Em foco

Cândido Lima


Questionário / Entrevista

PARTE I - raízes e educação

Como começou para si a música? Onde identifica as suas raízes musicais? Que caminhos o levaram à composição?

Canções de roda, canções e jogos de sedução, canções de ceifa, vindimas e desfolhadas, nos campos e nos montes, música litúrgica, sons de órgão de tubos na igreja, os campanários das aldeias à volta (na minha aldeia, pendurado nos sinos, “bamboleava” (“bamboava”) com eles, ao lado de um “corcunda de Notre Dâme”!), salmodias de rezas de multidões, o murmúrio ou as imprecações de ladainhas intermináveis, vozes divinas de familiares na igreja, bandas filarmónicas, gaitas de foles e zabumbas ou zés pereiras, vozes ambulantes das estradas das trabalhadoras da seca do bacalhau, lenga-lengas dos trabalhadores da pedra, vozes de teatro popular, vozes de chamar ao longe através das árvores, os bandolins e os violões com vozes fadistas de família, os cantos da poesia de cordel da segunda grande guerra, as contradanças e os cantares e salmodiares do Auto da Floripes nos espaços simulados dos campos de batalha (mouros e cristãos, nas festas da aldeia), serezinas e cantares de pássaros e de toda a natureza à volta, o som das chuvas diluvianas e as tempestades tropicais minhotas por terra, por ar e por mar como espectáculos atmosféricos audiovisuais, as águas do oceano e do rio Lethes, os sussurros dos ribeiros e os barquinhos infantis, as águas das fontes, a busca dos ecos das nossas vozes no vale, os movimentos em ziguezagues frenéticos de bandos de pombas, minhas e dos meus irmãos, como “nuages” em “randomwalk”, os sons e as piruetas dos rebanhos, os sons de um tear, os crepitares das fornalhas, os sons da forja, os sons das oficinas e dos artesãos, os ritmos das eiras, as roncas dos navios ao longe, os sons dos comboios por entre os pinhais, as nuvens de sons das girândolas e dos fogos de artifício, as bandas filarmónicas, os tocadores de concertina e de harmónicas de boca, os realejos, flautas de canas e de ervas dos campos e dos paúis, a vozearia, a algazarra e os folguedos das festas da aldeia, das romarias, das procissões e das peregrinações.

Haveria de ler, ano mais tarde, Eliot Carter falar de Mahler e da sua experiência multiespacial das músicas das regiões austríacas, estas mesmas que eu tinha vivido na infância, e que tentei evocar em obras, inadvertidamente, ou conscientemente, como em “Músicas de Villaiana – Coros Oceânicos”, em 2008-2009, um longo flashback cinematográfico de infância onde, na Parte IV, são utilizados flautas, apitos, cucos e outros instrumentos rudimentares que comprava nas barracas das festas da aldeia, e que uma minha irmã me tinha oferecido recentemente (adivinhava lá ela as funções que eles iriam desempenhar durante os sons para as imagens da serra d’Arga, misturados com sons electrónicos e electroacústicos!

Na mesma época juvenil, músicas do Programa 2 da Emissora Nacional, nas tabernas e na casa de vizinhos ou em pequenos aparelhos de rádio ou transístores (rádio galena!, construídos por colegas habilidosos, para ouvirmos futebol e música, eu), que me emprestavam para ter em casa, ou no quarto (em Braga!, às escondidas…), após seleccionar clássicos nos programas de rádio que consultava em O Comércio do Porto ou no Diário Popular, diários que um familiar lisboeta e família de duas “fidalgas” vizinhas (com dois pianos verticais) enviavam ao meu pai. Historietas musicais de pequenos livros que me ofereciam ou que eu comprava com dinheiro de bolso, avivavam a paixão pela música e pelas vidas dos compositores (uma antologia de pequenos trechos de harmónio comprado em Paris, pelo professor de harmónio, custou 95$00, e foi pago por subscrição familiar, como haveria de ser mais tarde com a compra de um piano que me haveria de fazer companhia na Guiné!). Sem noção alguma do sentido disto, para além de uma sofregidão e atracção interior irresistível solitária.

Foi rodeado e banhado, assim, por esta multicultura, a minha infância, a minha adolescência e a minha juventude, num mundo ao mesmo tempo profundamente religioso e profano, coabitando com uma espécie de panteísmo e uma religiosidade híbrida de paganismo e de cristianismo, ao mesmo tempo feliz e melodramático, pobre e resignado, alegre e sombrio, rural e proletário, dramático e folgazão. Eu, rural e urbano, campesino e erudito, monástico e romântico, místico e sonhador.

Aos 13 anos, em Braga, no seminário, no quadro do sistema escolar, iniciei-me no estudo do solfejo, enquanto ouvia os cânticos e músicas pelos mais velhos, em repertório litúrgico e profano do coro de dezenas de crianças dos 1º, 2º, 3º e 4º anos da casa, de que recordo sonoridades encantatórias do Exultate Justus de Viadana e os inesquecíveis sons do Eco de Orlando Lassus, que nem hoje a internet, nem os concertos, nem a discografia me dão igual, ou próximo. Nada que apague essa memória do Eco nas vozes desses adolescentes.

Nesse período de juventude entrou na casa de meus pais uma grafonola com dezenas de LPs de 78 rotações que um tio emigrante (que os deuses levaram cedo), padrinho do meu irmão mais velho a quem a deixou em herança. Na pequena cozinha da pequena nossa casa, pus, com expectativa, a rodar um dos discos. Recordo esse momento como uma entrada num qualquer paraíso, tal o impacto das vozes e dos instrumentos no meu corpo e alma. Além dos instrumentos e das vozes, era a música que eu nunca tinha ouvido antes, senão por pequenos grupos e em livros de reduções para piano: tangos, onesteps, valsas, valsas-java, marchas, foxtrots, etc.. A internet permitiu-me descobrir alguns desses momentos mágicos para um adolescente, e desses momentos reencontrei-me com os inesquecíveis Comedian Harmonists, sexteto vocal, com piano, vozes de várias nacionalidades, que me marcou tanto que a minha memória conservou, até hoje, as suas músicas. Eles fizeram as minhas delícias durante anos, em tempo de férias: as vozes e o piano de “Les gars de la marine” (marcha do filme Capitão Craddock) e as vozes e a harmonia de “Quand la brise vagabonde” (slowfox do mesmo filme), uma marcha de marinheiro (honra aos marinheiros da minha família, pai e irmão Artur), e uma canção romântica que ouvi vezes sem conta, alheado dos textos que mal traduzia, de onde destacava combinações que implantaram na minha memória objectos sonoros, os monemas, que só agora descodifiquei na leitura dos poemas via internet! Muitos desses textos iam contra toda a ortodoxia religiosa, o quadro académico em que vivia, pois exprimiam todas as formas de amor romântico, do mais terno ao mais virulento e dilacerado tango argentino ("La Cumparsita", "Adiós Muchachos" e Carlos Gardel no meio!), luminosas e requintadas harmonias, ritmos de dança da época e técnicas de encadeamentos harmónicos absolutamente invulgares, sonoridades nasais na orquestra de clarinetes e saxofones, de trombones e de de percussões, de violinos “à Heifetz” a banjos “à jazz” americano no acordeão e na orquestra de Maurice Alexander. Desafiando, clandestinamente, a ortodoxia vigente familiar, paroquial e institucional, tangos e o erotismo inocente de outras músicas de salão, tocava eu com um trio de músicos (violino, bandolim e guitarra), músicos que haviam de fazer parte das Orquestras Nacionais do Porto (violino) e Lisboa (violoncelo), em festas de Carnaval e mais tarde no Conservatório de Braga, em bailes de angariação de fundos na casa do Campo Novo, tudo isto até à volta dos 20 anos, um deles havia de tocar comigo em Bissau, na Associação Comercial, naquelas sessões do Movimento Nacional Feminino!

Todo este quadro identificará, talvez, o início, as raízes, os caminhos, pelos menos os palpáveis, que me levaram à composição. Não sei é se este quadro identifica as causas e explica os caminhos heterodoxos que por iniciativa própria segui, como um marginal, em caminhos alheios e hostis, mesmo nos quadros profissionais futuros, de escolas como instituições, de escolas como movimentos estéticos, caminhos que me levaram à música contemporânea no seu sentido em que eu a entendo, que me conduziram à música que fui escrevendo numa evolução crescente, inconsciente disso, ao longo de décadas, das mais simples e funcionais ou de circunstância às mais sofisticadas e absolutas, à margem de funções transitórias ou efémeras. A música que escrevi desde muito cedo situava-se à margem dos sistemas e dos paradigmas de pensamento de todas as instituções que percorri: da aldeia à cidade, dos Conservatórios e Escolas de Música à Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, dos conservadores e neoclássicos aos contemporâneos da Escola de Viena e aos serialismos de Boulez, de Nono ou de Stockhausen. Apenas no estrangeiro tive acolhimento natural e espontâneo! Explicação desde os princípios e os caminhos, sem resposta!

