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José Luís Ferreira (1973-2018)


Foto: José Luís Ferreira

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“José Luís Ferreira, 1973-2018 · (interpolação) · continuidade e narrativa.”
JAKUB SZCZYPA

  Uma das primeiras obras de José Luís Ferreira que ouvi ao vivo foi “Avant” para flauta, clarinete (clarinete baixo), piano, violino, violoncelo e eletrónica em tempo real («eletrónica em tempo real», pormenor importante no caso deste compositor), na interpretação do Sond’Ar-te Electric Ensemble sob a direção do maestro Pedro Neves. O concerto teve lugar no dia 4 de dezembro de 2010 no Centro Cultural de Cascais para celebrar duas efemérides importantes para Portugal nesse ano – o Centenário da República e os 150 anos do Tratado de Amizade, Paz e Comércio entre Portugal e o Japão. “Avant” (da língua francesa, «à frente», ou «adiante») é uma peça curiosa e enigmática, um work-in-progress 1, que, como disse na altura o compositor nas notas de programa, «funciona como a prova do conceito (proof of concept) – é possível fazer a eletrónica em tempo real soar antes (avant) dos instrumentos, ou pelo menos, do som dos instrumentos que completam (ou complementam) as figuras musicais.» 2 Na sua tese de doutoramento, “Música Mista e Sistemas de Relações Dinâmicas” (Universidade Católica Portuguesa, março de 2014), José Luís Ferreira escreveu: «Esta obra pretende criar um paradoxo em relação ao paradigma de que um som do meio eletrónico, na estratégia em tempo real, só pode surgir ou sincronicamente com o som instrumental ou na sequência deste, ou seja, criámos uma obra, dentro desta estratégia, na qual criámos uma ilusão de que o meio eletrónico surge antes do instrumental.» 3

  A problemática de «antecipação e sucessão», ou seja, de «antes e depois», levantada por José Luís Ferreira na obra “Avant” e na sua tese de doutoramento, pode levar-nos a outras reflexões de natureza mais geral (não é esta uma das funções da arte?). No dia 31 de agosto de 2023 José Luís Ferreira teria celebrado o seu 50.º aniversário; o compositor deixou-nos há cinco anos no dia 26 de fevereiro de 2018. É precisamente este ponto na linha temporal do seu percurso que para nós constitui o momento de «antes e depois»: «antes», quando o compositor ainda cá estava, «em carne e osso»; e «depois», quando é a nós que cabe «completar as figuras musicais» que José Luís Ferreira deixou.

  «Vidas musicais interrompidas não é um fenómeno apenas do rock’n’roll» 4 – disse o escritor e jornalista da BBC Radio 3, Tom Service, nas páginas do jornal The Guardian. É curioso que, quando mais prematuro o desaparecimento de um artista, mais necessidade temos de romantizar a sua vida, apresentando-o «como uma figura que viveu no pico febril de inspiração e genialidade, cujo custo existencial foi um pacto faustiano com a morte precoce» 5. Esta é, sem dúvida, uma das melhores maneiras para criarmos uma espécie de mitologia em torno de uma pessoa. Olhemos só para alguns dos exemplos da história da música erudita: Franz Schubert (desapareceu aos 31 anos), Claude Vivier (aos 35), Henry Purcell (aos 35), Wolfgang Amadeus Mozart (também aos 35), Felix Mendelssohn-Bartholdy (aos 37), Fryderyk Chopin (aos 39), George Gershwin (aos 39), Fausto Romitelli (aos 41), Alexander Scriabin (aos 44), Cornelius Cardew (aos 45), Alban Berg (aos 50), Kurt Weil (aos 50), Gustav Mahler (aos 51), Gérard Grisey (aos 52), Karol Szymanowski (aos 55), Claude Debussy (aos 56), .... Romantizar, mitificar, criar estrelas e celebridades – todas estas abordagens são, obviamente, até certo ponto naturais, mas também muito sintomáticas da nossa contemporaneidade em que o emocional e momentâneo, como fogos de artificio, frequentemente, sobrepõe-se ao racional que, por definição, é mais ponderado e por isso mais «entediante». Não será, no entanto, melhor para nós e para os precocemente desaparecidos, se, em vez de nos deixarmos levar pelos impulsos do nosso coração, tivermos uma atitude mais moderada, em que as nossas ações serão direcionadas pela vontade e necessidade de «manter a vivacidade e continuidade do legado»? Esta é, certamente, uma das abordagens que o MIC.PT cultiva desde a sua fundação.

