É uma memória de vozes, tempos e lugares olhando as ninfas do Tejo nas cordas de duas guitarras, diria um poeta de bairros alfacinhas. Memórias pessoais de travessias do rio, do Terreiro do Paço a Cacilhas, ida e volta, em tempos de juventude, vindo das lides estudantis e do Coro Gulbenkian para o quartel alentejano de Estremoz, em tempo de serviço militar obrigatório. Tejo que me vê, pouco depois, partir e regressar em tempo de guerra colonial, esta obra é mais uma ocasião para sublimar, por música, emoções de juventude vividas por um compositor que enfrentou, com a sua arte de pensar, os senhores da guerra e os senhores das águas.
De Camões, “Tágides minhas” (de Os Lusíadas), olhando “mulheres no cais”. ressoam-me como memórias de fados e rezas de familiares vindos do longínquo e “ignoto Minho” (in Os Lusíadas). Lendas do rio que me lembram o meu pai e o meu irmão marinheiro, que atravessavam, durante anos, até ao Alfeite, o rio Tejo, e que das suas águas partiram para mares de África (Guiné e Cabo Verde) e das Américas (Brasil). Estes sons são um cântico às memórias de sangue e de júbilo, de partida e de regresso, através de um CORO em forma de guitarra. Estas harmonias são uma homenagem a vidas e a emoções de mulheres à espera de novas dos “meninos de sua mãe”. Do cais desse rio de Ulisses milhares de mulheres de Portugal, vindas de longes terras, acenavam a milhares de soldados no cais da Rocha do Conde de Óbidos em adeuses de regresso incerto.
O espírito da obra envolve-se serenamente com o espírito das águas, reflectindo não o drama mas o canto silencioso da superação e da sublimação da mulher e do ser humano em geral. A obsessiva lengalenga como um
leit-motif de cantos da terra papua, coexiste com harmonia e o ritmo de outras latitudes e de alguns sinais abertos de contemporaneidade à luz das paisagens aquáticas como alegoria de mulheres no cais acenando com lenços brancos à partida, abraçando com euforia desmedida à chegada, um Festival no cais do Tejo, o regresso.
Na última secção da obra é evocado, numa das guitarras, o instrumento
kora (tocado por fulas e outras etnias da Guiné e da África subsariana), em que a afinação natural da guitarra clássica é modificada (
scordatura), e assim a sonoridade reporta-nos a atmosferas exóticas africanas como momentos da obra nos reportam para imagens sonoras longínquas.
Mulheres lisboetas de origens minhotas, familiares do compositor, estiveram também no cais na minha partida para África. Não as vi. Chamaram-me e não as ouvi (não afectaram, por sorte, o pacto de silêncio que me impus quando, no quartel de Estremoz, um militar leu o meu nome entre os mobilizados de guerra). Da presença desses familiares soube-o, fortuitamente, cinquenta anos depois. Era tabu falar-se em família dessa experiência dramática africana. E nem na minha vida profissional, docente e artística, tal experiência foi abordada (irrelevante, esta aventura, perante o meio de que me rodeava...) senão nos últimos anos em contextos de entrevistas dos meios de comunicação. Também a essas duas mulheres (três, mais uma anciã, não de família) e às mulheres de família, aos tangedores de guitarra e de bandolins de família, estas memórias marcantes de vidas diversas evocadas nestes sons míticos de instrumentos míticos de duas guitarras de um CORO – mulheres no cais.
Cândido Lima, março de 2023