Que momentos da sua educação musical se revelaram de maior importância para si?

Tudo se processou ao longo do tempo sem ter noção de descontinuidades ou de delimitação de etapas, porque tudo aconteceu de forma natural, simples, no que respeita à separação hierarquizada ou estratificada da actividade de jovem: o estudante civil (programa liceal), o estudante religioso (colégio interno com sistema e linhas programáticas de predominância católica, apostólica, romana, mas o sacro e profano coexistindo no litúrgico!), o estudante de solfejo (a mais alta classificação desde a primeira avaliação no 1º ano de escolaridade, o que revela ouvido excepcional, característica presente em toda a família), o futebolista, o organista, o pianista, tudo isto entre a adolescência e a juventude. Aos 15 anos, eu e mais uns colegas pedimos ao director do coro e professor de solfejo, um excelente músico, autor de cânticos litúrgicos, para nos dar lições de harmonia! Queria compor, ninguém me disse o que era composição, no entanto tive a iniciativa de pedir essas aulas à margem do curriculum escolar. Guardo apenas dessas escassas lições a escrita de um acorde perfeito em forma de escala, apenas um contacto físico, visual, com o acorde (o professor escrevia apenas música funcional litúrgica, por intuição e prática, mas não possuía conhecimentos técnicos de composição). Já em férias fiz a mesma tentativa com outro autor de algumas melodias religiosas, pároco de aldeia. Sem sucesso.

Nessa idade copiava músicas, fossem litúrgicas, fossem profanas, para harmónio. Até corridinhos para piano, já no Curso de Filosofia, idade de nível secundário de liceu. Eram emprestadas por estudantes mais velhos (com familiares emigrantes no Canadá, nos Estados Unidos da América, na América do Sul e na Europa, de Paris trazidos pelos meus irmãos emigrados em França (que foram uma presença luminosa, em Paris, ao longo dos anos, até hoje!), ou vindos de outras bandas, pagos por outro irmão, este, marinheiro. Data desta época uma sua compra, em Cabo Verde, a Americanos, de um gravador de bobinas, um “National”, base tecnológica (!) da música futura para Morte de um Caixeiro Viajante, com encenação de João Guedes. Nesse tempo, em férias, mandei vir do Porto um livro de composição, sem pedir conselho a ninguém, pois não havia ninguém que mo pudesse dar. Mandaram-me, da Biblioteca Musical do Porto, o hermético Manual de Harmonia de Tomás Borba, que lia, mal compreendia, mas não deixava de olhar para os exemplos clássicos, que incluíam alguns dos maiores autores do séc. XX, de Debussy e Ravel a Stravinsky e a Schoenberg. Era a idade dos 16 anos, “a idade dos versos”, como um dia me havia de dizer, gentilmente, o Professor Croner de Vasconcellos. Claro que guardo esse livro religiosamente, como uma pérola da inocência. Ainda me lembro de ouvir um conterrâneo, Amadeu Torres-Castro Gil, poeta (amigo de Sebastião da Gama no Caramulo), ao fundo de umas escadas, no Seminário Menor, comentar para esse talentoso compositor de música litúrgica, a propósito de algo de especial que terá composto recentemente: “Parece que até lá tem uns acordes de 9ª!” - “É verdade…”, confirmou, com um trejeito de rosto, como tendo cometido uma façanha. E eu pensava com os meus botões: ”O que será um acorde de 9ª? Deve ser…” Lembro isso com uma precisão e encantamento absolutos! Lembro-me deste sacerdote se referir a música que alguém escreveu com uma frase que sempre me chocou: “Foi muito feliz…”, e eu dizia com os meus botões: “Feliz, quer dizer “porque calhou”, e não por algo de mais sólido e permanente”. Para mim “feliz”, significava “teve sorte!...”, como se disséssemos: “a Arte da Fuga é uma obra feliz”, “a 5ª sinfonia é uma obra feliz”, e por aí fora. Tem algum sentido, naquele contexto, mas eu já nessa altura achava esquisito e desvalorizador, quando não era, claro, antes um elogio. Estudava harmónio, e de lição para lição não apresentava a peça marcada pelo professor, apresentava outra mais avançada. Nunca deu por isso, o senhor, organista e boa pessoa (recordo-o, sempre rodeado de rapazes, no recreio, à gargalhada, e eu invejava-lhe esse sentido de humor! Literalmente!)

Percorria os alfarrabistas da Arcada e o Asilo Conde de Agrolongo (hoje dir-se-ia Lar de Terceira Idade), em Braga (uma edição rara, segundo uma especialista em Cervantes, do D.Quixote!), e mais tarde na Rua do Poço dos Negros, em Lisboa (sem falar em Paris) e mandava-me livros em saldo um primo de Valladolid. Nestas buscas encontrava clássicos, românticos, música espanhola, música de salão de toda a espécie e transcrições de ritmos de bandas americanas que tive pudor em tocar nas igrejas, tão dançantes elas eram!

É desta idade de infância a ideia de um dia compor uma obra sarcástica sobre a tropa e sobre o cornetim que do quartel atravessava o espaço e nos acordava pelas 6 horas da manhã! Lembro-me de pensar nessa época: “se um dia fosse compositor, gostava de gozar com este cornetim e com a tropa!...” Nascia a “Burlesca”, para piano, escrita marginalmente ainda antes dos estudos gerais do Conservatório de Braga, oito anos mais tarde, e dez anos depois, a versão para dois pianos, é essa lembrança (conhecia lá eu Prokofiev ou Bela Bartók!, ou a politonalidade!, tão presentes nesta espécie de opus 1…estreada em 1993, no Brasil e em Portugal). O mesmo desejo desse tempo de um dia transportar para uma sala de concerto, aqui, sem sarcasmo ou ironia, antes com humor e ternura, as contradanças do “Auto da Floripes”, teatro popular da minha aldeia e da minha infância. Fi-lo, mais tarde, para dois pianos a oito mãos. E escrevi, aos 17 anos, duas missas, que guardei a lápis, até uma inundação há uns anos me obrigar a alijar de casa centenas de papéis, e deixei afogar essas ingenuidades de adolescência no lixo caótico dos contentores.

A posteriori, com a distância de anos, podemos encontrar aqui etapas de importância variável, incluindo as aulas marginais de harmonia, baixo cifrado romântico, labiríntico, certamente dos seus estudos académicos da Universidade Pontifícia de Roma!, no 5º ano, pelo ilustre compositor Manuel Faria, músico de imensos talentos e especialista em canto gregoriano. Essas aulas semanais, também à margem do curriculum escolar, foram de iniciativa minha, acompanhado de um outro colega, o José Barbosa, um dos mais brilhantes estudantes da época e uma das pessoas mais amáveis e serenas que conheci até hoje. Tudo se passava numa unidade de vida, nos confins da consciência. Foi, talvez neste período dos 18 anos que que se começaram a misturar, a colidir e a bifurcar dois projectos de vida antagónicos, para mim aparentemente complementares: ser artista, ser compositor, ser pianista, e ser o que me levou, por minha vontade, a tal instituição, e que o destino obrigava, sem ajuda, nem consciência plena sobre opções, a dúvidas impossíveis nos meios em que me movia. Era uma época em que me começava a distinguir também como jogador de futebol (estranho para tanta gente, mais estranho ainda, um dia, após termos jogado no campo ao lado do Estádio 28 de Maio, do S.C. Braga, ter sido contactado para integrar a equipa de juniores do clube (!). Começava seriamente a vida dramática do músico e do desportista em confronto com as obrigações escolares e religiosas, e a distinção entre a liberdade e a natureza de um indivíduo e os fundamentalismos e talibanismos do regime, urbano e rural (não esquecer que as aulas de filosofia, já de si difíceis, eram em latim!). Falo da idade dos 18-19 anos. O facto de começar a ter grande destaque como organista na Igreja de Santiago (Curso de Filosofia e Humanidades), lugar de culto comum ao povo da cidade e aos estudantes, como organista, ainda muito jovem, e como organista da Sé Catedral, ultrapassando os estudantes dos anos mais avançados, gerou admiração, mas não por todos bem recebida, incluindo professores, o que me havia de trazer grandes dissabores.

