Em foco

António Pinho Vargas


Acho que a sorte é um elemento fulcral da actividade artística... É preciso ter sorte, partindo do princípio que existe talento ou qualidade nos compositores.[1]

Prefácio

Vários universos aparentemente distintos encontram-se na obra e na personalidade de António Pinho Vargas – o do jazz em que é compositor, instrumentista e improvisador e também o da música erudita contemporânea em que é apenas compositor. Esta variedade marcou profundamente o seu percurso artístico e, sem dúvida, constitui a base da sua originalidade no mundo musical português. Por um lado é possível ouvi-lo tocar e improvisar no piano, seja as suas composições originais seja as músicas tradicionais portuguesas, por outro, as suas peças “eruditas” são tocadas na Casa da Música, na Fundação Gulbenkian ou no Centro Cultural de Belém. Como é que estes dois universos se relacionam na obra e na actividade musical de António Pinho Vargas?

Parte biográfica

António Pinho Vargas nasceu em Vila Nova de Gaia (1951) numa família na qual todas as mulheres estudavam música. “Eu nasci numa família que tinha uma avó que tocava piano. Havia as minhas tias, as duas irmãs do meu pai, que estudavam piano. (...). E a minha irmã, mais velha do que eu 10 anos, e uma prima da idade dela também tinha tocado. Portanto eram todas mulheres”[2], recorda o compositor. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras do Porto. Completou o Curso Superior de Piano no Conservatório do Porto e diplomou-se em Composição no Conservatório de Roterdão (1990) onde estudou três anos com o compositor Klaas de Vries, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Frequentou cursos de Emmanuel Nunes, John Cage e Louis Andriessen e seminários de composição com György Ligeti na Hungria (1991) e Franco Donatoni em Itália (1992). “Wolfgang Rihm diz: «Quando começo uma peça, não sei quanto tempo vai demorar, em quantas partes se vai dividir, se a meio vai aparecer uma música que à partida não estava prevista, etc...» Ele, por assim falar, proclama como ponto de partida uma espontaneidade associada ao acto criativo, o que estava nos antípodas do ensino que eu tinha recebido anteriormente – em que, pelo contrário, se dizia que antes de começar a peça já estava tudo fortemente estruturado. Portanto, o papel da Holanda foi fundamentalmente o papel de um ensino e de uma vivência... Isto porque quando fui para lá, já tinha 36 anos – não tinha tempo a perder e tinha consciência disso.”[3] Em 1995 António Pinho Vargas foi condecorado pelo Presidente da República Portuguesa, Jorge Sampaio, com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique, e em 1998 recebeu a Medalha de Mérito Cultural da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. Desempenhou as funções de consultor na Fundação de Serralves (1994-2000) e no Centro Cultural de Belém (1996-1999), sendo também membro fundador da direcção artística da OrchestrUtopica. Actualmente é professor de Composição na Escola Superior de Música de Lisboa, onde já trabalhou entre 1991 e 2005. Em 2011 António Pinho Vargas terminou a sua tese de doutoramento, “Música e Poder: Para uma sociologia da ausência da música portuguesa no contexto europeu”, na Universidade de Coimbra sob a orientação de Prof. Boaventura de Sousa Santos (C.E.S. da Universidade de Coimbra) e de Prof. Max Paddison (Universidade de Durham). A tese, publicada e editada pela Almedina, foi lançada nas livrarias, em Portugal, em Abril deste ano. Neste livro extenso o compositor realiza uma análise musicológica e sociológica da invisibilidade da música portuguesa tanto no contexto europeu como nas salas de concerto do próprio país. “A ausência existe porque defronta um dispositivo de poder que não quer deixar de o ser, que nem sequer se vê a si próprio como poder. Vê-se como natural, como produto da relevância adquirida pelas práticas anteriores, relevância verdadeiramente construída ao longo do séculos XIX e XX e nunca questionada, nunca problematizada, traduzida e alicerçada numa visão universalista do campo musical erudito.”[4] Nas páginas da sua nova publicação António Pinho Vargas aponta para dois factores decisivos na criação de uma imagem de ausência da música portuguesa erudita – por um lado a supremacia do cânone musical dos países centrais, por outro, a incapacidade de instalar uma política cultural coerente dentro de Portugal. Mesmo assim o compositor vê também as mudanças positivas que a partir dos anos noventa estão a decorrer no universo musical português. “No que respeita à situação geral e à subalternidade interna dos compositores é possível detectar uma mudança importante após meados dos anos 1990. Com os grandes eventos e as novas instituições culturais verificou-se um aumento da diversidade estilística e um aumento da procura de novas obras por parte das várias instituições. Existe hoje internamente uma quantidade muito superior de encomendas anuais, uma diversidade estilística e estética incomensurável se comparada com o período anterior, dirigida (…) para (…) as novas tendências emergentes no contexto dos debates e das práticas artísticas pós-modernas no campo musical.”[5] António Pinho Vargas, desde sempre ligado fortemente ao jazz, durante vários anos gravou sete discos com dezenas de composições originais. Compõe também música para cinema e para teatro. A partir da sua estadia nos Países Baixos, tem-se dedicado principalmente à composição erudita. Recebeu encomendas de diversas instituições e organismos, tendo a sua música sido interpretada nos mais conceituados festivais nacionais e internacionais. Em Fevereiro e Março de 2002, a Culturgest dedicou-lhe um festival, onde foi executada a maior parte da sua obra. A 1 de Outubro a Orquestra Sinfónica da Casa da Música sob a direcção de Christopher Konig estreou a sua peça mais recente, “Onze Cartas” para orquestra sinfónica, electrónica e três narradores pré-gravados. Nesta obra, que é uma encomenda tripla da Casa da Música, do Centro Cultural de Belém e do Teatro Nacional de São Carlos, o compositor utilizou textos de Ítalo Calvino, Jorge Luís Borges e Bernardo Soares. A primeira audição em Lisboa vai decorrer a 19 de Novembro no Teatro Nacional de São Carlos.

