Solista(s) e Orq./Ens. e/ou Coro/Conjunto Vocal
com electroacústica sobre suporte
Instrumentação Sintética
1994
70' 00"
solistas, coro, orquestra e electroacústica sobre suporte
solistas, coro, orquestra e electroacústica sobre suporte
Título do documento Requiem
Data de Composição 1993 · 1994
Andamentos / Partes
01 - Introitus
02 - Kyrie
03 - Sequentia
04 - Sanctus
05 - Lux Æterna
06 - Libera Me
07 - Ego Sum Resurrectio
Instrumentação Detalhada
Categoria Musical Solista(s) e Orq./Ens. e/ou Coro/Conjunto Vocal
com electroacústica sobre suporte
Instrumentação Sintética solistas, coro, orquestra e electroacústica sobre suporte
Estreia
Data 1994
Intérpretes
Álvaro Salazar (direcção)
Entidade/Evento Lisboa '94
Local Centro Cultural de Belém
Localidade Lisboa
País Portugal
Texto
Título do Poema ou Texto [Textos Litúrgicos]
Letra I - Introitus
Requiem æternam dona eis, Domine:
et lux perpetua luceat eis.
Te decet hymnus, Deus, in Síon,
et tibi reddetur votum in Jerusalem:
exaudi orationem meam, ad te omnis caro veniet.
Requiem æternam dona eis, Domine:
et lux perpetua luceat eis.
II - Kyrie
Kyrie, eleison.
Christe, eleison.
Kyrie, eleison.
III - Sequentia
Egerthestai-gar ethnos epi ethnos kai basileia epi basileian kai esontai seismoi kata-topoos, kai esontai limoi kai tarakhai arkhai odinon taoota.
Kai oi asteres too ooranoo esontai ekpiptontes kai ai doonameis ai en tois ooranois saleoothesontai.
Erunt signa in sole et luna, et stellis, et in terra pressura gentium prae confusione sonitus maris, et fluctuum, acrescentibus hominibus prae timore et expectatione, quae supervenient universo orbi, nam virtutes caelorum movebuntur.
Et tunc videbunt Filium hominis venientem in nube cum potestate magna, et majestate. His autem fieri incipientibus, respicite, et levate capita vestra quoniam appropinquat redemptio vestra.
Libera me, Domine.
Salva me.
Voca me.
Salva me, fons pietatis.
Salva me, Domine Jesu Christe.
Ne me perdas illa die.
Libera me.
Voca me cum benedictis.
Lacrimosa dies illa, qua resurget ex favilla.
Judicandus homo reus: Huic ergo parce, Deus.
IV - Sanctus
Sanctus, Sanctus, Sanctus Dominus Deus Sabaoth.
Pleni sunt cæli et terra gloria tua.
Hosanna in excelsis.
Benedictus qui venit in nomine Domini.
kadosh kadosh kadosh ´adonay seba´oth
melo´ col ha´ares kebôdô
Hagios hagios hagios
Kyrios o Theos o pantokraton
o en kai o on kai o erkomenos.
V - Lux Æterna
Lux æterna luceat eis, Domine:
Cum sanctis tuis in æternum, quia pius es.
Requiem æternam dona eis, Domine,
et lux perpetua luceat eis.
VI - Libera Me
Libera me, Domine, de morte æterna, in die illa tremenda:
Quando cæli movendi sunt et terra:
Dum veneris judicare sæculum per ignem.
De profundis clamavi ad te, Domine:
Domine exaudi vocem meam.
Fiant aures tuæ intendentes in vocem deprecationis meæ.
Tremens factus sum ego, et timeo, dum discussio venerit, atque ventura ira.
Sustinuit anima mea in verbo ejus: speravit anima mea in Domino.
Speret Israel in Domino.
Et ipse redimet Israel, ex omnibus iniquitatibus ejus.
Dies iræ, calamitatis et miseriæ, dies magna et amara valde.