  Quando deploramos a morte prematura de um compositor que estava apenas a começar a encontrar a sua própria voz, ou que encontrou esta voz e estava na crista da onda da sua criatividade, também lamentamos, por implicação, cada obra que esse autor nunca terminou ou nunca começou. José Luís Ferreira, compositor, professor e performador 6, desapareceu aos 44 anos, no pico das suas capacidades criativas, «em plena fase de afirmação das suas pesquisas de longos anos e como tal não estaria numa fase de (re)questionar a sua estética, mas sim de a afirmar» (disse Miguel Azguime no Em Foco do MIC.PT de março de 2019) 7. Este desaparecimento precoce levanta em nós várias perguntas (algumas delas meramente hipotéticas), nomeadamente, «como seria a próxima versão de “Avant”», ou «em que direção crescia o catálogo de obras, a linguagem e a estética de José Luís Ferreira», ou ainda «o que mudaria na história da música portuguesa se José Luís Ferreira não tivesse desaparecido tão cedo». A estas perguntas poderemos dar repostas apenas hipotéticas e ilusórias, tal como é ilusória e hipotética, por exemplo, a finalização e realização da inacabada “10.ª Sinfonia” de Mahler a partir dos esboços que o compositor deixou. No entanto, estas hipóteses e ilusões são da maior importância para podermos manter uma continuidade (aparente) do percurso de José Luís Ferreira; para tirarmos o peso do facto que o último post na página Facebook do compositor (ainda ativa...) é de 8 de janeiro de 2018; e para tentarmos preencher esta lacuna com a nossa própria narrativa.

  Afortunadamente, no caso de José Luís Ferreira, nos anos que se seguiram após o seu desaparecimento, várias pessoas do meio português de música erudita contemporânea, que lhe eram próximas, empenharam-se, e continuam neste empenho, para manter a sua obra viva e (re)conhecida. A partir de 2019, em vários espaços de Portugal dedicados à criação musical contemporânea – académicos e não académicos – organizam-se espetáculos em memória de José Luís Ferreira, cujos exemplos são, o recital “Infinito Azul” da pianista Ana Telles, ou os concertos organizados pelo Projecto DME, entre outros.
  No programa do recital “Infinito Azul”, estreado no contexto do Festival Música Viva 2019 no O’cutlo da Ajuda em Lisboa 8, Ana Telles interpreta obras não só de José Luís Ferreira – “Objet Trouvé”, “Objet Trouvé II” e “Um autre objet” –, mas também peças, com ou sem eletróncia, de vários outros compositores, que lhe são dedicadas, nomeadamente: “Fantasia Sognata Toccata (Leyenda)” de Bruno Gabirro, “Triste Tríade” de Christopher Bochmann, “Broken” de Eduardo Luís Patriarca, “Tierce de Picardie” de Eurico Carrapatoso, “Monólito. Ébano” de Jaime Reis, “Litanies” de Jean-Sébastien Béreau, “JLF” de João Madureira, “Porquê...? Memória de um abraço antigo” de João Nascimento e “Balada para o Zé” de Miguel Azguime.
  Por seu lado, as iniciativas do Projecto DME 9, “Em memória de José Luís Ferreira”, incluem concertos para diferentes formações musicais, propondo um percurso pela obra do compositor – desde música puramente eletroacústica até à música que combina instrumentos acústicos com sons eletrónicos, passando por obras de cariz cénico.
  No contexto das atividades cujo objetivo é manter viva a memória de José Luís Ferreira, destacam-se também as iniciativas do Centro de Investigação e Informação da Música Portuguesa – o Em Foco de março de 2019 10 em que alguns dos amigos, colegas, alunos, professores e colaboradores do compositor responderam ao Questionário sobre a sua música e o seu percurso; e também os dois programas de rádio Música Hoje, transmitidos na Antena 2 a 8 e 22 de fevereiro de 2019 11, em que na Mesa Redonda sobre José Luís Ferreira, moderada por Pedro Boléo, participaram os compositores António de Sousa Dias, Carlos Caires e Miguel Azguime, e o saxofonista/ compositor Philippe Trovão.
  Este último disse ao MIC.PT em 2019 que, enquanto professor «José Luís Ferreira queria mudar mentes. Tanto com o Laboratório de Música Mista, como com os seus alunos de Composição ou Síntese, ele queria levar a música eletroacústica mais longe e a mais pessoas». 12 O Laboratório (que atualmente tem o nome de José Luís Ferreira) é mais um veículo significante, através do qual os alunos e colegas de José Luís Ferreira podem dar continuidade ao seu trabalho e pensamento. Sediado na ESML – Escola Superior de Música de Lisboa e fundado em 2014, este projeto foi pensado pelos seus criadores, Carlos Caires e José Luís Ferreira, como um meio para desenvolver competências nos domínios da improvisação, experimentação e da performação 13 da música mista (de reportório ou composta por estudantes de Composição especificamente para este projeto). O Laboratório de Música Mista da ESML – José Luís Ferreira 14, presentemente orientado pelos compositores Jaime Reis e Carlos Caires, conta com diversas atividades desde a sua criação, das quais se destacam os concertos e audições informais na ESML, concertos nos Festivais Música Viva organizados pela Miso Music Portugal, residências artísticas no O'culto da Ajuda em Lisboa, concertos no Lisboa Incomum organizados pelo Projecto DME, participações na Semana da Composição da ESML e em concertos da Conferência Internacional “Old is New” organizada pelo CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (FCSH-NOVA, Lisboa), em parceria com a ESML.

