Ângela da Ponte · © Alípio Padilha

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Questionário/ Entrevista

· Descreva as suas raízes familiares, culturais e sonoras/ musicais, destacando um ou vários aspetos essenciais para a definição e a constituição de quem é no tempo presente. ·

Ângela da Ponte: Nasci no seio de uma família sem qualquer ligação profissional às artes, mas desde muito cedo posso dizer que fui influenciada pelo meu pai que sempre estimulou o convívio familiar com canções e improvisos, havendo alguém que tocasse uma guitarra ele lançava-se sempre para cantar.
Enquanto jovem, o meu pai fez parte de muitos projetos culturais da sua vila e passou, naturalmente, esse gosto para mim. Mais tarde era eu que me lançava ao violino para improvisar com ele. A minha avó que sempre viveu connosco também cantava sempre que cozinhava. As minhas primeiras memórias e influências musicais vêm daí.
Depois a entrada no conservatório foi também um passo importante para a definição de um percurso que diria sem retrocesso! Estudei violino completando o ensino secundário de música e durante a minha formação no Conservatório de Ponta Delgada tive uma formação rica, de contacto com diferentes realidades musicais, mesmo havendo condicionantes geográficas que atualmente são esbatidas pela internet. Foi muito importante ter tido professores que foram muito exigentes com o estudo e qualidade musical, e claro, o contacto com a professora Ana Paula Andrade, no secundário, que abriu caminho para o que viria a fazer atualmente.

· No decorrer do seu percurso, quando percebeu que dedicaria a sua atividade criativa e artística à composição? ·

AdP: Dando continuidade à pergunta anterior: ainda estava no Conservatório Regional de Ponta Delgada quando percebi que queria seguir composição. Levava algumas pequenas «invenções» (porque era assim que dizia à minha professora de violino, Shelley Ross) mas não tinha noção do que era a atividade de compositor ou composição profissional.
Foi no secundário que a paixão se consolidou no contacto com a disciplina de ATC. Penso que isso acontece com a maior parte dos alunos dos conservatórios/ academias quando ingressam no ensino secundário. Quando estudam, analisam e exploram a componente criativa vislumbra-se uma possibilidade que andava escondida, a da composição. A partir daí foi o processo natural: ingresso no ensino superior, etc.

· O seu caminho percorre de acordo com um plano, por exemplo sabe que daqui a «x» anos vai cumprir os objetivos «y»? Ou acha que a realidade é demasiado caótica para poder criar tais determinações? ·

AdP: Embora a vida esteja repleta de surpresas, penso ser importante a criação de metas. Se são todas realizadas ou não está fora do meu controle. Mas objetivos são sempre positivos porque nos obrigam a algo muito importante: a disciplina. Sem essa componente talvez não teria conseguido atingir alguns objetivos. Claro que vão acontecendo alguns imprevistos e esses podem também contribuir para novas oportunidades, mas a criação de objetivos é essencial. No fundo devemos ter um plano, mas não sermos demasiado rigorosos para não permitir que alguma surpresa positiva aconteça, como foi o caso de em 2021 criar uma associação com colegas/ amigas, Prolíficas – Associação Compositoras Açores. Não estava a contar com isso, mas neste momento estamos a realizar a 2.ª edição do Festival Prolífica, na ilha de São Miguel! E isso é magnífico pois estamos a construir algo verdadeiramente bonito.

· No tempo presente, quais são as suas preocupações artísticas/ criativas principais? ·

AdP: Nos últimos 10 anos debrucei-me sobre a utilização de elementos da música tradicional portuguesa, e em específico açoriana, num contexto não convencional, isto é, na reinterpretação de elementos tradicionais na música contemporânea utilizando agrupamentos instrumentais diversos incluindo também a componente eletrónica. Embora continue a querer trabalhar sobre essa problemática, principalmente na escrita de mais repertório dedicado à viola da terra num contexto diferente, sou atualmente desafiada a compor para diversos músicos que solicitam interação entre instrumento e eletrónica, como por exemplo o grupo Electroville Jukebox. Gradualmente tenho vindo a focar a minha escrita para a interação entre acústico e eletroacústico, descoberta e exploração de configurações diferentes dos instrumentos no espaço e da sua implicação na composição.

· Em que medida a circulação entre os universos, acústico e eletroacústico, tem vindo a enriquecer a criação musical das últimas décadas? Existe na sua música uma influência mútua entre estas duas práticas? ·

AdP: Tem vindo a enriquecer em várias medidas. No contexto científico e de investigação permitiu compreender mais sobre o comportamento acústico dos instrumentos e no desenvolvimento de novas ferramentas que permitem uma análise detalhada do fenómeno sonoro, assim como num processamento do mesmo que resultará em novos sons de uma qualidade impressionante. No contexto criativo, podemos dizer que muitos compositores, atualmente, quando concebem uma orquestração têm não só o conhecimento da literatura tradicional como também aplicam o conhecimento tecnológico que os permite chegar a outras combinações sonoras com base no universo eletroacústico, como por exemplo uma orquestração auxiliada pelo software Orchidea.
Sem dúvida que a minha música recebe influência entre as duas práticas. Como referi na pergunta anterior, neste momento estou focada em compor música que utilize a componente eletroacústica com a instrumental e naturalmente estes dois mundos influenciam-se para criar um discurso timbricamente justificado.

