Duo formado por Miguel e Paula Azguime, que se estreou há 40 anos, em 1985, e que continua a marcar a criação musical contemporânea - o Miso Ensemble está Em Foco no MIC.PT em abril.
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Categoria Musical Solista(s) e Orq./Ens. e/ou Coro/Conjunto Vocal
Instrumentação Sintética Tenor e Orquestra
Estreia
Data 2005/Dec/18
Intérpretes
João Rodrigues (tenor)
Orquestra Metropolitana
Brian Schembri (direcção)
Local Reitoria da Universidade de Lisboa - Aula Magna
Localidade Lisboa
País Portugal
Texto
Autor do Texto Violeta Figueiredo
Título do Poema ou Texto Fala Bicho
Notas Sobre a Obra
Esta obra resulta de uma encomenda da Rádio Difusão Portuguesa com o objectivo de ser estreada no Concerto de Natal em 18 de Dezembro de 2005.
Baseia-se em textos infantis de Violeta Figueiredo extraídos do seu livro “Fala Bicho”, tendo como principal destinatário um público mais jovem. Mas o conceito de jovem pode facilmente ser assumido dos sete aos setenta anos. Não fiz nenhuma concessão especial na abordagem dos materiais. A música não é sempre saltitante e lampeira. Tem também momentos de grande introversão e melancolia. Os andamentos rápidos alternam com os mais lentos e, como é recorrente na minha escrita, a obra apresenta uma forma simétrica relativamente a um andamento central. Como se fosse um boomerang, esta peça com sete andamentos encontra no seu quarto andamento o eixo de simetria a partir do qual se podem achar vários tipos de correspondências musicais e arquitectónicas.
Eis uma pequena apresentação de cada andamento:
1.Na terra dos tigres existem duas secções. A 1ª tem um gesto vivo e ágil como um felino. O fraseado é destacado. As madeiras alternam com as cordas. A harpa e as claves pontuam o fraseado. A 2ª secção é uma valsa. Aqui o fraseado é legato. O cantor assume um tom sonhador, como que deslizando em patins num ringue imaginário com as mãos atrás das costas, dando impulsos ora com o pé esquerdo, ora com o pé direito ao ritmo do pêndulo ternário.
2.Traça, é um andamento lânguido. Quis assim representar a vida secreta da traça, com as suas melancolias, com os seus segredos, com os seus temores. A música atinge o clímax precisamente quando o texto canta que a traça “à solta não sobrevive, sufoca com o ar livre”: que bela metáfora dos tempos modernos!
3.A carocha tem uma vitalidade singular. A orquestra ora está em pontas, ora está em chamas. O cantor debita um texto altamente rítmico em rápida declamação. Por vezes ergue-se num registo de cobra capelo até ao dó sobre agudo. Outras vezes sussurra no registo grave sobre pedais obsessivas da harmonia. Toda esta energia se contrai, se expande, se difunde e, finalmente, se projecta num desenho ostinato de marimba perdendosi, qual cão fugindo a ganir, ao longe.
4.O fax do papagaio é o eixo nevrálgico da peça. A música é inicialmente enigmática, com as sonoridades sulfúricas e lunares dos tons inteiros. Progressivamente, vai ganhando ternura, tornando-se afectuosa em suaves vórtices, atingindo um arroubo de paixão quando o papagaio, sofrendo dos males de amor, se declara à arara. Prezo a volatilidade deste poema: nuvens soltas, clara lua, aurora...
5.O gafanhoto é um andantino espressivo com melodias rasgadas em arcos generosos de grande âmbito e plenas de luminosidade. O gesto é mimoso e molto cantabile. A história deste gafanhoto tem enlevo e a sua cadência, bem portuguesa, inspira distância, tempo antigo e saudade. Por isso a música ganha essas cores finais de aguarela, com glissandi hipnóticos na harpa interrompidos por uma cadência triste, num mi menor oblíquo, cinzento e chuvoso.
6.O que faz a minhoca é o meu poema dilecto:
Sem esforço e sem guerra,
Minhoca de anéis suaves
Faz na terra o que no céu
Fazem as aves:
Abre espirais incompletas
Para todo o sempre secretas
É com poesia desta que a criança adivinha o adulto que há em si. Lê, fecha os olhos e eleva-se na experiência redentora que só a poesia sabe dar. A música tenta decantar este estado poético num registo intimista que vai desde a ressonância antiquíssima do canto, com fragrâncias da Beira-Baixa, até às citações tangenciais de Mahler e de Debussy, mestres que iluminam a minha vida.
7.O crocodilo: tal como no 1º número, há uma alternância entre uma secção viva e toda lampeira, como o intrépido rapaz que andava a nadar no rio Nilo, sem medo de crocodilos, e uma secção em tempo de valsa, cheia de galhardia. O boomerang está a chegar ao fim. Mas antes disso o rapaz dá a volta ao crocodilo, perguntando-lhe num egípcio imaginário se sabe nadar em marcha-atrás: “Claro que sei, meu rapaz!”, disse o crocodilo às arrecuas.
E cada um segue o seu caminho nas mansas águas do Nilo. Fim.
Eurico Carrapatoso, Lisboa, Setembro de 2005