Autor do Texto Hélia Correia
Título do Poema ou Texto Toc Toc Toc
Ano 2009
Letra Toc, Toc, Toc,
ouviu Luísa. E levantou os olhos. Estava a desenhar uns unicórnios com muita força e os bicos dos lápis – tic! – partiam-se. Ela afiava-os ainda com mais força, muito zangada – rnhec, rnhec, rnhec – e desenhava mais um bocadinho. Era domingo. Ao longe os sinos – tlim,tlim, tlim – tocavam. A mãe saíra para jogar – bloc, bloc – ténis. O pai estava no sótão, a pintar. Pintava sem pincéis, com uma espátula - tch,tch-, espalhando tinta grossa numa tela. Mas era um barulhinho muito suave que nem sequer se ouvia lá em baixo. E a irmã, a Teresinha, onde estaria? Talvez junto do pai – schiuuu -, silenciosa. Ou talvez sussurrasse uma cantiga quaaaaase inaudível e rodasse – tzzi,tzzi – com um só pé no chão, acreditando que era uma bailarina. Mas afinal, com todos aqueles sons, a casa estava mergulhada no silêncio. Na grande ressonância do silêncio. A Onde ninguém fazia Toc,Toc.
B Toc,Toc, ouviu Luísa. Um Toc menos do que da primeira vez. Luísa recordou que, certa tarde, o quadro eléctrico - tchririu – avariou. Fizera umas luzinhas - psh,psh – barulhentas e nada, nada, nada funcionava. Quando o técnico que vinha arranjar tudo chegou à porta, a campainha não tocava. E ele: Toc, Toc, Toc, na madeira. Com a mão fechada, Toc,Toc,Toc, cheio de pressa e determinação. Mas estes TocToces não soavam exactamente como os dessa tarde. Pareciam mais graves e delicados, mais contentes consigo próprios. Mais tôk,tôk, talvez. E não vinham da porta, pelo contrário: vinham exactamente do outro lado. Estavam dentro? Oh,oh, seria o bicho da madeira?
meas.76 Houve uma vez, em casa da avó, em que ela disse: « Oh, ouçam-me o malandro!». Luisa e Teresa estavam lá a passar férias e gostavam de tudo. Lindos eram os quartos restaurados com painéis de madeira até acima. Mas dentro da madeira – crch, crch – ia passando uma pequena música. E os avós ficavam brancos ao ouvi-la. Punham-se a falar mal dos operários – grr -, dos carpinteiros, dos fornecedores – grr – que lhes venderam material contaminado – grr – e entre eles e a casa instalara-se muita desconfiança! Esperavam só que as netas se fossem embora para desinfestarem. Que palavra!
C Porém ali, no quarto da Luísa, não havia madeira para o bicho. Isto é, haver, havia. Mas era meio falsa, feita de muitas lasquinhas comprimidas, cobertas por uma placa resistente. Con-tra-pla-ca-do, achava ela que era o nome. Empurradinhas umas contra as outras, as aparas, provindas de tábuas bem diferentes. Não eram saborosas para os bichos.
E Pelo sim, pelo não, Luísa andou com o ouvido encostado à cama, à secretária, ao roupeiro e… ao chão! Se fosse alguém com a esfregona lá em baixo, a meter-se com ela, só por graça? O chão era em mosaico. Poderia existir algum bicho num mosaico? Debaixo de uma pedra, sim, havia. Luísa e Teresa levantavam pedregulhos – hôop,hôop, força! – e sob eles ondulavam, assustadas, coisinhas cor de rosa muito pálidas. Mas eram tão macias que não podiam fazer barulho algum. «Cubram-nas já», dizia o pai. «Tenham cuidado. São tão frágeis que, ao sol, ressecam logo!»
«Ai, vermes ressequidos –trch, trch- que pensamento horrível! Coitadinhos!» – exclamou a Luísa e levantou-se. Respirou fundo. Toc,Toc,Toc!
F Ah, o barulho vinha da janela! Viera da janela o tempo todo!
