Autor do Texto Bernardo Soares
Título do Poema ou Texto "Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa."
Título da Publicação O Livro do Desassossego
Letra Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa.
A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Por mais que por mim me embrenhe,
Todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Autor do Texto Alberto Caeiro
Título do Poema ou Texto "Se às vezes digo que as flores sorriem..."
Título da Publicação Poemas
Letra Se às vezes digo que as flores sorriem
e se eu disser que os rios cantam,
não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
e cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
a existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
à sua estupidez dos sentidos...
Não concordo comigo, mas absolvo-me,
porque só sou essa cousa séria, uma intérprete da Natureza,
porque há homens que não percebem a sua linguagem,
para ela não ser linguagem nehuma.
Autor do Texto Álvaro de Campos
Título do Poema ou Texto Lisbon Revisited
Letra Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano, tributável?
Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó ceu azul - o mesmo da minha infância -
eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora e de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
Autor do Texto Maria José
Título do Poema ou Texto Horizonte
Título da Publicação Mensagem
Letra \u00d3 mar anterior a n\u00f3s, teus medos
tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerra\u00e7\u00e3o,
as tormentas passadas e o mist\u00e9rio,
abria em flor o Longe, e a sul sid\u00e9rio
esplendia sobre as naus da inicia\u00e7\u00e3o.
Linha severa da long\u00ednqua costa -
quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
em \u00e1rvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
e no desembarcar, h\u00e1 aves, flores,
onde era s\u00f3, de longe a abstracta linha.
O sonho \u00e9 ver as formas invis\u00edveis
da dist\u00e2ncia imprecisa, e com sens\u00edveis
movimentos da esperan\u00e7a e da vontade,
buscar na linha fria do horizonte
a \u00e1rvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
os beijos merecidos da Verdade...
Autor do Texto Maria José
Título do Poema ou Texto "Ela canta, pobre ceifeira..."
Título da Publicação Cancioneiro
Letra Ela canta, pobre ceifeira,
julgando-se feliz talvez;
canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
de alegre e anónima viuvez,
ondula como um canto de ave
no ar limpo como um limiar,
e há curvas no enredo suave
do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
na sua voz há o campo e a lida,
e canta como se tivesse
mais razões p’ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
Derrama no meu coração
a tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
e a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
minha alma a vossa sompra leve!
Depois, levando-me, passai!
Autor do Texto Ricardo Reis
Título do Poema ou Texto "A palidez do dia é levemente dourada"
Título da Publicação Ficções de Interlúdio / Odes
Letra A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas dos troncos de ramos secos.
O frio leve treme.
Desterrado da pátria antiquíssima da minha crença, consolado só por pensar nos deuses, aqueço-me trémulo a outro sol do que este.
O sol que havia sobre o Partenon e a Acrópole O que alumiava os passos lentos e graves de Aristóteles falando.
Mas Epicuro melhor me fala, com a sua cariciosa voz terrestre tendo para os deuses uma atitude também de deus, sereno e vendo a vida à distância a que está.
Não consentem os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos, que nos alce a irrespiráveis píncaros, perenes sem ter flores.
Só de aceitar tenhamos a ciência, e, enquanto bate o sangue em nossas fontes, nem se engelha connosco o mesmo amor, duremos, como vidros, às luzes transparentes e deixando escorrer a chuva triste, só mornos ao sol quente, e reflectindo um pouco.
Estas quatro canções utilizam como texto excertos de obras de diversos heterónimos de Fernando Pessoa. Cada uma delas pretende apresentar uma faceta correspondente ao carácter ou ambiente que a personalidade do respectivo heterónimo transmite no poema (bucolismo, melancolia, tristeza, decepção, ironia, raiva, etc.). A parte electroacústica foi realizada no estúdio do compositor e no Estúdio de Música Electroacústica da Universidade de Aveiro.
João Pedro Oliveira