  Os exemplos das iniciativas em volta de José Luís Ferreira e da sua música, acima mencionados, provam claramente que o trabalho desenvolvido por este compositor continua a ressoar nas várias pessoas que com ele se cruzaram – músicos, compositores e estudantes. Sem dúvida, estas iniciativas constituem um veículo crucial na transmissão do seu legado. Não obstante, como José Luís Ferreira costumava desafiar os seus alunos, é sempre preciso ir mais além, porque o tempo é implacável no seu avanço, sempre em frente. É óbvio, que no processo de preservação da memória, um certo grau de esquecimento é inevitável e, talvez, necessário até para manter o equilíbrio entre os factos e a mitologia. A manutenção deste equilíbrio num estado apropriado e saudável é certamente um dos elementos-chave para que se crie e perpetue uma narrativa sobre José Luís Ferreira, não propriamente para ele, sendo que ele já pertence ao passado, mas para o presente e sobretudo para o futuro. Relembremos, portanto, alguns factos-chave do percurso de José Luís Ferreira.

  José Luís Ferreira nasceu em Lisboa, tendo crescido com a música de Beethoven e os fados da Amália. «É uma ligação talvez estranha à partida, mas era o que a minha Mãe ouvia. Desde muito novo que decorei e dirigia no ar as sinfonias de Beethoven e aguentava o fado dos fados da Amália… A minha educação musical começou pelo ouvir e isso devo-o à minha Mãe (… e ao Beethoven). Sou músico graças ao que a minha Mãe me proporcionou, pelas portas que me foi abrindo enquanto crescia. A composição veio mais tarde…» 15 – disse José Luís Ferreira no Questionário/ Entrevista do MIC.PT de novembro de 2013, ano em que comemorou o seu 40.º aniversário.
  A este período inicial, com os concertos na Fundação Calouste Gulbenkian e as aulas na Academia de Amadores de Música de Lisboa (inclusive de Análise e Técnicas de Composição com Pedro M. Rocha), seguiram-se os estudos na ESML – Escola Superior de Música de Lisboa, onde José Luís Ferreira trabalhou com Christopher Bochmann, António de Sousa Dias e António Pinho Vargas. Paralelamente ao Curso de Composição, assistiu a seminários e workshops de diversos compositores, como Emmanuel Nunes, Jean-Claude Risset, John Chowning, Per Anders Nilsson e Trevor Wishart, entre outros. «Pedro M. Rocha abriu-me as portas para a Composição. Na ESML tive contacto privilegiado com professores como Christopher Bochmann que me ensinou os aspetos fundamentais sobre técnicas de composição e plantou as bases para adquirir um métier, com o António de Sousa Dias veio a eletroacústica, e com o António Pinho Vargas vieram os porquês e o controle formal.» 16 «Assim que o Zé começou a estudar Análise e Técnicas de Composição (ATC) na Academia de Amadores de Música, com Pedro M. Rocha, imediatamente os exercícios se tornaram desafios para ele muito cativantes. O tempo era dividido entre o estudo do Contrabaixo e o da Composição. Com o passar do tempo, o interesse pela composição foi aumentando e ocupando cada vez mais tempo da sua vida» 17 – disse Ricardo Guerreiro no Em Foco do MIC.PT de março de 2019, dedicado a José Luís Ferreira. E acrescentou: «Lembro-me nitidamente que, a partir de certa altura, talvez no início do terceiro e último ano de ATC, era óbvio para qualquer um dos dois, que ambos iríamos tentar ingressar em Composição Musical na ESML, embora fossemos ambos instrumentistas dedicados e elogiados pelos professores. Mas o que parecia mexer cada vez mais connosco era a lógica da criação musical, para resumir de forma simples.» 18
  Na sua prática de composição José Luís Ferreira assumia como referência compositores tão distintos como Gérard Grisey, Salvatore Sciarrino e Helmut Lachenmann, mas cujo trabalho partia sempre do som. «Existe uma obra de Gérard Grisey, a qual não me permito ouvir muito por causa da chamada angústia da influência (Harold Bloom), que se chama “Vortex Temporum”; tem três andamentos – o segundo é dedicado a Salvatore Sciarrino e o terceiro a Helmut Lachenmann. A referência a esta obra é só uma forma de apresentar estes três compositores que têm sido as minhas referências atuais e não poderiam ser mais díspares…» 19 A música de José Luís Ferreira, para diversos tipos de grupo instrumental e vocal, com e sem eletrónica, tem sido performada 20 por diversos agrupamentos, nomeadamente, Remix Ensemble Casa da Música, OrchestrUtopica, Sinfonietta de Lisboa, Coro Ricercare, Saxofínia, Sond’Ar-te Electric Ensemble, Machina Lirica, Ensemble MPMP e Coro Regina Coeli de Lisboa, entre outros. A essência da sua gramática musical, José Luís Ferreira desenvolveu-a em direta ligação com a tecnologia e informática musical – domínios no âmbito dos quais, de uma forma inquieta e persistente, operou uma pesquisa (também estética), afirmando a sua liberdade criativa.