Libera me, Domine.
VII - Ego Sum Resurrectio
Ego sum resurrectio et vita:
qui credit in me, etiam si mortuus fuerit, vivet:
et omnis qui vivit et credit in me,
non morietur in æternum.
Salpisei-gar kai oi nekroi egerthesontai aphthartoi kai emeis allageso-metha.
Kainoos de ooranoos kai gen kainen kata to epaggelma autoo prosdokomen, en ois dikaiosoone katoikei.
Nai, erkhoo Koorie Iesoo.
Tradução do Texto do Requiem
I - Introitus
Dá-lhes o descanso eterno, Senhor:
e que a luz perpétua os ilumine.
Ó Deus, apraz-te um hino em Sião
e, em Jerusalem, é-te dirigida uma prece:
escuta esta minha oração, enquanto todos vêm até Ti.
Dá-lhes o descanso eterno, Senhor:
e que a luz perpétua os ilumine.
II - Kyrie
Senhor, tem misericórdia de nós.
Cristo, tem misericórdia de nós.
Senhor, tem misericórdia de nós.
III - Sequentia
Porque se levantará nação contra nação e reino contra reino, e haverá terremotos em diversos lugares, e haverá fomes. Isto será o princípio das dores.
(Marcos 13: 8)
As estrelas cairão do céu, e as forças que estão nos céus serão abaladas.
(Marcos 13: 24)
Haverá sinais no sol e na lua e nas estrelas; e na terra angústia das nações, em perplexidade pelo bramido do mar e das ondas; homens desmaiando de terror, na expectação das coisas que sobrevirão ao mundo.
E então verão vir o Filho do Homem numa nuvem, com poder e grande glória. Ora, quando estas coisas começarem a acontecer, olhai para cima e levantai as vossas cabeças, porque a vossa redenção está próxima.
(Lucas 21: 25-28)
Liberta-me Senhor.
Salva-me.
Chama-me.
Salva-me, fonte da Piedade.
Salva me, Senhor Jesus Cristo.
Naquele dia, não me abandones.
Liberta-me.
Chama-me com os abençoados.
Naquele dia de lágrimas, que há-de surgir do Inferno,
em que o Homem será julgado: poupa alguns, Deus.
IV - Sanctus
Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo.
O céu e a terra proclamam a Vossa glória.
Hossana nas alturas!
Bendito o que vem em nome do Senhor!
Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo.
Aquele que era, aquele que é e aquele que há-de vir.
V - Lux Æterna
Que a luz eterna os ilumine, Senhor:
com os Teus santos na Eternidade, porque és piedoso.
Dá-lhes o descanso eterno, Senhor:
e que a luz perpétua os ilumine.
VI - Libera Me
Liberta-me, Senhor, da morte eterna, naquele dia terrível:
em que os Céus e a Terra estremecerem:
então hás-de vir julgar os séculos pelo fogo.
Das profundezas clamo a ti, ó Senhor.
Senhor , escuta a minha voz;
Sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas.
(Salmo 130)
Eu tremo e receio,
pelo momento em que há-de vir o juízo final e a ira.
Aguardo ao Senhor.
A minha alma O aguarda, e espero na sua palavra.
Espere Israel no Senhor,
E ele remirá a Israel de todas as suas iniquidades.
(Salmo 130)
Esse dia da ira, da calamidade e da miséria,
esse dia grande e amargo, adeus!
Liberta-me, Senhor.
VII - Ego Sum Resurrectio
Eu sou a ressurreição e a vida,
quem crê em mim, ainda que esteja morto viverá,
e todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá por toda a eternidade.
(João 11: 25-26)
A trombeta soará e os mortos ressuscitarão incorruptíveis,
e nós seremos transformados.
(I Cor. 15: 52)
Mas nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova terra, em que habita a justiça.
(II Pedro. 3: 13)
Ora vem, Senhor Jesus.