Entre o jazz e a música erudita

A estética e a técnica são uma e a mesma coisa. Ou seja, não há nenhuma técnica separada de uma ideia estética, mas às vezes há que tentar separar colagens artificiais entre uma coisa e outra.[6]

António Pinho Vargas, nome artístico usado a partir de 1980, assume várias influências na sua linguagem musical que se “estende desde um atonalismo inequívoco até passagens neotonais”[7] . Este facto, certamente, tem a ver com a sua experiência enquanto músico de jazz que, por definição, se interessa por tipologias musicais diferentes. “Ao contrário da maioria dos músicos que trabalham no âmbito da música erudita e do jazz, António Pinho Vargas manteve sempre uma clara linha de separação entre os dois mundos [jazz e música erudita] (...)“[8] , sublinha António Curvelo no artigo dedicado ao compositor na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX. A actividade jazzística de António Pinho Vargas é marcada tanto pela sua participação, enquanto pianista, em formações musicais diferentes que se estendem de jazz-rock e funky até free-jazz, como pela extensiva investigação na área da história do jazz. Admirador do estilo de pianistas como Keith Jarret, Chick Corea e Paul Bley tornou-se numa das figuras mais importantes e originais neste domínio em Portugal. Contudo a fase de jazz terminou em 1996, quando António Pinho Vargas se dedicou principalmente à composição erudita. Após vários anos sem dar concertos tem regressado recentemente em concertos de piano solo, a propósito de dois discos, “Solo” (2008) e “Solo II” (2009), com 36 das suas músicas do período entre 1976 e 1996. Este ano foi ainda lançado um outro CD, “Improvisações”, gravação ao vivo de um concerto de improvisação total realizado em 2009 no Instituto Superior Técnico. O repertório para piano solo caracteriza-se pela procura de uma sonoridade própria e inclui composições originais, mas também improvisações com motivos da autoria de outros músicos. Além disso, António Pinho Vargas recorre frequentemente à música tradicional portuguesa que inclui na sua criação “através da exploração e/ou adaptação de melodias e ritmos populares (cantares alentejanos, percussões dos mareantes do rio Douro, etc.).”[9] Mesmo que António Pinho Vargas tencione manter a separação entre o jazz e a música erudita, a influência entre estes dois mundos é inquestionável. Foi através do jazz que, em meados dos anos setenta, descobriu a música erudita do século XX, visto que a sonoridade deste género se aproximava por vezes de compositores como Pierre Boulez ou Karlheinz Stockhausen. “Na altura aquilo para mim era uma espécie de nebulosa na qual eu me orientava com alguma dificuldade. Mas percebia certos parentescos, e como de facto tentava improvisar, às vezes «à maneira» do Cecil Taylor, ou seja, com extrema violência, com clusters, com cromatismo permanente, percebi que aquela música tinha alguma coisa a ver com isso.”[10] A experiência jazzística, que exige a sua participação activa em concertos, seja em formações seja como solista improvisador, influenciou também a sua maneira de compor, de abordar a partitura. “Devo dizer que, agora, numa perspectiva individual, acho que o facto de ter subido aos palcos muitas vezes para tocar música improvisada (...) permitiu-me ter uma visão da música como coisa que se faz, que é feita naquele momento em que se está no palco (...). Passei a encarar o acto de tocar como sendo ele próprio criativo em si. E, por isso, o que existe hoje na minha vida como resultado directo desses longos anos de experiência disso é uma espécie de pouca confiança na partitura.”[11] Na sua postura estética enquanto compositor, António Pinho Vargas distanciou-se dos paradigmas do modernismo assumindo uma atitude contra os sistemas, de liberdade em relação à criação e recorrendo ao uso de várias técnicas que marcam a história da música e composição do século XX. A defesa da “historicidade” dos “objectos musicais” levou-o a dar mais importância ao próprio discurso musical do que ao vocabulário ou material usado, valorizando, desta forma, a opcionalidade do seu uso – tudo depende do efeito expressivo que se pretende atingir. Esta atitude crítica e reflexiva em relação à música e ao acto de compor reflecte-se também na sua obra teórica, acima de tudo a partir da segunda metade dos anos 80. “...a História existe, e está presente no seu todo. A História inclui o John Cage, inclui o Pierre Boulez e o Stockhausen, mas, de facto, também inclui o Bartók e o Debussy, inclui tudo! (...) Eu acho que estes objectos [musicais] existem, hoje em dia. E podem ser utilizados. A questão coloca-se noutro parâmetro que é a qualidade do discurso e não a qualidade dos objectos que o constituem. Não são os objectos em si que garantem a qualidade de uma peça. Não há material musical politicamente correcto que assegure a qualidade de uma peça”[12] , enfatiza António Pinho Vargas. Hoje em dia na sua actividade musical coexistem dois universos – o da composição e o da improvisação, cujo renascimento temos experienciado recentemente com o seu reaparecimento nos palcos em concertos para piano solo. A atitude pós-moderna perante a composição de não valorizar a música em termos da sua proveniência, resulta, de facto, da totalidade do percurso artístico de António Pinho Vargas – compositor, músico, instrumentista e jazzman. Isto implica que estes universos, na verdade, não tenham uma relação de contrariedade, mas de uma influência mútua que por um lado pode dar origem a novos valores artísticos e por outro comprova a diversidade da sua obra.