   Como descrevem, em apenas sete palavras, a linguagem musical de José Luís Ferreira alguns dos respondentes do Questionário do MIC.PT de março de 2019 21?
· António de Sousa Dias: diria que a música de José Luís Ferreira é atual, fresca, surpreendente, desafiante, provocadora, experimental, motivadora.
· Carlos Marecos: viva, com pulso, teatral, mesclada, atual, irónica por vezes, tecnológica.
· Jan Wierzba: sistema, esquema, improvisação, romântica (não no sentido de música romântica, mas mais num sentido literário), narrativa, aventureira, rock’n’roll.
· Miguel Azguime: intensa, rigorosa, elaborada, atual, irrequieta, imaginativa, bela.
· Philippe Trovão: bela, desafiante, atual, inspiradora, diferente, inteligente, expressiva.
· Ricardo Guerreiro: orgânica, inspirada, inventiva, ritmada, seccionada, desafiante, variada.
   Os resultados das suas procuras artísticas, criativas e tecnológicas, o compositor partilhava-os com os seus estudantes, no contexto pedagógico, nomeadamente no seio do Laboratório de Música Mista na Escola Superior de Música de Lisboa. Além de docente na ESML, José Luís Ferreira foi também professor de Práticas do Som, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, e professor coordenador do plano curricular do curso de Produção e Tecnologias da Música, da ETIC – Escola Técnica de Imagem e Comunicação em Lisboa. «O que conheço do José Luís Ferreira enquanto pedagogo é o resultado musical, que pude ver e ouvir, dos seus alunos. Aí reconheço a sua visão alargada para um entendimento do que seja música hoje e uma perspetiva histórica e de vanguarda que soube transmitir, incentivando a pesquisa e a inovação. Sem dúvida, José Luís Ferreira contribuiu para fazer avançar o seu tempo» – disse Miguel Azguime no Em Foco do MIC.PT de 2019 22 e na Mesa Redonda dedicada ao compositor e transmitida em fevereiro de 2019, em duas partes, no programa de rádio Música Hoje (RTP – Antena 2) 23. «O Zé passava dias na escola. O entusiasmo dele era contagiante e o Laboratório tinha uma adesão interessante de alunos» 24 – lembrou nesta mesma emissão do Música Hoje o compositor Carlos Caires. «Nas aulas, José Luís Ferreira partilhava o seu entusiasmo o que criava uma atração ao que ele dizia. Era um professor que desafiava os alunos a irem mais longe, confrontando-os ou colocando-os em situações desconfortáveis. O desafio dele era pôr-nos a vontade com os nossos sons e instrumentos. Durante as improvisações ele manipulava e reagia ao som» 25 – contou o saxofonista e compositor Philippe Trovão, ex-aluno de José Luís Ferreira, no Em Foco do MIC.PT de março de 2019. E acrescentou: «Nas aulas de Composição ele fazia questão de ir ao encontro de cada um dos alunos e das suas ideias completando-as com mais informação, ou indicando um novo caminho. Foi um professor disponível, desafiante, que queria quebrar barreiras e que se adaptava a qualquer situação». 26
   Em março de 2014 José Luís Ferreira defendeu a sua tese de doutoramento, “Música Mista e Sistemas de Relações Dinâmicas” (Universidade Católica Portuguesa; orientação de António de Sousa Dias), cujas principais premissas o compositor colocava em prática em vários contextos, nomeadamente, no Laboratório Música Mista da ESML, com o Ensemble MPMP e nos projetos desenvolvidos com a Miso Music Portugal. Na tese, José Luís Ferreira defende a posição e a função do performador no campo da música eletrónica. «O papel do performador é jogar com os músicos. E este jogo mágico só acontece quando há outros» 27 – enfatizou Carlos Caires no programa de rádio Música Hoje. Segundo José Luís Ferreira, o performador não é apenas um executante, mas sim o «músico cujo objetivo primário é a realização de uma partitura em som. (...). O performador não pode ser só um executante ou só um intérprete ou um mero veículo. É, sem dúvida, na sua condição de leitor de signos que o performador se torna num meio de expressão musical dentro do campo performativo.» 28 Na tese de doutoramento José Luís Ferreira diz também: «...as relações que privilegiam a expressividade musical são as relações entre humanos e não as relações homem-tecnologia. No entanto, a liberdade de expressão performativa é conseguida quando o meio eletroacústico e o meio acústico se encontram em pé de igualdade. Esta implica que o meio eletroacústico deve ser maleável de modo que seja performável a partir de um sistema que se comporte de uma forma instrumental.» 29