Foi uma época de 4 anos em que explorei ao máximo as minhas funções de organista para expandir as minhas pesquisas de repertório e de modos de desenvolver técnicas de teclado, comuns ao órgão e ao piano. No coro, o maestro Padre Bompastor, pedia-me por vezes, em tempo real, dir-se-ia hoje, para transpor, no órgão, músicas à primeira vista, para comodidade das vozes dos estudantes. O facto de começar a ser chamado pelo Reverendo Alberto Brás, Maestro do Seminário Maior (ensaiador das minhas tias e irmãs no coro litúrgico das festas da aldeia), para as grandes cerimónias da Sé Catedral, estimulou, da mesma forma, irreversivelmente, esse desejo de alargar as possibilidades técnicas instrumentais e de repertório. E sem dar por isso alargá-las à composição e ao meu futuro não previsto de músico. (Pensava muito neste tempo, quando alunos ou colegas se admiravam, nas Escolas de Música, das minhas leituras à primeira vista, ou das minhas improvisações). Passagens do Lohengrin, do Tanhäuser ou do Parsifal, as harmonias da Boémia, da Tosca, da Madame Butterfly, da Cavalleria Rusticana, de partituras de velhas senhoras, vizinhas de férias, passavam sem censura. Bach, César Frank, versões adaptadas de clássicos inundavam as igrejas por onde passava. Obras de organistas de catedrais europeias de influências gregorianas e modernas de Respighi, Casella, Debussy, Ravel, Prokofiev, Puccini. Desafiava a ortodoxia, e fazia, em público, de improviso, como exercício, transposições de músicas litúrgicas, correndo riscos de erros ou de cenas como a que provocou a sonora gargalhada do “chantre”, por não ter conseguido terminar a entoação, correcta, mas fora da sua “zona de conforto”, do versículo “Benedicamus Domino” (“canta, Américo, canta Américo!”, incitavam os colegas, o organista insistia com o tom, sempre agudo, o Américo não cantava e a cerimónia parada (”maroto!”, diria a minha mãe para mim), e ataca o “Benedica….” com uma sonora gargalhada, sem a sílaba “…mus”, ficando no “ca”, gargalhada que se estendeu aos estudantes, mais de uma centena. Com a multidão à espera, e após a gargalhada da rapaziada, num tom que lhe dei, com a mais seráfica inocência, muito acima das suas posses (vocais…), a partir do órgão ali ao lado, a um metro, no Altar-Mór, obrigando à paragem da cerimónia e provocando uma gargalhada geral em plena igreja! (Faz lembrar a história recente da senhora Chantre do “salmo desafinado” “Senhor! Senhor! Tu tens a pala…(vra, era a seguir)…” “está muito alto! está muito alto…”, diz a senhora, embaçada, ao organista, no delicioso sketch de televisão mundializado no YouTube!, igreja do sul, sem estudantes em massa para o descalabro disciplinar da ordem pública e a gargalhada espontânea nos rituais da tarde).

Fui chamado, claro, à Direcção da Casa, mas protestei a minha inocência. O ar sério com que reagi a esse acto de ruptura, de irracionalidade e de irreverência, denunciava-me. Mas ninguém o poderia provar…E sinto-me feliz ainda hoje ao recordar esse episódio, como outros que protagonizei na mesma época, sempre episódios de natureza musical de semânticas diversas, contrastantes, irreverentes e provocatórias! Era a busca da liberdade em todos os sentidos do som. Do humor e do sorriso sadios. Mas não esperava a gargalhada…Esperava qualquer coisa de insólito: o quê? não podia prever!...

Fui, em 2011, com dois amigos e antigos companheiros, fazer uma visita a essas quatro casas de infância e de juventude, a Braga! Um tsunami passou pelos órgãos dessas instituições, agora, paradoxalmente, substituídos por pianos verticais! O mundo ao contrário! Ou não…O profano a sobrepor-se ao sagrado, se é que podemos ver o sagrado num órgão (o meu órgão da Capela da Universidade de Coimbra para o teatro da Morte do Caixeiro Viajante) e o profano no piano (o piano na Igreja da Cedofeita no funeral de Helena Sá e Costa). Órgãos de tubos magníficos, o meu paraíso da juventude, inutilizados e em ruínas como se tivessem passado por esses lugares (Rua de S. Domingos, Rua Santa Margarida, Largo de Santiago e Sé Catedral) hordas de talibãs destruindo os seus budas ou destruindo os músicos e cantares afegãos, num retorno aos fundamentalismos medievais (de hoje ainda!) da música instrumental nas igrejas.

O humor nato ou adquirido foi sempre uma arma de superação dos contrastes e conflitos com o mundo que me rodeou sempre. Sempre por música. Essas transposições das músicas do quotidiano, bem como o estratagema de pedir autorização de mais tempo para estudar, novas músicas do repertório de coro (o estudo autorizado era apenas meia-hora por dia!), era pretexto para estudar outras obras e desenvolver técnicas pianísticas, já que não precisava de ir estudar as músicas que me davam para as cerimónias. A igreja, local de culto, foi, para mim, sem dar por isso, uma sala de concerto e um espaço multifuncional, o órgão, como interlocutor, um tubo de ensaio, os cânticos, em latim e em vernáculo, cobaias de jogos radicais, pois corria riscos em directo ao fazer transposições e ler à primeira vista para dinamizar a rotina quotidiana. Andei na clandestinidade, em privado e em público! Nunca imaginei este exercício como uma preparação para o futuro de músico, fazia-o como um exercício mental de aperfeiçoamento puro, sem um fim, como diria a filosofia kantiana. Pequenos episódios marginais, como o ter sido expulso, ao contestar uma ordem que os próprios colegas presentes consideraram injusta tomando a minha defesa (eu estudava harmónio, ele jogava cartas, e pelos, vistos distraía-o: mandou calar a música!). Com os pedidos de desculpa (a família nunca soube!), fui readmitido. Havia de passar por situações semelhantes no serviço militar, na Europa e em África, com ameaças de sanções e de ameaças de “ir pró mato” (!!!) por discordar de certas ordens ou intervenções arbitrárias de alferes, capitães, majores ou coronéis (Sanches, Cunha Rodrigues, Matos, Leandro, Roldão, todos com ar de poetas!). Desde cedo combati os abusos de poder das hierarquias, com o risco da própria vida (real no caso da Guiné, onde, em Bolama, tinha o meu piano ido da aldeia!! Nem a guerra me venceu!). Também tive uma “ameaça” na Cerca de Mafra, durante os exercícios de tiro. Como não atinava com a arma, ou com o alvo, o comandante da companhia aproxima-se de mim (já todos tinham cumprido a missão), e ameaça-me: “Se não fizer o mínimo, não o deixo ir mais à Gulbenkian!” (tinha autorização para ir aos ensaios do Coro Gulbenkian, era bolseiro e ia às aulas de composição e de piano, ao sábado, ao Conservatório…o que levou um cadete, num café de Mafra, um dia à noite, a perguntar-me, ao balcão: ”tu és mesmo filho do Gulbenkian?”). E já no Quartel de onde seria mobilizado para o Ultramar (RAL1), com autorização de sair após o almoço para as aulas de piano ou de composição: “Estás sempre a sair do Quartel! Como conseguiste isso?” Respondia: “sei lá!...”. Outros perguntavam, com desdém: ”Como consegues estar sempre a sair do quartel?”. A esses eu respondia com tranquila ironia: “Eu sou bom…” (chamavam-me o Paganini!).

