“Convidado para escrever uma obra para marimba e eletrónica nas vésperas de introduzir, na Casa das Artes, no Porto, ao longo do ano, a série das 10 sonatas para violino e piano de Beethoven, pelo Duo italiano Tramma-Fachini, logo me ocorreu a ideia de evocar o grande compositor através de um desafio improvável: inundar a marimba e a eletrónica de gestos, ao mesmo tempo de homenagem e de iconoclastia dirigidos à sua obra. Tais gestos viriam, de memória, do mundo sinfónico e do mundo concertístico, da música de piano e da música de câmara, da expressão lírica e da expressão dramática, do jogo quase infantil de páginas ditas menores e do jogo virtuosístico das grandes obras. As sonoridades da Bagatela para marimba e eletrónica escondem, no interior de uma espécie de “orquestra africana subsariana”, um mundo que é próprio e contrário ao mesmo tempo, vestígios de um pensamento arquitetónico do compositor gramaticalmente longínquo no tempo e no espaço. Nos antípodas de um instrumento vocacionado, na sua origem e na sua natureza, para o ritmo e para a música diatónica e modal, estas páginas submergem o universo visceralmente tonal do compositor, cume olímpico de séculos de evolução na música europeia e ocidental. A eletrónica, vinda da própria partitura transfigurada, acentua esse jogo de contrastes. Os interditos, juntos ao tributo e à paródia ocultos, os equívocos de linguagem, o confronto cultural do sistema tonal ocidental e as tonalidades e processos da África Austral da marimba e instrumentos de percussão, foram terreno de divertimento sobre o pensamento musical e memória do compositor este ano mundialmente celebrado. Os contrários entre fontes sonoras e entre paradigmas de escuta dos públicos de concertos clássicos, o confronto e a conciliação de estruturas elementares da música tonal e da música modal de tradições milenares, eis o desafio proposto por esta Bagatela, despretensiosa obra de uma memória que ficou das luminosas bagatelas para piano deste génio maior da história da música, míticas páginas, algumas delas, nas memórias do melómano anónimo e também das minhas memórias do piano da adolescência. Nestas páginas, postulados seguidos e transgredidos por dois compositores um, gigante da música ocidental outro, discípulo e idólatra, divulgador e servidor ao longo do tempo.
Homenagem a Viseu e ao Diretor do Festival Internacional de Música da Primavera de Viseu, Professor
José Carlos Sousa, esta obra, que será estreada em 8 de Abril de 2020, no Teatro Viriato pelo percussionista Aldovino Munguambe, pode ser ainda uma lembrança para os meus antigos alunos de harmonia, contraponto, sonata e orquestração (programas antigos dos conservatórios), aos quais transmiti tudo ao contrário do que escrevi nesta espécie de “divertimento”, na verdade uma simples
BAGATELA para marimba e eletrónica – 1770-2020-Beethoven!
A realização eletrónica tem a colaboração técnica da compositora
Ângela Lopes.”
Cândido Lima