· Quais são as fontes extramusicais que no seu caso podem servir como ponto de partida, inspiração, ou suporte para a composição musical? ·

AdP: Livros, conceitos por vezes abstratos, mas que ajudam a delinear uma ideia musical, jogo de palavras que explore múltiplos significados (talvez esta última por influência do Miguel Azguime!), ou também por sugestão de quem solicita a obra musical. Por exemplo, o projeto que foi composto para o II Festival Leiria Cidade Criativa, cujo título é “Movement & Illusion”, foi inspirado no M[I]MO (Museu da Imagem em Movimento), pois foi um requisito do festival ter novas peças inspiradas no património arquitectónico da cidade. A peça foi composta à volta desta ideia simples de ilusão de movimento utilizando quase sempre o mesmo acorde, mas em registos e inversões diferentes.

· Em que medida os novos instrumentos eletrónicos e digitais abrem novos caminhos e quando os mesmos se podem tornar constrangedores? ·

AdP: Como tudo, novos instrumentos são apenas ferramentas nas mãos do utilizador. Abrem novos caminhos quando nos predispomos a explorar combinações diversas, por vezes de forma nada lógica, mas cujo resultado é muito interessante. Tornam-se constrangedores quando esses instrumentos são ilimitados. São os limites que nos obrigam a obter as soluções mais interessantes.

· Em que sentido a invenção e a pesquisa constituem para si elementos indissociáveis da criação musical e, em geral, da arte? ·

AdP: A invenção leva à pesquisa e o contrário também. Alimentam-se. Muitos criadores acham que a sua arte não é pesquisa, mas isso não é verdade. Há sempre um elemento de pesquisa, por mais pequeno que seja. Depois temos exemplos extremos e obras artísticas de uma inovação estonteante. Leonardo Da Vinci e Vermeer deixaram-nos incríveis obras de arte e isso deve-se às suas pesquisas pessoais e por as terem aliado à invenção e criação artística. A música nunca é verdadeiramente só música. É ciência, literatura, movimento, cor. Aprendemos muito quando olhamos a partir de outra perspetiva e é na interseção entre áreas que algo novo pode surgir.

· Como escuta a música? É um processo mais racional ou emocional? ·

AdP: Neste momento não consigo separar os dois processos. Talvez por serem « ossos do ofício». Compreender como algo é construído sonicamente para produzir um tipo de reação/ sensação, por mais simples que seja, como por exemplo surpresa, é algo que os compositores procuram sempre.

· Na Entrevista dada ao MIC.PT em 2016 o compositor João Madureira disse que «a música é filosofia, é política, e que, por sua vez, é uma forma de habitar o mundo» 1. Sente proximidade com esta afirmação? ·

AdP: Tal como respondi anteriormente, a música nunca é fechada em si. É de facto uma forma de habitar o mundo. Por mais que queiramos dizer que o «nosso trabalho não é político» ou «não é filosófico» será impossível pois demonstrará sempre um posicionamento.

· Existe na sua atividade a oposição entre «a profissão» e «a vocação»? ·

AdP: Não! Tenho a felicidade de exercer a minha vocação.

· Prefere trabalhar isolada na «tranquilidade do campo» ou no meio do «alvoroço urbano»? ·

AdP: Eu gosto muito de viver na cidade do Porto, pois tenho acesso imediato a um leque cultural e gastronómico diverso, mas mesmo sendo um centro urbano gosto de trabalhar isolada e no silêncio. Vivo numa parte da cidade que, para já, é tranquila.

· Selecione e destaque três obras do seu catálogo e justifique a sua escolha. ·

AdP: Vou escolher três peças de períodos diferentes, mas que demarcam situações importantes no meu percurso e desenvolvimento enquanto compositora: “Sketches”, para viola da terra e ensemble, escrita em 2015 durante o doutoramento, “We can’t breathe”, para flauta e eletrónica, escrita em 2021 e “Echoes from a near future”, para quarteto de saxofones e eletrónica, escrita em 2022.
Em “Sketches”, para além de aprender a conciliar a tradição com o atual, compreendi outras formas de orquestrar e consolidei aspetos estéticos que há muito procurava. Sempre gostei de uma sonoridade delicada e subtil, mas ao mesmo tempo zonas contrastantes de muita intensidade e ruído. Equilibrar estes dois aspetos tem sido o meu foco nos últimos tempos.
Em “We can´t breathe” continuei esses aspetos, mas num contexto de música mista.
Por último, a obra “Echoes from a near future” para o Sigma Project Quartet (quarteto de saxofones espanhol que estreou a peça em maio de 2023 no O’culto da Ajuda durante o Festival Música Viva) foi o culminar desta procura, tendo sido uma obra que ganhou o concurso Ibermúsicas na categoria «Composição e Estreia de Obra».