Mas entre estas duas etapas da vida está o Conservatório de Braga, onde completei o Curso Geral de Harmonia e de Piano. Aí tive a primeira e única lição sobre dodecafonismo (1964), com o professor de contraponto Dr. Vítor Macedo Pinto. As 4 Peças dodecafónicas, Começa a Haver Meia-Noite e Paúis (Fernando Pessoa), na linha da Escola de Viena e pós-Viena têm origem nessa hora de aula. Passando a residir em Lisboa, fiz exame de entrada em piano, ingressando na classe de Maria Cristina Lino Pimentel e na classe do Professor Croner de Vasconcellos. Já antes tinha mostrado o poema “Cristo” de Sebastião da Gama, ao Professor Armando José Fernandes: “Só esta entrada tem material para três sinfonias…” diz, numa das salas do Conservatório da Rua dos Caetanos. Eram sucessões “à Debussy”, toda a peça era música “de” Debussy!...,introdução que provocou entusiasmo em…Filipe Pires, como mais tarde, no mesmo compositor, a insólita “electrónica” de "Projecções". Mas eram tempos, gerações e estéticas nos antípodas uns dos outros. As apresentações na televisão em 1963 e 1964, por intervenção do Dr. Eduardo Freitas da Costa (sobrinho e afilhado de Fernando Pessoa!) foram um estímulo. Com o tenor Fernando Serafim, cuja coragem em fazer música fora dos repertórios dos cantores, vivi um dos períodos mais marcantes da minha juventude, pelas suas palavras entusiásticas para as primeiras músicas que me ouviu na sua casa da Avenida Almirante Reis [“estupendo!”, e “estupenda esta música!”, dizia ele, ao seu jeito! (Poemas Impressionistas”)]. Estes e os encontros que se seguiram foram o grande incentivo na busca de um caminho como compositor (era música sobre poesia de Fernando Pessoa e de Sebastião da Gama). Formávamos um duo de canto e piano, nos anos 60 e 70, dando concertos e fazendo gravações na televisão e na rádio, no Lumiar, na Emissora Nacional, na Rua do Quelhas e na Rua Cândido dos Reis. O repertório era preenchido por lied romântico e moderno, e alguma peça de piano a solo, incluindo sempre música portuguesa, minha também. A minha homenagem nunca será bastante para com este homem de cultura, homem de rara sensibilidade e talento como cantor, homem de rara inteligência e de rara humanidade.

PARTE II - influências estética

Que referências assume na sua prática composicional? Quais as obras da história de música e da actualidade mais marcantes para si?

Parece que o quadro descrito na primeira e segunda respostas, para além de causas hereditárias e genéticas, antes de ter nascido e depois, durante a infância, adolescência e juventude, será uma primeira referência, ainda que sem ter consciência disso como causa ou como fundamento, a seguir à prática do solfejo, assim como o contacto com músicas, litúrgicas ou não, ouvidas pelos vários níveis de ensino dos estabelecimentos de ensino de Braga, quer fossem as práticas das músicas de solfejo de tipo de conservatório francês, quer fosse das festas sacras e profanas, as chamadas academias ou saraus onde se declamava poesia, os coros cantavam, alguém tocava, e alguém fazia uma palestra alusiva ao evento, etc. (e onde fui distinguido, mais tarde, no Curso de Filosofia, com prémios como as Tocatas de Bach, as Valsas de Strauss, etc., num tempo em que comprei as Suites Inglesas de Bach.) Era naquele contexto que ouvia e guardo na memória os sons do coro dirigido por esse Reverendo Manuel Faria Borda, que me expulsou do coro ao qual nunca voltei, ainda no 1º ano, por ter falado para o colega do lado. Não voltei mais a fazer parte do coro, durante 4 anos, facto estranho porque sempre me deu a mais alta classificação em solfejo, disciplina do curriculum escolar! Havia de tornar-se meu admirador e amigo passado alguns anos, e havia de me convidar, antes de eu ir residir para Lisboa, e mesmo depois, a acompanhá-lo nos seus compromissos pelo Minho, como organista. Amigo, mas quando apresentei na televisão a obra "Projecções", em 1972 (com Francisco d’Orey e efeitos visuais), cruzando-se comigo, em Braga, diz-me do outro lado da rua: “Oh Cândido, tu estás tolo?”. Foi menos subtil do que o Professor Croner de Vasconcellos, ao ouvir a mesma obra que a Directora do Conservatório de Braga, insistiu que ele ouvisse, aquando da sua presença em provas de exame, vindo de Lisboa, com colegas, como era costume: “É por este caminho que o Sr. Lima (assim me chamava nas aulas, na sua Classe de Composição do Conservatório Nacional) quer seguir?”. Sorri apenas.

É uma época em que assumem relevância o conhecimento de obras de Xenakis e Musique-Architecture (Musiques Formelles, mais tarde, em Paris) os escritos de Pierre Barbaud em Musique-Discipline Scientifique, e ainda Penser la Musique Aujourd’hui de Pierre Boulez, comprados nas livrarias do Porto em 1968 e 1969. Estamos em 1968, ano de regresso da Guiné. Os estudos na Faculdade de Filosofia, permitiram-me dialogar e questionar os dois professores de Filosofia das Ciências matemáticas, Físicas e Biológicas (Professores Vitorino de Sousa Alves e Luís Archer), de Cosmologia Filosófica, de Filosofias Antiga, Medieval e Moderna, estabelecendo pontes entre as matemáticas e a música, chamando-me à atenção a lógica moderna, base dos computadores. Essa lógica simbólica aguçou-me o apetite para mais tarde, em 1975, como bolseiro em Paris, incluir a informática e o computador como um dos objectivos a atingir. Também um seminário de dias por Gilberto Freire me marcou. Em Paris, a frequência da Universidade de Vincennes, da Sorbonne, a antítese uma da outra, seguir os seminários de Xenakis na clássica Sorbonne e as aulas de electroacústica e de música americana na Universidade de Vincennes vinda de Maio de 68, como mais tarde, no mesmo dia, eu permanecer no IRCAM e ir ao CEMAMu, entre o mundo de Boulez e o mundo de Xenakis, uma façanha alegre e feliz, um exercício prático sobre a coincidentia oppositorum do filósofo! Um cavalo de Tróia (assim parecia!) ora num lugar, ora noutro, antagónicos para os seus mentores, complementares para mim, sem tabus.

Não posso deixar de aludir aos meus contactos com as construções de edifícios em Paris, em cujas equipas de construção estiveram envolvidos, durante décadas dois dos meus irmãos, o Daniel e o Luís, como chefs de chantier: Montparnasse, Bastille, Vanves, Malakof, Asnières, UNESCO, Renaud dos Champs-Élysées, e tantos outros. As visitas que fazia aos gabinetes de desenho, as plantas e o olhar para os trabalhadores, no intervalo de um café, nas imediações do almoço. As estruturas cativavam-me no silêncio do olhar, aliando-as ao Atelier e à maquete aí exposta do Diatope de Xenakis (que vi, em directo e ao vivo, na Praça Stravinsky, do Centro Georges Pompidou, em 1977). Visitava-o com regularidade na Rua Victor Massé, em Pigalle, e olhava para tudo à volta, além dos livros e partituras. Falo dos anos 70 e daí por diante, até ao ano 2000.

Mas foram leituras dos clássicos e modernos, gregos e alemães que me seduziram, me hipnotizaram e me levaram a um dos maiores vultos da história da música: Xenakis. Os grandes trágicos gregos, como também Safo e Píndaro, dos atomistas a Platão e a Aristóteles, e depois, dos medievais aos modernos, como Leibniz, Descartes, Nicolau de Cusa, e ainda Kant, Hegel, Kierkegaard, Nietzsche, Husserl (pelo Professor Júlio Fragata) e a análise “à Bachelard”, na literatura, dos arquétipos da presença na obra de figuras como Fernão Lopes, Camões, Padre António Vieira, Almeida Garrett, Fernando Pessoa (Professor João Mendes) a Dostoiévski, Cervantes ou a Calderón de la Barca, e tantos outros mundos que me envolveram magicamente. Todos eles e o seu pensamento me marcaram tanto como os maiores da música, e isso reflete-se, se se for ao fundo das obras, quer no interior das gramáticas que as constroem e sustentam, quer no que está para além do palpável e do táctil, o inexprimível, pela visão e pelo ouvido. Todos eles passaram a estar presentes, até hoje, na minha vida como pessoa e como músico, atraído irresistivelmente, sem descanso, por interesses e actividades múltiplos e ramificados.

São tantas as obras e os autores que marcam a minha vida de compositor, de ouvinte, de professor, de estudioso, que sou incapaz de hierarquizar ou enumerar, e reporto-me a toda a música, escrita e não escrita, e a toda a música de todos os lugares e de todas as épocas. Precisava de algumas páginas para as mencionar, e escrever os motivos por que as citaria, quer com influência directa em alguma das minhas actividades, quer apenas como influência nas idiossincrasias da minha “condição humana”. Ockeghem, Monteverdi, Bach, Beetohoven, Schubert, Schumann, Chopin, Brahms, Wagner, Debussy, Ives, Stravinsky, Mussorgsky, Varèse, Messiaen, Cage, Berio, Maderna, Ligeti, Xenakis, Boulez, Stockhausen, músicas tradicionais, músicas pop e músicas rock, algum Jazz, canção francesa, e quantos mais, e que obras de cada um? Todos fazem parte da minha vida. Aquelas músicas de infância!