(Apoc. 22: 20)
Notas Sobre a Obra
DEUS QUER, O HOMEM SONHA, A OBRA NASCE...
(Fernando Pessoa, "O Infante")
... mas o sonho projecta-se na realidade, sempre de um modo imperfeito, perdendo uma parte de seu esplendor, através do veículo de transmissão artística, quer ele seja a palavra ou a nota musical.
CRIAR é, sobretudo, uma experiência íntima do Artista que, num esforço de vontade, transforma o concreto em possível virtual, animando palavra ou nota de música, convertendo-as em Destino primeiro: primeiro, porque fundamental, e , num mesmo gesto, desvenda mais um pouco desse je ne sais quoi que os Românticos alegam que ele transporta dentro de si, assim como, aflito, procura compreender-se e expressar-se. Mas se a inspiração é ponto de partida da obra de arte, constituíndo o elemento de Mistério que há tanto tempo se tenta sistematizar, o trabalho de construção sequencial surge como uma operação necessária à concretização artística - agora, o artista vira artesão, e o "comunicar" sobrepõe-se ao "expressar-se", quando se atinge o momento de partilha com um público.
Para trás, na memória do Artista, ficaram a solidão e a dúvida imanentes a todo o acto criador, reguladores dos múltiplos momentos de opção, ficou a frustração perante a impossibilidade de transmitir integralmente a magia sentida, e , sobretudo, instalou-se a saudade daquele primeiro projecto antevisto, e sempre mais belo que o produto final...
Resta, talvez ao artista, confiar na voz do Poeta já citado, e dirigir a Deus o mesmo pedido humilde:
"Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ância -
com que a chama do esforço se remoça,
e outra vez conquistaremos a Distância -
do mar, ou outra, mas que seja nossa!"
(Fernando Pessoa, "Prece")
Fátima Albuquerque
REQUIEM
Nascido no seio do judaísmo, o cristianismo herdou algumas marcas relativas à actividade do culto, sobretudo no que diz respeito à celebração da Palavra. Porém, em breve se demarcou do culto oficial do Templo, por razões que têm a ver com a sua própria essência. Enquanto o judaísmo estava centrado na Torá (Lei de Moisés), o cristianismo, na fidelidade ao preceito do fundador ("Fazei isto em memória de mim"), centrou toda a sua actividade litúrgica à volta da celebração da Ceia do Senhor que, no decurso dos anos, teve várias denominações: Fracção do Pão, Eucaristia e Missa.
Considerada a mais alta expressão do louvor a Deus, a Missa foi, ao longo dos séculos, enriquecida com vários elementos expressivos, quer simbólicos, quer musicais, uns e outros destinados a facilitar a interiorização e compreensão dos textos sagrados.
Com o desenvolvimento do Temporal (a celebração dos mistérios de Cristo) e do Santoral (celebração da memória dos Santos) a Missa passou a ter uma grande diversidade de esquemas, de acordo com a celebração em curso. Umas partes mantêm-se sempre em qualquer celebração; constituem o Comum da Missa (Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei ). Outras partes variam de acordo com a solenidade; formam o Próprio da Missa (Intróito, Gradual, Aleluia, Tracto, Sequência, Ofertório e Comúnio). No primeiro milénio, quer o Próprio quer o Comum eram cantados a uma voz, ou seja, em Canto Gregoriano. Aquando do aparecimento da polifonia, cada uma das partes da missa converteu-se em material privilegiado para as composições polifónicas. Se uns compositores preferiam o Próprio, outros utilizavam o Comum.
Todavia aquele que ficou na história como o grande construtor da missa polifónica foi Machaut. Foi a primeira vez que uma missa foi composta a quatro vozes, dentro de um princípio organizativo. De tal forma a obra de Machaut marcou o seu tempo, que a Missa de Notre Dame, por ele composta, converteu-se em paradigma de todas as composições posteriores.