António Pinho Vargas no YouTube

PIANO SOLO – JAZZ / IMPROVISAÇÃO “Tom Waits”” (1988/1991) “Dança dos pássaros” “Fado negro” COMPOSITOR “Três fragmentos”(1985 | 1988) António Saiote, clarinete “Três quadros para almada” (1994) Rapariga Preparando-se para o Primeiro Baile Operário Observando a Máquina Avariada Velhote Bebendo um Copo de Vinho Depois de um Sonho Katherine Randow, flauta
 Rui Martins, clarinete
 Manuel Jerónimo, clarinete baixo e clarinete
 Carolino Carreira, fagote e contrafagote
 Stephen Mason, trompete Paulo Guerreiro, trompa
 Emídio Coutinho, trombone
 Inês Barata, violino Miguel Ivo Cruz, violoncelo
 Luís Machado Pinto, piano
 Christopher Bochmann, maestro “Quatro ou cinco movimentos fugidos de água” (2001) “Os dias levantados” (1996) Solistas: Ana Paula Russo, Ana Ester Neves, Carlos Guilherme, Elvira Ferreira, Luís Rodrigues, Manuel Braz da Costa, Paulo Ferreira

 Coro do Teatro Nacioal de São Carlos
 Orquestra Sinfónica Portuguesa de São Carlos
 Direcção: João Paulo Santos “A impaciência de Mahler” (1999) Orquestra Sinfónica do Porto Direcção: Martin André “Graffiti [just forms]“ (2006) Orquestra Sinfónica do Porto Direcção: Baldur Bronnimann 1 - Entrevista a António Pinho Vargas conduzida por Teresa Cascudo; transcrição, redacção, revisão: Ivan Moody, João Carlos Callixto; www.mic.pt, 2003 2 - Entrevista a António Pinho Vargas em: Sérgio Azevedo, "A Invenção dos Sons. Uma Panorâmica da Composição em Portugal Hoje", Editorial Caminho, Lisboa 1998, p. 271 3 - Entrevista a António Pinho Vargas conduzida por Teresa Cascudo, op. cit. 4 - António Pinho Vargas, “Música e poder: para uma sociologia da ausência da música portuguesa na contexto europeu”, Coimbra 2010, p. 501 5 - António Pinho Vargas, op. cit., p. 505 6 - Entrevista a António Pinho Vargas conduzida por Teresa Cascudo, op. cit. 7 - Christopher Bochmann, “António Pinho Vargas”, Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, direcção Salwa Castelo-Branco, Lisboa 2010, p. 1310 8 - António Curvelo, ibidem, p. 1311 9 - António Curvelo, op. cit., p. 1310 10 - Entrevista a António Pinho Vargas em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 272 11 - Entrevista a António Pinho Vargas conduzida por Teresa Cascudo; transcrição, redacção, revisão: Ivan Moody, João Carlos Callixto; www.mic.pt, 2003 12 - Entrevista a António Pinho Vargas em: Sérgio Azevedo, op. cit., p. 284

 

 

 

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