· Poderia revelar em que está a trabalhar neste momento e quais são os seus projetos artísticos planeados para 2024?·

AdP: Para o ano de 2024 estarei em residência artística em dois momentos: em janeiro num projeto intitulado “9 Aldeias. Um Povo”, promovido pela Banda Filarmónica de Loivos, a convite do seu maestro Luciano Pereira. É um projeto que ganhou candidatura da DgArtes e cujo intuito é dinamizar a Banda Musical de Loivos e aldeias da região transmontana. Irei visitar uma aldeia e trabalhar com a comunidade residente e daí inspirar-me nas suas tradições para compor para a Banda Musical de Loivos com um coro comunitário.
Em fevereiro estarei em residência artística no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas e esta constará na criação de uma instalação sonora que explorará o conceito de força magnética através da interação com o espaço e alguns objetos que estarão dispersos nesse mesmo espaço. A residência, intitulada “Magnetic Fields”, facilitará a procura de uma entidade sonora orgânica, também ela modificadora da paisagem.

· Se não tivesse seguido o caminho de compositora, quais poderiam ser os caminhos alternativos?·

AdP: A música sempre foi o caminho mais forte e sólido durante os meus estudos. Mas se por alguma razão não pudesse ter seguido a via da música teria feito artes plásticas ou design. Esse mundo também me fascina e talvez subconscientemente, molde a minha criação musical.

· Numa das entrevistas de 2020 o compositor Georg Friedrich Haas disse que «os criadores da nova arte agem como fermento na sociedade» 2. Qual é, na sua opinião, o papel que a música de arte desempenha na sociedade e como é possível aumentar a importância e o impacto deste papel?·

AdP: A arte parece não ter qualquer importância imediata pois lida com aspetos abstratos, e é difícil uma atribuição de valor real. Vivemos numa sociedade que cada vez mais quer saber do valor económico de um objeto ou do impacto económico de algo. Tudo tem de ser rápido e com fórmula certa, sem haver muito espaço para a reflexão e para a experimentação. Mas são de facto as pessoas que contrariam essa tendência que encontram algo especial e que tendo a oportunidade para se expor modificam o curso da história. O seu trabalho pode apenas sugerir uma alternativa à atual realidade. O que Haas refere de facto é verdade, encontramos na arte o que muitas vezes não conseguimos de uma forma direta na vida – liberdade.
Só vejo o aumento da sua importância através da educação e de uma maior visibilidade pelos meios de comunicação (jornais, rádio e televisão). Esta resposta liga-se com a afirmação anterior do compositor João Madureira sobre postura e habitar o mundo. Não é possível dizermos que queremos uma sociedade inclusiva e equilibrada quando depois se dá uma maior importância a uma área em detrimento da outra. Retiramos investimento na educação e em áreas que pensamos que não servirão para nada no futuro. Mas é na arte e na sua conexão com as outras áreas que coisas novas se constroem.

Ângela da Ponte, novembro-dezembro de 2023
© MIC.PT

NOTAS DE RODAPÉ

1 Entrevista a João Madureira conduzida pelo MIC.PT em outubro de 2016 e disponível em: LIGAÇÃO.
2 Entrevista a Georg Friedrich Haas conduzida por Filip Lech em junho de 2020 e disponível no portal Culture.pl: LIGAÇÃO.


Ângela da Ponte · Entrevista Na 1.ª Pessoa

 
Entrevista com Ângela da Ponte conduzida por Pedro Boléo
gravação do O’culto da Ajuda em Lisboa (2021.05.01)
 

Ângela da Ponte · Playlist

   
Ângela da Ponte · Interaction (2021)
Pedro Figueiredo (maestro) · New Babylon Ensemble + Vertixe Sonora
Gravação: Sendesaal, Bremen, Alemanha · 29 de agosto de 2021
  Ângela da Ponte · We can’t breathe (2021)
Clara Saleiro (flauta)
Gravação: Festival Música Viva 2022, O’culto da Ajuda, Lisboa · 24 de novembro de 2022
 
   
Ângela da Ponte · Paradox (2017)
Smirnov Quartet
Gravação: Harmos Festival 2017, Porto
  Ângela da Ponte · Kras en Momentum (2011)
Pedro Neves (maestro), Remix Ensemble Casa da Música
28 de janeiro de 2021
 
· Ângela da Ponte · “Ao Desconcerto do Mundo” (2014) · Pedro Neves (maestro), Sond’Ar-te Electric Ensemble · “Diz-Concerto” [Miso Records] ·
· Ângela da Ponte · “Cinq Étapes Sur Une Ligne I” (2014) · Koen Kessels (maestro), Hermes Ensemble · gravação: Universidade de Birmingham (Reino Unido) ·
· Ângela da Ponte · “Ensaios Sobre Cantos IV” (2019) · Tiago Manuel Soares (adufe) · edição de autor · LIGAÇÃO ·
· Ângela da Ponte · “Sem pedras não há arco” (2019) · José Eduardo Gomes (maestro), Jovem Orquestra de Famalicão · gravação do concerto ao vivo pela Antena 2 a 3 de setembro de 2022 ·
· Ângela da Ponte · “Uma Curva Francesa decide atravessar o Alentejo às escuras” (2020) · música eletroacústica · edição de autor ·
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