Como a missa de Machaut abrange somente o Comum, a expressão Missa passou a significar o conjunto das cinco partes do mesmo Comum, ou seja, o Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei.
Os compositores seguintes respeitaram a tradição introduzida por Machaut, pelo que as suas Missas não ultrapassam o Comum. Assim acontece com as missas de Palestrina, Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, etc.
Relativamente à Missa dos Defuntos houve uma outra concepção. Como os elementos constitutivos do Próprio têm uma componente expressiva muito acentuada, passaram a fazer parte da composição da mesma Missa. Assim, enquanto em qualquer outro tipo de missa não é incluída nenhuma parte para além do Comum, na Missa dos Defuntos, quer o Próprio, quer o Comum têm o mesmo tratamento.
Ora como o Intróito começa pelas palavras Requiem æternam dona eis, Domine, a Missa dos Defuntos passou a ser denominada pelo primeiro vocábulo do mesmo intróito: Requiem. Desde o séc. XV ao Séc. XX que foram compostos mais de 1600. O mais antigo é de Dufay (1400-1474), cujo original se perdeu. O primeiro exemplar existente é de Ockeghem, escrito em 1500. A partir dele é um infindar de nomes escalonados ao longo de cinco séculos, dos quais há a destacar Morales, Guerrero, Manuel Mendes, Certon, Anerio, Palestrina, Vitoria, Aichinger, Cavalli, Viadana, Duarte Lobo, J. C. Bach, Cimarosa, Pergolesi, Mozart, Cherubini, Gounod, Meyerbeer, Piccinni, Liszt, Saint-Saëns, Bruckner, Berlioz, Domingos Bomtempo, Verdi, Dvorák, Fauré, etc. Nos nossos dias há a destacar Bresgen, Ligeti, Lutoslawsky, Thompson, Duruflé, etc.
Ao lado destas composições destinadas ao uso litúrgico, importa destacar aquelas que, seguindo esquema semelhante, são destinadas a salas de concerto, embora tenham a mesma denominação: Requiem Alemão, de Brahms, A World Requiem, de John Foulds, War Requiem, de Britten, Celtic Requiem, de Tavener, etc.
É nesta linha que se situa o presente Requiem. Embora dentro do espírito do Requiem litúrgico, revela uma maior liberdade quanto à utilização de textos. Liberto do rigor das normas litúrgicas, o compositor tem maior espaço de manobra para dispor os materiais utilizados.
Com um forte acento no tema da Ressurreição, o presente Requiem tem uma visão muito mais optimista que aquela que revelam as trombetas de Berlioz. Um aspecto a salientar é o facto da presente obra procurar a fidelidade do texto bíblico, utilizando passagens no grego original, o que lhe confere algo de inédito.
Os textos do Próprio da Missa dos Defuntos, embora mantendo uma unidade entre si, reflectem uma variedade de sentimentos: uns exaltam a confiança na misericórdia de Deus; outros a esperança da Ressurreição; outros o temor pelo Juizo Final, outros, por fim, a certeza da vida do além. Certamente que cada compositor se sente mais fascinado por um que por outro aspecto. E daí cada Requiem ter uma característica diferente. Se Berlioz exalta o terror perante o Juizo Final, Fauré conduz-nos à pátria dos eleitos; se Verdi realça a dor humana perante a morte, Mozart a serenidade perante a mesma.
O presente Requiem segue um esquema mais livre, quanto à utilização dos textos, embora sem nunca se afastar do espírito do Requiem. Para melhor se perceber o conteúdo de cada uma das composições, um breve apontamento acerca das mesmas:
I - INTROITUS - Requiem æternam dona eis Domine et lux perpetua luceat eis.
Trata-se de uma súplica na qual a Igreja implora: Dai-lhes, Senhor, o descanso eterno e a luz perpétua brilhe sobre eles.
O texto é o mesmo que o litúrgico.