A oposição entre “a ocupação” e “a vocação” constitui uma das questões na definição da abordagem artística do compositor. Onde, na escala entre o emotivo (inspiração e vocação) e o pragmático (ocupação), se localiza a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositor?

A oposição entre “a ocupação” e “a vocação” constitui uma das questões na definição da abordagem artística do compositor. Onde, na escala entre o emotivo (inspiração e vocação) e o pragmático (ocupação), se localiza a sua maneira de trabalhar e a sua postura enquanto compositor?

A inspiração e a vocação (termo que um dia, na televisão do Lumiar, me pediram para não usar, na preparação de entrevista para o programa “Novos músicos, novos compositores” de Filipe de Sousa!, na minha primeira aparição, em directo, em televisão, em 1963, condicionada pela mesma hora da inauguração da Ponte da Arrábida, no Porto) coabitam com as dinâmicas diversas do “homem situação” e do “homem e a sua circunstância”, mas sem nunca abdicar de princípios de natureza ética e de natureza intelectual. A minha actividade em diversas áreas da comunicação pela música, como compositor, como professor, como instrumentista, como director de grupo instrumental, como animador cultural, como teórico, como ensaísta, etc. esteve sempre orientada no sentido de atingir os objectivos através dessa integridade intelectual e ética, quaisquer que fossem as vicissitudes das convergência ou divergências dos meus interlocutores nesses vários diálogos e confrontos. E mantenho essa postura como um paradigma de comportamento em sociedade. Uma coluna vertebral inquebrável e flexível numa atitude de infinita e entusiástica busca dos consensos nas riquezas do conhecimento alheio e do respeito pelo outro. Isto esteve sempre acima da busca dos resultados práticos individuais, sobrepondo-se, durante anos, esse exercício de abrangência e harmonia social, escolar e académica à minha inquietação, e aos meus projectos e sonhos de compositor.

Podia descrever o processo subjacente à sua prática composicional? Escreve a partir de uma ideia-embrião ou depois de ter estruturado uma forma global da música?

Os estímulos podem vir de muitas origens, fontes e causas. Sentar-me ao piano e improvisar, sem qualquer pré-aviso do que vou fazer, ou uma intenção de obra pode bailar meses antes da decisão do como a começar, sobretudo em conflitos ou divergências de áreas e as exigências pessoais (tratamento, por exemplo, de música tradicional, “Quatro Canções de Timor” de 4 a 7 vozes), os convites para escrever uma obra desencadeiam de imediato forças interiores, o movimento e a velocidade em si, quer viaje de autocarro, de comboio ou de avião (sozinho!), criam estados de desejo quase incontrolável de escrever, música ou outra coisa, para além do prazer das paisagens, ouvir obras num concerto, contemporâneo ou não, cria-me efervescência interior, e tantos estados de alma variáveis, quer seja a memória próxima a trabalhar, quer seja a memória longínqua (“HÉAMAÓAMAÉH”,“Músicas de VILLAIANA”, “Manta”, etc….). Há casos em que a obra é vista e ouvida como um todo, outras vezes nasce à medida que os materiais surgem no cérebro e vão sendo transportados para o exterior, para os espaços de representação, seja pela escrita no papel, seja pelo som real num sintetizador ou num computador. Eu poderia estar permanentemente a escrever música, quando me sento ao piano, servindo-me apenas da informação que a memória foi retendo ao longo da vida, sejam ferramentas técnicas de composição, sejam as influências que nela se foram sedimentando. Mas há uma vigilância crítica da razão e do conhecimento que impede que escreva essas improvisações, que são de uma variedade imensa. Para mim não passam de diversão, se alguém as ouve, perguntam-me de quem é a obra, e informados, perguntam-me porque não a escrevo. Quando escrevo, solicito essa capacidade de gerar som espontâneo, e então é trabalhado e sujeito às “leis do espírito” e aos circunstancialismos locais e temporais do contexto. Uma obra, antes de ser materializada em escrita, pode surgir de forma fantasmagórica, difusa, indefinida, por filamentos de som ou de grafismos. A sua exteriorização faz-se por ferramentas, por codificações de gramáticas armazenadas ao longo da vida.

Há quem diga que a música, devido à sua natureza, é essencialmente incapaz de exprimir qualquer coisa, qualquer sentimento, atitude mental, disposição psicológica ou fenómeno da natureza. Se a música parece exprimir algo, é apenas uma ilusão, uma metáfora e não realidade. Podia definir, neste contexto, a sua postura estética?

A música significa o que a natureza individual e as idiossincrasias de cada um solicitam. Por mim ajo como um ser ao mesmo tempo emotivo e racional, instantâneo e sereno, telúrico e tranquilo, apolíneo e dionisíaco, apaixonado e cerebral, romântico ao mesmo tempo no sentido popular e no sentido conceptual e intemporal do termo. As músicas, não a música, são recebidas consoante as flutuações do corpo e do espírito no quotidiano, e a recepção da música, qualquer que ela seja, ora convive, ora colide com a tragédia e com a glória, com a vida e com a morte, com o ódio e com o amor, com o sublime e com o horror, com todas as vicissitudes da vida e do homem no turbilhão das existências e do mundo que as rodeia. Posso acrescentar que, a posteriori, a minha música (as minhas obras) funcionaram, sem eu dar por isso, como uma terapia, como um exercício de psicanálise, numa função de sublimação e de transfiguração das sensações e dos desejos, sejam de que natureza forem, a música, nossa e dos outros podem criar estados de exaltação e de angústia, de magia e superação de tudo. O cérebro pode sentir-se incapaz de controlar os excessos de emoção, ou melhor, obedece e rege o que as emoções lhe ditam. As minhas obras produzem efeitos diferentes em mim, mas sempre de prazer quando as dou por acabadas seguindo as linhas sinuosas da alma humana, mas sempre cingindo-se às leis da razão, como critério de segurança e de perenidade. A música não tem a semântica das palavras, o monolitismo das semiologias e das semióticas, da linguagem e dos vocabulários mas, num sentido mais abrangente e polissémico, é rica em significações improdutíveis, inexprimíveis por palavras senão por linguagens das novas tecnologias, como as que podem sondar e analisar, até onde é possível, o cérebro e os seus universos misteriosos (ciências neurológicas…). Ilusão, metáfora e realidade são analogias e identidades num mundo impalpável por um lado, maravilhosamente palpável, por outro, pelos laços hipnóticos que ele, o mundo musical, exerce de formas infinitas, semelhantes e intransmissíveis, junto dos racionais e dos irracionais. Não há muita separação entre o que o homem sente pela música e os animais, salvas as devidas distâncias e proporções.

Existem algumas fontes extramusicais que de uma maneira significante influenciem o seu trabalho?

Para além das técnicas específicas da composição musical, sejam elas vinda dos medievais, renascentistas, barrocos, clássicos, românticos, modernos ou contemporâneos, áreas das ciências e da filosofia, da linguística, da literatura, das tecnologias artesanais, antigas ou de hoje e de sempre, das tecnologias sofisticadas contemporâneas, do teatro, da rádio, da televisão, das artes, como pintura, arquitectura, a escultura, as artes marginais, como as artes de rua, em diversas obras tudo isto está contido, sempre numa preocupação de coerência e unidade na diversidade, no ecletismo e no sincretismo das fontes. As novas disciplinas multimédia, áreas que percorri ao longo dos anos 80 e 90 no quadro de uma tese de Doutoramento de Estado, em Paris, na Sorbonne, são, na verdade, um projecto romântico e idealista, ao ter pretendido criar um elo causal entre o ponto de partida da obra desde o instante supremo do seu nascimento no nosso cérebro (o “em si” kantiano) e de chegada ao outro, entre a informação estética veiculada pela televisão e a recepção última pelo telespectador anónimo, tudo na esteira da psicologia, da filosofia, das teorias da informação, das telecomunicações e das ciências da biologia e da psicologia filosófica e experimental. De forma intuitiva, empírica ou epidérmica há de todos esses meios um pouco em diversas obras, quer misturados, quer isoladamente. Ora há uma absorção, quando possível, das matérias e dos conteúdos, ora coabitam todos sem perderem a sua identidade, mantendo-se mundos autónomos e irredutíveis a mundos de outra natureza. O orgânico de uma obra convive, de uma maneira ou de outra com os patchworks que inundam os nossos ouvidos e os nosso olhos. Vejam-se “Oceanos” ou “Manta” perante “Momentos-Memórias I” ou “Música dos Objectos e do Acaso”.

