A obra é dedicada aos músicos que formam o Grupo SÍNTESE e à cidade da Guarda.
SALMODIA-da noite e da montanha
O primeiro de DOIS EXCERTOS DE ODES (Fins de duas odes, naturalmente) Fernando Pessoa
Apresentação
Esta obra resulta de uma encomenda do
Grupo de Música Contemporânea, SÍNTESE situado na cidade da Guarda para a seguinte formação instrumental: soprano, saxofone (soprano e contralto), viola de arco, violoncelo e acordeão. A obra terá sua estreia em 2 de Fevereiro de 2018 no Teatro Municipal da Guarda.
A obra é dedicada aos músicos que formam o Grupo SÍNTESE e à cidade da Guarda.
Porto, 27 de Setembro de 2017
Cândido Lima
Nota breve sobre a obra
Há muitos anos que tinha vontade de encontrar, em mim, música para este rio poético de uma beleza rara, como tudo é de uma beleza rara em Fernando Pessoa. No próprio livro de Maria Aliete Galhoz, que foi minha companhia durante a guerra colonial, na Guiné, encontrei, com surpresa, no poema, indicações para uma futura obra: ali, naquela margem, encontrei, a lápis, a indicação de “coro”, acolá, noutra margem, a indicação, a lápis, de “harmónio”. Eram sonoridades que, como se verá mais adiante, irão ser concretizadas nesta partitura.
A encomenda feita por este Grupo Instrumental deu o sinal para uma possível materialização daquela ideia antiga. A par desse poema, porém, considerei a possibilidade de por em música poemas próximos dos locais de origem daqueles músicos. Assim, antes de me decidir pelo poema de Fernando Pessoa, procedi a pesquisas sobre a cultura, a música, a literatura, a poesia, a natureza e os ambientes da região: da revisitação Augusto Gil, beirão ilustre da mítica “Balada de neve” (que integra as Canções da Juventude que compus na Guiné), da sua poesia bucólica e amorosa à sua poesia marcada pela poesia greco-latina e poesia clássica portuguesa, presente em obras de outra índole (como o mostram estudos da investigadora Maria Helena da Rocha Pereira).
A investigação alargou-se, e deste mundo poético dos livros fui até ao mundo poético das atmosferas da região, imaginadas apenas como viajante efémero. Como tela envolvente destas paisagens, eis o magnífico salmo do tempo e do espaço de Fernando Pessoa,
DOIS EXCERTOS DE ODES (Fins de duas odes, naturalmente), sendo mote condutor da obra os sons ao longe inscritos no primeiro verso:
Vem, noite longínqua e idêntica.
Para tudo exprimir de forma memorável e identificável , embora invisível para o comum dos indivíduos, encontrei na estruturação dos códigos da escala musical, bem como na tradição musical beirã, materiais que permitiram a minha integração nesse mundo da serra, inóspito para mim. Assim, as letras do vocábulo “Guarda—“g-a-d-a”, correspondentes, na notação anglo-saxónica, às notas sol-lá-ré-lá—são a base harmónica e salmódica da obra, associando-lhes, como mundos secretos, blocos retirados de melodias de tradição popular beirã. Integra ainda esta estrutura a letra “f”, que simboliza as cinco grandes características com que os habitantes da região costumam condensar, como síntese, esses arquétipos que marcam profundamente a identidade de uma região, como a “terra dos cinco F”: “forte, farta, fria, fiel e formosa”, letra “f” que corresponde à nota “fá” da escala musical: g-a-d-a-f, ou seja, sol-lá-ré-lá-fá(fáx5). A partitura está também organizada em tempo de 5 em 5 segundos.
O desejo de escrever uma obra de ressonâncias ecológicas, de espacializações estereofónicas, no sentido próprio e figurado da expressão, neste caso de ressonâncias de vales e montanhas, de árvores e penedias, de ventos e águas (irmãs das ressonâncias das minhas origens minhotas), levou-me a criar esse
continuum de som e de palavra, num ímpeto irresistível de projecção sonora de vozes e de instrumentos, como se meios electroacústicos os espalhassem do cimo da montanha através dos sons de vales, campos e montes e águas como longas e férteis polifonias aquáticas subterrâneas.
Tudo isto é expresso por uma pequena formação vocal e instrumental, proposta pelos anfitriões da obra, constituída por soprano, saxofone contralto (saxofone soprano também), viola de arco, violoncelo e acordeão. Um grupo tão heterogéneo de fontes sonoras foi uma boa motivação para alianças de culturas: da função clássica do soprano aos papéis orquestrais da viola e do violoncelo, do saxofone e seus espaços tradicionais ao mundo popular e religioso de um improvável acordeão (que o compositor ouve e dedilha desde a infância nas sonoridades de harmónios e de órgãos, electrónicos ou de catedrais). Tudo é transfigurado por metáforas vindas de mundos reais, por metáforas de volta a esses mundos reais imaginados pelos poetas. Os quatro instrumentistas ampliam os sentidos da partitura, dizendo, também eles, como um pequeno coro secreto, passagens do poema: um esboço do “coro” lembrado nas anotações antigas. A abstracção virtuosística instrumental dá lugar ao mundo expressivo idiomático de cada voz (incluindo a voz humana) ao serviço do fluxo poético-musical.
É esta a mensagem que a partitura deixa aos músicos que deram origem à obra, é esta homenagem que a partitura dedica aos povos que vivem nesta terra de neve e de montanha. Assim costumo fazer com as músicas que escrevo, atraído pelas regiões que as provocam e as acolhem, deixando-me envolver e absorver pelas forças ligadas às terras, numa procura de fusões mágicas de sons e de palavras como símbolos de novas e antigas antropologias, de novas e antigas etnomusicologias, de novos afectos e de novos lugares encontrados.
22 e 23 de Agosto de 2017
Cândido Lima