II - KYRIE - Uma das poucas marcas da liturgia grega na liturgia latina. Tríplice súplica dirigida a Cristo: Senhor tende piedade de nós.
III - SEQUÊNCIA - A sequência é uma composição que substitui o canto do Aleluia, no qual terá a sua origem.
Certamente trata-se de uma das composições mais marcantes do Requiem. A célula musical da primeira estrofe do Dies iræ serviu de tema para compositores de outras épocas. Basta recordar a Sinfonia Fantástica de Berlioz.
O presente texto, construído fora do esquema da Sequência Dies iræ, não deixa de reflectir de uma maneira original, o pensamento da mesma. Centrado na pessoa de Cristo, o texto é extraído do relato evangélico, que fala dos sinais do fim do mundo e da glória de Cristo na sua última vinda.
IV - SANCTUS
Pertence ao Comum da Missa. Texto litúrgico inspirado no profeta Isaías, que narra a glória de Deus.
V - LUX ÆTERNA - Texto pertencente ao Comunio da Missa. Suplica-se que a luz eterna brilhe sobre os defuntos.
VI - LIBERA ME - Dentro duma tradição medieval, o presente texto, inspirado no Responsório Libera me, é como que tropizado com passagens do salmo 129/ 130 e da Sequência Dies Iræ. É um grito que brota do mais profundo da alma: Livra-me, Senhor... Escuta a minha oração... Sustenta-me na Tua Palavra... Eu tremo perante a ira futura... Livra-me. Senhor.
VII - EGO SUM RESSURRECTIO
A contrastar com o texto anterior, a mensagem contida no Evangelho de S. João: Eu sou a ressurreição e a vida: aquele que acredita em Mim, mesmo que morra viverá: e todo aquele que vive e acredita em mim jamais morrerá.
Perante esta certeza, eis o grito do Apocalipse: Vem Senhor Jesus.
Arménio A. Costa Júnior
Requiem é a sexta peça de um ciclo de sete peças compostas a partir de 1990. Destas peças, apenas a primeira, segunda, terceira, e sexta estão terminadas. Originalmente pensado como um grupo de obras inspiradas no livro do Apocalipse, no Novo Testamento, este ciclo veio a converter-se progressivamente, nos últimos quatro anos, numa reflexão pessoal, transposta para música, sobre o mistério da criação artística e suas origens mais profundas. Este ciclo, no entanto, continuou sempre a ter uma superfície temática de carácter escatológico, em cada uma das suas peças componentes. A palavra "Apocalipse" em si mesma traduz a ideia de "revelação", como qualquer coisa que não é criada pela mãos / mente humana, mas que é transmitida (revelada) pessoalmente por Deus.
Nas notas de programa de uma das outras peças deste ciclo, intitulada Visão, escrevi as seguintes considerações:
"Considero que o acto de criação na sua essência, e tal como eu o concebo, não existe por si só mas é resultado de uma revelação que se processa através do nosso Espírito para a nossa Mente, e cujas origens não podemos determinar. Para o ateu, talvez ele seja considerado como o resultado de toda uma vivência em termos musicais, todo um conhecimento e compreensão de um passado e presente, um reflexo da experiência vivida. Para o crente, essa revelação vem de Deus. No entanto, há uma característica comum a ambos os casos, que é o facto que o ego do criador é de certa forma destruído por essa revelação, tendo de se submeter a ela.
A natureza e essência dessa revelação é de certa forma efémera. Ela pode vir durante um sonho, um momento de angústia ou alegria, um momento de reflexão, etc., e pode consistir num som, num gesto musical, num timbre, numa frase, etc.. Partindo daí, o criador tem que dar corpo a esse momento, construindo ao redor dele todo um complexo retórico-musical, que justificam e fortalecem a sua essência."