Mas com Luísa acontecia tudo assim: ia do complicado para o simples, do improvável para o óbvio. Era a Luísa. Antes queria trepar que subir escadas. E antes queria descer pela glicínia do que ir à volta pelo interior da casa. A glicínia envolvia-lhe a janela. Ela não era, felizmente, aaaaaaaalérgica! Na primavera, os cachos matizados de lilás deitavam o seu pólen à vontade! E o tronco, macio e direitinho, com certas saliências como se nascessem uns degraus mesmo a propósito, tornavam o processo tentador. Assim, pois, a Luísa, zzzzzz, desceu!
G Caiu – tchap – na terra do canteiro. Olhou em volta: tudo era silêncio. O zzzzzz e o tchap dela tinham feito nascer um grande susto em toda a volta. Nem as abelhas, sim, nem as abelhas ousaram sussurrar por uns momentos. Depois, os vivos do jardim disseram: «É a Luísa. A Luísa não faz mal!», e a animação recomeçou. Pássaros e cigarras, grilos e folhas, brisa e até mesmo as doces borboletas, tudo ia produzindo o seu barulho: canções, zunidos, assobios, murmúrios, asinhas que batiam, flap, flap.
E Toc,Toc,Toc, uma vez mais.
H Luísa olhou para o lado, olhou para o ar. Inclinou o rosto em direcção ao Toc,Toc,Toc. Estava um pouco distante e um pouco acima. Pé ante pé, Luísa aproximou-se. Caminhava de ouvido, dir-se-ia. Esteve para tropeçar e tropeçou numa grossa raiz à superfície. O Toc,Toc,Toc parou. Era evidente que ele andava a brincar às escondidas.
«Ora, então, muito bem», pensou Luísa. E pôs-se muito quieta atrás de um banco. O silêncio caiu lá do lugar de onde tinha caído o Toc,Toc,Toc. Porém, à força de esperar, Luísa ganhou o desafio com o barulho. O Toc,Toc,Toc recomeçou. meas.206 «Oh!», exclamou a Luísa. «Então, és tu!».
I Não sabia se havia de rir ou de zangar-se. No seu grande Carvalho, bem no alto, havia um pássaro a bicar: Toc, Toc! Usava na cabeça um chapelinho vermelho que abanava ao ritmo das bicadas. Era muito engraçado. No entanto, magoava o Carvalho, Toc,Toc. Aliás, podia já ver-se um buraco na casca. Luísa imaginou que a árvore, ai! gritava com a dores, hmm, gemia! Mas, na verdade, se se ouvia alguma coisa, era um sorriso. E um sorriso pode ouvir-se? Pode, sim. Um sorriso soa a água a correr nas pedrinhas de um ribeiro.
J O passarito tinha um ar traquina. Se calhar, não fazia senão cócegas. Aquele velho Carvalho era robusto. Ainda assim, apetecia-lhe intervir. E interveio. Deu um passo em frente. «Olá!...», disse ela.
«Olá!», disse-lhe o pássaro, parando de picar o Carvalho. Inclinava a cabeça como quem recuperasse de uma cãibra, hop, no seu pescoço. «Tu quem és?»
«Sou uma amiga do Senhor Carvalho», respondeu a Luísa. De repente, tudo aquilo lhe parecia muito sério. «Não acho bem que tu o estejas a furar».
«Que disparate!», retorquiu o pássaro. «Sabes como me chamo? Pica-pau! Pica-pau pica o pau», explicou ele, e recomeçou logo a dar bicadas.«O teu nome qual é?»
«Luísa».
« Ah,sim? Pois, e Luísa quer dizer o quê?»
«Nada», disse a Luísa. «É o meu nome.»
O Pica-pau parou de novo para a olhar com alguma atenção: «Vocês, humanos, são gente muito estranha», considerou.
«Estranha ou não, não gostamos de bicadas. Estás a ferir o Carvalho».
K «Obrigado, tens boas intenções! »- disse uma voz . O Pica-pau estava calado.