   O fascínio de José Luís Ferreira pelas possibilidades oferecidas pela tecnologia no domínio da música, é inquestionável. No entanto, diria que o compositor tinha uma relação deveras saudável com os meios tecnológicos e o reflexo desta atitude podemos encontrá-lo na sua tese de doutoramento. Não é a tecnologia por si só que interessava a José Luís Ferreira. Na sua relação com a mesma, na sua investigação e na sua atividade pedagógica, o compositor procurava sobretudo traçar novos caminhos para a sua música, em cuja criação os meios tecnológicos desempenham um papel significante, mas que nunca se sobrepõem à capacidade criativa humana. São as pessoas, e não as máquinas, que através do seu métier em vários domínios ligados à criatividade artística, incluindo o da informática musical, têm a capacidade de introduzir o novo e fazer a arte progredir. Penso que esta é uma das mais importantes lições que José Luís Ferreira nos deu, que não devemos abandonar, e que deve ser parte essencial da nossa narrativa sobre ele. Nesta abordagem, José Luís Ferreira encontrou, tal como tantos outros compositores e compositoras o fizeram e fazem, o vislumbre de uma verdadeira liberdade.

julho-agosto de 2023 · © MIC.PT


José Luís Ferreira · Playlist

   
José Luís Ferreira · Spinning II (2017)
Piano a quatro mãos: Mariana Godinho (primo), José Pedro Ribeiro (secondo)
Gravação da estreia: 14 de maio de 2018, Semana da Composição da ESML – Escola Superior de Música de Lisboa
  José Luís Ferreira · L'Histoire d'amour entre... (2012)
Naoko Kikuchi (koto), Teresa Matias (flauta Paetzold), José Luís Ferreira (eletrónica em tempo real)
Gravação da estreia: 23 de abril de 2012, Guimarães – Capital Europeia da Cultura
 