Partindo destes princípios, e tentando dar corpo a estas ideias sob diversas formas, cada uma das obras deste ciclo pretende abordar um aspecto específico, ou um componente, daquilo que defini como revelação: assim, Patmos, uma ópera (composta em 1990) é a primeira obra deste ciclo e, sendo baseada nos primeiros quatro capítulos do Livro de Apocalipse, lembra a necessidade, em termos de vivência espiritual, dessa mesma revelação. Tessares (1991), que em grego significa "quatro", é a segunda peça. Esta obra inspira-se na visão das quatro criaturas ao redor do Trono de Deus, relatada no mesmo livro e refere-se, entre outras coisas, à universalidade da revelação. Visão (1992), a terceira peça, é baseada na profecia de Joel sobre a aproximação do fim dos tempos, e diz respeito à intemporalidade da revelação.
A Cidade Eterna, composta em versão para fita magnética em 1988, é baseada nos últimos capítulos do livro e reporta-se à perfeição da revelação. Esta peça será reescrita, em tempo oportuno, desta vez em versão para orquestra e deverá ser a sétima e última peça do ciclo. Requiem é, de todas estas obras até agora escritas, a de maior envergadura, e foi composta entre Maio de 1993 e Dezembro de 1994. Entre outras coisas, de feição muito mais pessoal, esta obra aponta para uma inevitável concretização física das ideias transmitidas durante a revelação, sejam elas de teor profético, como o livro do Apocalipse propõe, ou meramente de carácter pessoal.
As restantes peças deste ciclo ainda não estão escritas.
Ao compor o Requiem, recebi várias influências, de diferentes ordens. Um dos aspectos que me preocupou, desde o início, foi todo o peso histórico / musical, que está implícito numa obra deste tipo, desde a sua origem, passando pelas obras-
-primas que foram sendo produzidas nas várias épocas da História da Música, até às criações musicais propostas por alguns compositores deste século.
A versão original (?), do Requiem, em termos litúrgicos e musicais, ou seja aquela que ainda hoje podemos encontrar, codificada sob a forma de notação neumática (Canto Gregoriano) no Liber Usualis, foi outra fonte à qual eu recorri em termos de inspiração musical. A própria estrutura deste Requiem, em termos formais e mesmo, em alguns casos, melódios e harmónicos, é directamente influenciado pelo Requiem da liturgia gregoriana. Finalmente, o próprio conteúdo dramático, implícito em cada uma das partes da Missa de Requiem, foi a fonte principal de pesquisa, em termos de propostas de conteúdo sonoro.
Cada uma das partes desta obra tenta transmitir o carácter dramático que pessoalmente (e talvez intuitivamente) associei ao texto e função litúrgica inerente. Sem querer falar com profundidade do conteúdo musical, em termos organizacionais, direi apenas que a estrutura harmónica de cada parte deste Requiem se baseia nas diferentes tensões que cada intervalo musical provoca. Como tal, cada uma das partes da obra baseia-se num intervalo, e cada uma destas mesmas partes desenvolve-o de diferentes maneiras. Tudo o resto (melodias, harmonias, tratamento tímbrico e espacial, sonoridades, etc.) deriva daí, e não pode, nem deve, ser descrito, a não ser pelo próprio resultado sonoro, que substitui todas as possíveis palavras.
Requiem não pretende ser uma obra que quebre com o passado, ou que o confronte. A sua essência é basicamente tradicional, na linha de tantas outras obras que já foram, e continuam a ser, compostas, animadas pela mesma força interior que impulsionou muitos outros compositores. Pretende apenas transmitir alguma coisa de muito pessoal, e que talvez até seja mesmo intransmissível. Mas a força desse impulso interior que me leva a escrever música incentiva-me - com toda a dor e alegria que isso provoca - a tentar fazê-lo, apesar de todas as imperfeições e hesitações que sinto, como ser humano, ao tentar criar qualquer coisa que, no fundo de mim, desejo que possa ter alguma coisa de belo.
João Pedro Oliveira