Como vê a sua música no panorama de evolução da música ocidental? Sente proximidade particular com alguma escola ou estética do passado ou da actualidade?

À parte obras de circunstância, não sei se serei eu a melhor voz para responder a esta, como a algumas perguntas deste questionário. O que posso dizer é que procuro, sem fazer disso uma norma absoluta, seguir as descobertas que os grandes compositores de sempre puseram à disposição do ouvinte e do criador, procurando que cada obra exprima o sentido dessa contemporaneidade que existiu sempre em cada época, no sentido da inovação e da capacidade de criar o novo, mesmo recriando o passado com uma marca de cada época idêntica a si mesma e não clonada de outra. Aqui depende de muitas forças que vão para além da música em si, mas que são comandadas por valores como o utilitarismo, o pragmatismo, o lucro, a luta política, a vitória social, o êxito imediato e fácil à custa de princípios de comportamento que uns seguem e outros não, pelo contrário, deles fazendo tábua rasa…Na escola e no meio musical, antes talvez mais nas últimas décadas, vivi no turbilhão da mudança de paradigma, como sói dizer-se.

Poderia citar algumas passagens de profissionais em França que poderiam contribuir para uma resposta possível, ainda que indirecta: “Ces oeuvres (“Oceanos”, “Lendas de Neptuno”, “Autómatos da areia”) m’ont vraiment impressioné. Cette musique est comme un fleuve puissant mais si délicat aussi... cela sonne autant qu’un orchestre, comme un orchestre. C’est-à-dire que l’on entend à travers et “au” travers de l’électronique. Je veux dire comme si tout cela n’était pas électronique!” (Pascal Dusapin, compositor francês). É um depoimento que pode responder à pergunta, pela especificidade do compositor português e pela apreciação exterior de outro compositor que coloca as obras, nessa apreciação para além das fronteiras nacionais, numa determinada estética, numa determinada escola de pensamento teórico e musical. Isso é dito na declaração seguinte: “J’ai retrouvé la même émotion (des écrits théoriques), mais radicalement décuplée, dans cette musique. Une même poésie se dégage, qui nous emporte comme dans un rêve. Paysages oniriques, émotions subtiles”. (Makis Solomos, musicólogo grego). E com mais precisão ainda : “Une musique d’un très haut niveau. Au-delà des sémiotiques il y a un “ethos” qu’on ressent au-delà. Musique calme, envelloppante. Au départ on ne sait pas bien ce qui va se passer, mais très vite le cheminement et une direction arrivent. Il y a un parcours. On sent une école, c’est très clair, une ligne de pensée” (Radu Stan – crítico romeno – agente de Xenakis).

Penso que a linha histórica e estética que é privilegiada, sem excluir todos os contributos de sempre e para sempre, é a linha que vem da modalidade grega, passa pela música modal da Idade média, submersa pelo intervalo de 3ª e os que se lhe seguiram na definição, estruturação e imposição natural da tonalidade, até ao ressurgimento no séc. XIX, dos modos antigos e da música popular de raiz eslava e balcânica, retomados pelas escolas nacionais, por Debussy, Scriabin, Ravel, Bartók, Messiaen, Xenakis, Ligeti (e muitos momentos antes de Chopin, Liszt, Wagner e Brahms) e a invasão dos modos hindus e da música do sul-asiático, do Bali, Java e mais longe da Papuásia-Nova Guiné e da Melanésia. Essas estruturas básicas aliadas às grandes harmonias e ritmos de Scriabine (o Boulez scriabiniano do “Répons”!), Messiaen e Xenakis, em modos recuperados, transformados e inventados (teoria dos crivos ou teoria axiomática das escalas), num edifício de camadas heterogéneas regidas por gramáticas que lhe dão unidade e coerência. Com o intervalo neutro e universal de 2ª maior, como partícula geradora, amplificadora e unificadora. Como a mónada de Leibniz, ou como as partículas ínfimas da matéria. Assim espero, assim o penso. Humildemente!

Existem algumas incidências da sua música com culturas não ocidentais?

Na minha juventude ouvia na Emissora Nacional um programa com o título de “Folclore no mundo”, e muito cedo me interessei pelo que ia para além do que aprendia nos Conservatórios e do que tocava como organista. Mas Debussy e os compositores nacionais, assim como leituras sobre a célebre Exposição Nacional de Paris, aguçaram a minha curiosidade. Além da marimba angolana que me ofereceram em Luanda quando, em 1973, lá fui ministrar Acções de Formação sobre a nova disciplina de Formação Musical da Experiência Pedagógica, a convite da Dra Madalena Perdigão, por indicação da Constança Capdeville, senhoras e personalidades ilustríssimas e inesquecíveis de boa memória, os meus dois anos na Guiné, cimentaram essa atracção pelo mundo sonoro não europeu, não temperado, para ser mais preciso. Em Paris, no Museu do Homem, pude, pessoalmente, experimentar os instrumentos dos gamelões de Bali. Sozinho, no local. Em 1978, segui, pelas ruas de Paris, a parada fantástica dos sons fantásticos trazidos pelas ex-colónias francesas. Nessa cidade fui sensível ao que vi nos museus onde vivem essas culturas de milénios. Na série “Fronteiras da Música” para a televisão fiz coexistir as culturas do mundo num painel electroacústico a que chamei “Rostos-Músicas da Terra”, composto, a partir de gravações da France-Culture, France-Musique e de discos, LPs, da UNESCO. Fi-lo nos Estúdios da Televisão do Monte da Virgem, com o entusiasmo dos técnicos da casa, por sair da rotina habitual das suas tarefas. Em diversas obras, na linha dos compositores contemporâneos, utilizei modos balineses e gestos do teatro japonês, absorvidos, naturalmente, numa gramática e numa perspectiva pessoais. Inimitáveis e inultrapassáveis a obra de Xenakis “Pléiades”, onde África e Bali se iluminam como sons de outros mundos (embora o autor afirmasse que não sofreu influência da música africana) e a obra deslumbrante “javanesa” do “Marteau sans Maître” de Boulez, ou “Hymnen” de Stockhausen, ou os “Sept Haikai” de Messiaen, ou o som “sul-asiático” de Debussy! Quem não se deixaria influenciar por tais monumentos? Quer nada tenha a ver, como em "Projecções", quer tenha a ver, como em “Rochedo”, em “Divertimento a 6”, em “Monda” ou em “HÉAMAÓAMAÉH”, as coincidências são evidentes, dos modos europeus e dos modos não europeus. É ver as transgressões maravilhosas e deslumbrantes do Messiaen nos modos de transposição limitada, nos modos hindus e nos modos gregorianos (equívoco dos modos gregos, dirá Xenakis…).

Além do essencial, que é a absorção na minha obra dessas influências de culturas extra-europeias ou de culturas não eruditas, como a música tradicional portuguesa (Minho e Beiras, neste caso pessoal), é interessante lembrar que fiz parte dos que apoiaram a criação da disciplina de Etnomusicologia, mais tarde eliminada, na Escola Superor de Música do Instituto Politécnico do Porto, nos fins do anos 80, e faço parte, ainda, do INET-MD, Instituto de Etnomusicologia da Universidade de Lisboa. Há todos os motivos para responder, em várias direcções, à pergunta formulada de forma absolutamente afirmativa. Como uma consequência, também, da “aldeia global” de McLuhan.

PARTE III - linguagem, prática composicional

Como caracteriza a sua linguagem musical do ponto de vista das técnicas desenvolvidas na composição nos séculos XX e XXI? Há alguns géneros / estilos musicais pelos quais demonstra preferência?

As técnicas do séc. XX e XXI poderão encontrar-se genericamente em todas as minhas obras desde Debussy ou Ravel, de Prokofiev a Bela Bartók, de Alban Berg a Stravinsky (e sigo a cronologia das obras de juventude…)
Os 12 sons da “metodologia” schoenberguiana foram ouvidos teoricamente, pela primeira vez, numa classe de contraponto do Dr. Vítor Macedo Pinto, no Conservatório de Braga, em 1964. Era algo que procurava, enevoadamente, como uma necessidade de diversificar tudo o que tinha tocado antes como organista e como autodidata de piano, ou como estudante de conservatório. Curiosa a minha procura de mudança e de novos sons. Essa aula, primeira e única, foi absorvida sôfrega e livremente por estas estéticas e técnicas subjacentes às técnicas e estéticas de Varèse, Messiaen, Boulez, Stockhausen, Xenakis. "Meteoritos" é a primeira obra onde tento aliar o prazer hedonístico do som à lógica férrea dos 12 sons, numa perspectiva de hieratismo absoluto, coincidente com Webern, mas numa ausência total da dialéctica e tensão intervalar vienense e seus sucessores. São 12 pequenas peças construídas exclusivamente à volta de uma escala cromática de lá bemol, envolta permanentemente pela aglomeração harmónica de todos os sons com o pedal do piano sempre em baixo. Posteriormente, em Bayreuth, em Vincennes, transformei esses sons abstractos em extensões electrónicas, passando a ser uma obra para piano e tape music, como se dizia na época.