   
José Luís Ferreira · Ouverture (you can pay me with brownies) (2011)
Machina Mundi: Katharine Rawdon (flautas), Elisabeth Davis (percussão)
Gravação: 2 de abril de 2011, concerto Essências do Oriente, Theatro Circo, Braga
  José Luís Ferreira · Avant [versão n.º 1] (2010)
Sond’Ar-te Electric Ensemble: Pedro Neves (maestro), Monika Streitová (flauta), Nuno Pinto (clarinete), Joana Gama (piano), Suzanna Lidegran (violino), Nelson Ferreira (violoncelo), José Luís Ferreira (projeção sonora)
Gravação: 4 de dezembro de 2010, Centro Cultural de Cascais
 
· José Luís Ferreira · “Le Bruit d’une Tête qui Frappe Contre les Murs d'une Très Petite Cellule” (2000) · Electronic Music - Vol. I & II Portuguese Composers Música Viva Competition [MCD 013/014.04] ·
· José Luís Ferreira · “Le Bruit d’une Porte qui...” (2004) · CIME/ ICEM 2010 Boucles Inter Nation Loops Inter Nations [CIME/ ICEM] ·
· José Luís Ferreira · “S(w)ynthesis” (2004-2007) · Saxofínia: José Massarão, José António Lopes, Mário Marques, Alberto Roques (saxofones) · PORTFOLIO [edição de autor] ·
· José Luís Ferreira · “Uma Mesa é uma Mesa. Será?” (2008) · Ana Mandillo (narradora), história de Isabel Martins · Contos Contados com Som – Vol. II [MCD 031.13] ·
· José Luís Ferreira · “Trópicos” (2009) · ficção sonora erótica acusmática · a partir dos textos de Henry Miller (“Trópico de Câncer” e “Trópico de Capricórnio”) ·
· José Luís Ferreira · “Glosa a «Cubic Solutions»/ 9''.41''' out of 9'.41''” (2010) · Sond’Ar-te Electric Ensemble, Pedro Neves (maestro) · CADAVRES EXQUIS Portuguese composers of the 21st century [MCD 036.13] ·
· José Luís Ferreira · “I stole a bar from Leo” (2010) · Pedro Rodrigues (guitarra) · gravação: Festival Música Viva 2010 ·
· José Luís Ferreira · “L'Histoire d'Amour entre...” (2012) · Monika Streitová (flauta), Pedro Rodrigues (guitarra), José Luís Ferreira (eletrónica) · Machina Lírica [Slovart Music] ·