Quem lhe falava assim? Eram as folhas. Toda a folhagem crepitava sob a luz, ardendo, ardendo. Luísa vira já muita beleza mas nunca uma beleza como aquela. O Carvalho tremia levemente e a copa chispava com pequenos incêndios muito claros, cor de mel. A linguagem da árvore provinha de um esforço, traduzia-se a si própria. Aquele rumor estaladiço – tchrr, tchrr – significava: «Não te preocupes. Eu agradeço a tua gentileza, mas este Toc,Toc é-me agradável.»
«Não está a aleijar-te?»
«Não, não está. Fui eu que o convidei para aqui morar. Vai construir a casa no meu tronco.»
«Oh!», exclamou a Luísa. «E isso é bom?»
«Isso é a melhor coisa do mundo. Vou divertir-me com os seus bebés. Vai haver grandes algazaaaaaarras aqui dentro!».
«Ai, eu pensei… Não foi por mal. Desculpe!»
«Não temos nada para desculpar. Tu és boa menina. Podes vir ver como a casa avança.
«E o Pica-pau?»
«Não se assusta contigo».
«E com a Teresa? Tem de vir também…»
«Quem é a Teresa?», perguntou o Pica-pau.
O Carvalho explicou: «É a irmã».
«A irmã…», disse o pássaro, pensativo, parando novamente o seu trabalho. Não tinha percebido grande coisa. Mas encolheu os ombros: «Os humanos são gente muito estranha, já se sabe».
Encheu o papo, innchhh, de ar. Queria parecer muito preocupado. Era uma criatura implicativa:
«Quando a minha mulher vier render-me, vê a miúda e vai morrer de susto».
L «Oh», exclamou a Luísa. «Eu vou-me embora». Estava ofendida com o Pica-pau. A sua ofensa dava largos passos para trás, pok,pok, para sair dali. A Luísa, porém, não se mexia. Até parecia que estava sob o efeito de um encanto. Quase podia ouvir o plim,plim,plim que fazem as varinhas de condão. Mas eis que, flap,flap,flap, uma outra ave, igual ao Pica-pau mas sem chapéu, pousou num ramo muito perto da Luísa.
«Olá, sou a senhora Pica-pau », disse. Tinha bons modos. E um bico que sorria.
M «Muito prazer», disse a Luísa. E os largos passos ofendidos, pok, pok, voltaram para o chão sob a Luísa. Ela e os passos estavam juntos outra vez. A sensação era reconfortante.
Percebeu que a senhora Pica-pau vinha fazer Toc,Toc. Era o seu turno.
«Eu vou-me embora. Não a quero incomodar», disse Luísa delicadamente. Mas os seus passos, hhhhh, ficavam presos debaixo das sandálias. Mantinham-na imóvel no seu sítio como se ela tivesse deitado, fchh, fchh, raízes. Os passos eram a vontade de Luísa que queria muito continuar ali.
«Não incomodas. Sabes bater palmas?», perguntou a senhora Pica-pau. O marido limpava o bico às asas, trr, trr, como quem limpa os instrumentos de um ofício. «Sempre pensei como seria bom escavar com acompanhamento musical».
«Cuidado! Não será barulho a mais?», ponderou o Carvalho. «Não queremos dar nas vistas».
Mas a Luísa assegurou: «Não, não há perigo. Nem lenhadores nem caçadores por perto. E aqui, na minha casa, toda a gente ama e respeita os seres da natureza. »
meas.366 «Nunca fiando», disse o Pica-pau. Tinha aquele carácter de antipático, exactamente o oposto da senhora Pica-pau, tão risonha e acolhedora. Fez um resmungo e foi voando para longe. Provavelmente também queria tchh, tchh, tomar um duche. Transpirara, decerto, a trabalhar uff, com tanto afinco.
E a senhora Pica-pau deu um sinal, batendo as asas uma contra a outra, clap, clap, com a concentração de um bom maestro.
Foi assim que a Luísa bateu palmas para ajudar a abrir no tronco um ninho onde iriam nascer mais pica-paus.
©Hélia Correia
Observações
Texto original escrito a pedido do compositor para a obra musical
Autor do Texto Hélia Correia
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