As regras tradicionais foram enriquecidas por técnicas de matemáticas elementares do liceu e que eram utilizadas pela combinatória serial e pelas técnicas de música simbólica (Álgebra de Boole, Teoria dos Conjuntos), estrutura de grupo, estocástica, entre outras técnicas utilizadas por Xenakis. De forma ora empírica, ora racional, a espontaneidade controlada por uma lógica e intuição naturais são os processos e a forma que caminharam sempre indissociáveis e inseparáveis no meu processo criativo. Toda a música que ouço e toco, desde a infância até hoje, me informou o espírito, e tudo que cada um de nós exprime em arte e em tudo nada vem exclusivamente de nós. Original no sentido estrito da palavra, só é válida para o “big-bang” ou outro princípio, se houve princípio…Mas podemos, com esse mundo que nos informa, encontrar e exprimir a nossa identidade. Se me perguntarem onde coloco, no meu cérebro, Bach e Mussorgsky, Beethoven e Schoenberg, Monteverdi e Mahler, Debussy e Varèse, Stockhausen e Xenakis, Messiaen e Boulez, tão diferentes e tão iguais, há claramente zonas de paixão diametralmente opostas, mas ao mesmo tempo zonas com a mesma intensidade de recepção pela magia e empatia que cada compositor gera na minha racionalidade, na minha emotividade, nas diversas camadas tectónicas do nosso corpo e alma, ou como se lhe queira chamar a esta zona invisível ainda do nosso insondável cérebro. “De toda a música” foi uma rubrica de um programa da rádio, integrado num Programa da Manhã, de Júlio Montenegro, em que não havia fronteiras entre músicas e, como agente cultural, servido por meios de comunicação, e por amigos entusiastas, pude difundir, por música, mais do que as músicas mais diversas, a ideia de liberdade através das escutas individuais de cada ouvinte (ao Programa foi atribuído o Prémio da Imprensa desse ano). Essa defesa “de toda a música” aplicou-se sempre a mim, como professor e como compositor, repartindo essa liberdade consoante os condicionalismos de cada tempo de vida e de cada local de vida. Mas o continuum, a harmonia, o ritmo submerso pelos tempo, a melodia submersa pela salmodia do todo, o som “em si” como um objecto nascido, movido e dissecado no ataque, na dinâmica, na duração, na forma de onda, a escuta microscópica e global que conduza o ouvinte a um estado de consciência hipnótica, de levitação, de envolvência tranquila no espaço, de energia e de repouso, de envolvimento nos arquétipos junguianos e bachelardianos (fogo, água, mãe, noite, mar, e ver as análises sedutoras do Professor João Mendes, S.J., aos nosso escritores, os já citados acima!), são alguns centros de atracção na minha procura de diálogo através do gesto puramente estético, que é a manifestação abstrata e espiritual da mesma preocupação na vida concreta, quer na acção, quer na palavra. As gramáticas vindas de diversas origens são o alicerce e o fundamentos aglutinadores e irradiadores desses postulados ou princípios geradores da emoção e da comunicação.

No contexto da sua prática enquanto compositor como podia definir as relações entre a ciência (física, acústica, matemática, etc.) e a música?

Antes da minha passagem pela Faculdade de Filosofia de Braga, durante cinco anos, após o meu regresso do serviço militar na Guiné, em tempo de guerra colonial, quase não pensava nas ciências e na música como espaços permutáveis e transversais, a não ser a acústica como uma disciplina marginal dos programas curriculares de Conservatórios de Música. Foi a partir de estudos aprofundados de certos domínios da filosofia que a minha faceta de professor e compositor se embrenhou a fundo nesses domínios, ocasião, origem, causa e de uma forte propensão e atracção pela interdisciplinaridade que me levou a introduzir na minha actividade de animador e de professor, primeiro (rádio, televisão, conservatório, escolas de música), meios até aí estranhos aos músicos e a separação ideológica entre mim e a ordem vigente do mundo musical, clássico e contemporâneo, nomeadamente português. A este, com efeito, o mundo da filosofia e das ciências pareceu estranho e aos quais esses domínios não interessavam, como uma dicotomia entre a “inspiração” e a especulação filosófica ou a investigação científica e tecnológica, senão pelo pragmatismo na composição de uma obra. A própria postura de Paris e Darmstadt contra a defesa que Xenakis fazia das matemáticas, levou a equívocos e a polémicas estéreis e sem sentido, numa época em que o serialismo era imposto como a ser a panaceia da música erudita ocidental. A física, a acústica, as matemáticas eram apenas domínios puramente especulativos e práticos de engenharia, apenas como suportes de tratamento e desenvolvimento do fenómeno sonoro, e não como áreas susceptíveis de constituírem ferramenta e técnicas de composição, como sucessoras das regras de contraponto renascentista ou de harmonia clássica. São domínios transversais que, ora individualmente, ora interagindo, foram veículos intermédios do mundo real com a vida do músico, compositor ou não, mas na época moderna passaram a ser áreas e ferramentas auxiliares das técnicas de composição, numa pluralidade de gramáticas. Passaram a ser aceites como prolongamento natural do desenvolvimento de técnicas puras de harmonia tonal e de contraponto medieval e renascentista, prolongamento de forma e das formas tradicionais, extensões da harmonia, da melodia, do ritmo e de outras organizações espaciais de alturas e organizações rítmicas do tempo. As técnicas de Scriabin, de Bartók, de Varèse, da Escola de Viena, de Messiaen, de Berio, de Xenakis, de Sockhausen, dos futuristas e de todas as artes, da electroacústica, da música concreta e da música electrónica, das músicas formalizadas por modelos matemáticos, pelos novos hardwares e novos softwares da engenharias informática, até às ínfimas partículas de som que a nano tecnologia pode estudar, tudo faz parte de uma riqueza que o compositor não poderá, ou não deverá, ignorar e desperdiçar. Bach e Beethoven são, ainda hoje, quando os oiço, pilares intemporais para a aprendizagem da estruturação e da amplificação de uma obra que vai para além de teorias filosóficas ou científicas. “Pare, escute e olhe!”, recomendação das linhas de comboio válida para o compositor, em todas as direcções.

Que relação tem com as novas tecnologias e como estas influenciam a sua maneira de compor, e também a sua linguagem musical?

Podemos fazer a ponte entre a resposta anterior e esta, já que as ciências caminham paralelamente com as tecnologias. Desde muito cedo procurei em Portugal prolongamentos da música instrumental e dos modelos de composição fora dos meios sonoros tradicionais, ou por ler, ou por ouvir, ou por ver, ou por sentir, sem causas externas. A solução, numa época marcada pela ausência de meios, recorri à simulação de meios inexistentes em Portugal e que, no estrangeiro, até jovens possuíam nas suas próprias casas (comprovei isso, nos anos 70, em Darmstadt, em Paris, em Bilthoven, em Vincennes, etc.). Fi-lo projectando no público e nos músicos, e noutras obras, o fenómeno da ilusão auditiva, os paradoxos vindos das artes e estudos na primeira informática musical dos anos 60. Iludi profissionais em Darmstadt, em 1972, com a obra "Projecções", simulando a electrónica com um harmónio minúsculo de uma escola de crianças. As tecnologias são extensões dos instrumentos, e sobretudo extensões do nosso cérebro. Foi sempre assim que vi a presença natural dos meios não instrumentais nas minhas buscas do alargamento e do enriquecimento da expressão, nas formas como poderia representar mental e fisicamente novos pensamentos, novas emoções, novas necessidades para novas situações do meu mundo interior e das minhas actividades no exterior. Tive bons colaboradores nos estúdios artesanais da rádio e da televisão, sem os quais não teria projectado, a curto e longo prazo, muitas ideias e muitas soluções que haveria de encontrar em estúdios desenvolvidos de natureza interdisciplinar, sobretudo de investigação entre a engenharia informática e a engenharia, por analogia, do compositor e das técnicas de composição, fossem convencionais ou da época contemporânea. Nunca será demais manifestar a minha gratidão para com as hierarquias e os técnicos de estúdio da Rua Cândido dos Reis, no Porto, que me ajudaram a realizar, em diversas etapas da sua composição (Vincennes, Issy-les-Moulineaux, Porto), obras como “Oceanos”, “Autómatos da Areia”, “Lendas de Neptuno”, “Músicas dos Objectos e do Acaso” ("Tapiès"), “Polígonos em som e azul” (Vieira da Silva), entre outras e outras tarefas, como digitalizações de registos analógicos, nos fins dos anos 70 e ao longo dos anos 80. Lícinio Oliveira, Fernando Freitas, Lícinio Fonseca, entre outros. Todos esse trabalhos enriqueceram o meu diálogo com a máquina e com as tecnologias que sempre me entusiasmaram por estarem ao serviço da criação e serem dóceis e fenomenais servidoras e agentes das nossas e minhas emoções.