NOTAS DE RODAPÉ

1 A obra “Avant” existe em três versões. Duas, de 2010 e 2011, José Luís Ferreira menciona na sua tese de doutoramento, “Música Mista e Sistemas de Relações Dinâmicas” (Universidade Católica Portuguesa, março de 2014). Sobre a terceira o maestro Jan Wierzba disse ao MIC.PT em 2019: «Gravamo-la com o Ensemble MPMP, num CD por editar ainda, com o José a tocar connosco, tendo feito dois concertos. Era uma terceira versão da peça, feita especificamente para estes concertos e gravação. É-me especial porque participei no seu desenvolvimento, e para o José porque foi um processo de trabalho em que teve amigos muito próximos envolvidos na construção da peça e a sua gravação: Tatiana Rosa, Daniel Bolito, Miguel Costa, Isa Antunes, Catarina Távora, Philippe Marques, Duarte Martins e Luís Delgado» (Em Foco do MIC.PT de março de 2019).
2 De acordo com: Jakub Szczypa, “Em busca do potencial electroacústico. Entre o frio do Japão e de Portugal”; Espaço Crítica para a Nova Música; 18 de dezembro de 2010.
3 José Luís Ferreira, “Música Mista e Sistemas de Relações Dinâmicas”, tese de doutoramento sob a orientação de António de Sousa Dias; Escola das Artes – Universidade Católica Portuguesa; março de 2014; p. 121.
4 Tom Service, “Musical lives cut short isn't just a rock'n'roll phenomenon”; “Tom Service on Classical Music”, The Guardian, 15 de fevereiro de 2012. Tradução para português: Jakub Szczypa.
5 Tom Service, “Musical lives cut short isn't just a rock'n'roll phenomenon”. Op. cit. Original: «…casting them as figures who lived at a fever pitch of inspiration and genius, the existential cost of which was a Faustian pact with early death». Tradução para português: Jakub Szczypa.
6 Termo usado por José Luís Ferreira na sua tese de doutoramento, “Música Mista e Sistemas de Relações Dinâmicas”. Op. cit. O termo «performador» (e as suas derivações, «performação», etc.) José Luís Ferreira explica no Capítulo 2 da tese, “Reflexões sobre o performador, o intérprete e a performação”: «Preferimos, no decurso da nossa investigação, optar pela utilização do termo performador para designar o músico, cujo objetivo primário é a realização de uma partitura em som, em detrimento das designações habituais na língua portuguesa de executante ou intérprete e por considerarmos que estes não são suficientes para caracterizar esta tarefa. O termo performador, na língua portuguesa, é pouco utilizado no âmbito das artes musicais. Serve habitualmente para designar um artista multifacetado que combina, nas suas apresentações, várias formas de expressão.» (p. 49).
7 Miguel Azguime no Em Foco do MIC.PT de março de 2019.
8 Mais informações sobre a edição do Festival Música Viva de 2019 disponíveis em: LIGAÇÃO.
9 Mais informações sobre o Projecto DME disponíveis em: LIGAÇÃO.
10 Em Foco do MIC.PT de março de 2019, dedicado a José Luís Ferreira.
11 Os dois programas de rádio Música Hoje (produzidos pela Miso Music Portugal e pelo MIC.PT para a Antena 2) estão disponíveis para ouvir através do RTP – Play.
12 Philippe Trovão no Em Foco do MIC.PT de março de 2019.
13 Termo usado por José Luís Ferreira na sua tese de doutoramento, “Música Mista e Sistemas de Relações Dinâmicas”. Op. cit.
14 Mais informações sobre o Laboratório Música Mista – José Luís Ferreira da ESML, disponíveis em: LIGAÇÃO
15 Entrevista do MIC.PT a José Luís Ferreira, publicada na secção Em Foco do MIC.PT em novembro de 2013.
16 Ibidem.
17 Ricardo Guerreiro no Em Foco do MIC.PT de março de 2019.
18 Ibidem.
19 Entrevista do MIC.PT a José Luís Ferreira, publicada na secção Em Foco do MIC.PT em novembro de 2013.
20 Termo usado por José Luís Ferreira na sua tese de doutoramento, “Música Mista e Sistemas de Relações Dinâmicas”. Op. cit.
21 Em Foco do MIC.PT de março de 2019, dedicado a José Luís Ferreira.
22 Ibidem.
23 Os dois programas de rádio Música Hoje em que participaram amigos, alunos, professores e colaboradores de José Luís FerreiraAntónio de Sousa Dias, Carlos Caires, Miguel Azguime, Philippe Trovão e Pedro Boléo (moderador da Mesa Redonda) – foram transmitidos a 8 e 22 de fevereiro na Antena 2 e estão disponíveis para ouvir através do RTP – Play.
24 Ibidem.
25 Philippe Trovão no Em Foco do MIC.PT de março de 2019.
26 Ibidem.
27 Os dois programas de rádio Música Hoje em que participaram amigos, alunos, professores e colaboradores de José Luís FerreiraAntónio de Sousa Dias, Carlos Caires, Miguel Azguime, Philippe Trovão e Pedro Boléo (moderador da Mesa Redonda) – foram transmitidos a 8 e 22 de fevereiro na Antena 2 e estão disponíveis para ouvir através do RTP – Play.
28 José Luís Ferreira, “Música Mista e sistemas de relações dinâmicas”, tese de doutoramento sob a orientação de António de Sousa Dias; Escola das Artes – Universidade Católica Portuguesa; março de 2014; p. 49 e 66.
29 José Luís Ferreira, “Música Mista e sistemas de relações dinâmicas”. Op. cit., p. 16.

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