Qual a importância da vertente espacial e tímbrica na sua música?

O espaço ocupa directa e indirectamente lugar importante na minha música quer na ordenação dos materiais no interior da obra, com efeitos no exterior, quer na utilização dos meios externos em função da interação da partitura com o ouvinte. Quer utilizando meios instrumentais pré-gravados interagindo com os instrumentos em tempo real, quer utilizando meios analógicos e digitais. Todos os meios e fontes sonoras fizeram parte do diálogo do mundo exterior com o meu mundo interior e das minhas necessidades expressivas.

A envolvência do ouvinte pelo som como se fosse um manto ou uma tela circular, móvel, que tento imprimir como objectivo último na minha música, seja a obra monódica, de câmara, de orquestra ou mista, pressupõe que haja meios para o atingir, quer no interior da própria partitura, quer no exterior com a projecção, amplificação e mobilidade acústica desses sons. Os espaços multidimensionais de uma obra como “Polígonos em som e azul” ou “Bleu-Rouge”, e noutra “ÑCÂÃNCÔA”, estes aspectos convidam a criar no processo, sons e transformações de sons na procura do timbre sedutor individual e de sonoridades para que contribuam, com a combinação de todas as formas de alquimia instrumental e orquestral, com a invenção harmónica, melódica e rítmica e os meios importados pelas técnicas de estúdio, para o espanto, para a surpresa, para o prazer “em si”, como ponte entre a atenção e a cumplicidade de ouvinte e de público. Mesmo não tendo esse objectivo como principal, senão eu próprio, ao escrever uma obra, essas preocupações, intrínsecas à natureza do compositor, aglutinam-se na projecção do compositor-ouvinte “de si”, e no espectador-ouvinte “de si”.

Quais as suas obras que pode considerar como pontos de viragem no seu percurso enquanto compositor?

“Pauis - Impressões do Crepúsculo”, “Miniaturas”, “Projecções”, “Morte do caixeiro viajante” (órgão de tubos e piano-multiusos), “Meteoritos”, “Música de Teatro”, “Oscillations”, “Sang-ge-Sang”, “Oceanos”, ”A-MÈR-ES”, “É-TOILES”, “Momentos-Memórias I”, “Momentos-Memórias II”, “Músicas de Villaiana - Coros Oceânicos”…? Não sei bem… Dei sempre tão pouca importância a especulações deste tipo que tenho dificuldade em dar uma resposta, senão provisória e tímida. Não estou certo de encontrar esses pontos, por ver mais um continuum na minha atitude perante a criação musical, mais do que olhar para a ruptura ou para as fronteiras entre etapas que se sucedem de maneira organicamente indissociáveis. O que posso falar é de épocas em que as linguagens eram específicas e de acordo com factores de natureza diferentes, como o não saber ou saber as influências concretas de situações e experiências concretas: contactos de locais, de compositores, de obras. Música tonal-modal, música atonal, dodecafónica, música microtonal, música concreta, música electrónica, música electroacústica, música por computador, música espectral, músicas mistas, quaisquer que sejam os seus conteúdos. O acorde, o agregado, o som, o neuma, o campo harmónico, o ruído, figuram como uma síntese de ressonância, como objecto, como cor, por um lado, e de elementos constituintes de um sistema estruturado por um conjunto de postulados ou axiomas, no fluxo sonoro de um complexo de funções por sistemas já codificados pela história, princípios estruturantes definidos pelas necessidades de cada obra e do seu contexto: “a obra e a sua circunstância”, “a obra em situação”, parafraseando o filósofo.

PARTE IV - a música portuguesa

O que acha sobre a situação actual da música portuguesa?

É aquela que é definida pelo “status quo” político, económico, cultural, académico, social, etc.. Quem for capaz de o definir, sem ser enquadrado pela globalidade das forças que fazem da nação o que é a nação, é um privilegiado. É labiríntica a questão, seria labiríntica a resposta. Mas a resposta a esta pergunta deverá ser pedida às instituições portuguesas, privadas e do Estado, perguntando aos seus responsáveis se o que têm feito pela música portuguesa satisfaz as necessidades e os equilíbrios com a divulgação de autores estrangeiros. Se a resposta for no sentido do respeito pela música portuguesa, antiga e moderna, então não temos de que nos preocupar. Mas que há um dinamismo imenso imparável na classe musical, isso é indubitável, embora nem sempre sadio, no que respeita àquilo que considero essencial no diálogo entre as diferenças, quer no que respeita ao diálogo entre os indivíduos, quer no que respeita ao diálogo entre instituições. A competição, a concorrência e a emulação, no mercado do trabalho, a sobrevivência também, sobrepuseram-se, nas últimas décadas, em massa, a valores que para mim são mais importantes. Darwin no seu melhor, e as suas leis em conflito permanente comigo e com a minha sensibilidade anti-darwinista…O divórcio entre gerações, entre instituições, entre compositores. Sempre sonhei, como professor e como cidadão, dialogar com os meus pares, quer de instituições, quer de confrades, e assim exercer a cidadania do diálogo entre as diferenças como práticas normais entre os investigadores das ciências e das artes, que nem sempre as há, pelo menos nesta perspectiva romântica…

E que música portuguesa? O compositor pós-moderno? O compositor contemporâneo? O compositor funcional e de circunstância? O compositor de concursos? O compositor de variedades, de cinema, de teatro? O compositor de estúdio, o compositor de pre-sets, o utilizador de loopings, o manipulador de MAX e afins (não de Marx, ou também…), o compositor de música repetitiva, de música de discoteca, de bar, de fado, de variedades? Um mar vasto de incertezas e de certezas, um espaço imenso de reflexão e de afirmação realista, aberta, cúmplice; irónica, humorística, sorridente e optimista: sempre!

Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia, no mundo globalizado?

De que compositor fala a pergunta? Ainda que se subentenda que se fala de música contemporânea, tem de uma resposta honesta ser abrangente a todas as culturas, e a identificação do que é o compositor é uma tarefa impossível. A aldeia global não anula a individualidade das culturas das nações, das regiões, dos grupos, dos indivíduos. É a resposta semelhante à anterior, talvez mais concreta, linear e simples, mais complexa e extensa, pois teríamos de distinguir os diversos estratos por que se definem os compositores e as expressões estéticas e áreas culturais em que eles se movem. Milhões de respostas seriam necessárias para os infinitos caminhos contidos na pergunta.

Como poderia definir o papel de compositor hoje em dia, no mundo globalizado?

As fronteiras há muito estão esbatidas, quer na qualidade das obras, quer nas suas caracterizações estéticas. Com excepção de alguns casos, penso que há um paralelismo entre as estruturas e sensibilidades dos diversos meios sociais dos diversos países. Temos experiências suficientes de receptividade de novas músicas nos meios menos privilegiados de Portugal em relação a casos idênticos de outros países europeus.

Proponho que seja feita essa pergunta às grandes e pequenas instituições portuguesas, sobre o lugar e o papel que a música portuguesa ocupa nas programações e qual a percentagem que ocupa a música estrangeira nessa programação. Do que responderem, terão aí a resposta objectiva. Por aqui se poderá avaliar e adivinhar, sob vários ângulos, com e sem juízos de valor, a questão. Mas o que distingue a música portuguesa no plano internacional será a quantidade e a qualidade dos compositores, mais do que a sua presença expressiva nas programações, em Portugal, pouco presente no panorama internacional, senão em casos isolados, por acções individuais ou institucionais.

Como poderia descrever a situação dos compositores, hoje em dia, em Portugal e na Europa?

Penso que os compositores portugueses já adquiriram há muito o estatuto de cidadão a tempo inteiro a nível internacional pela qualidade da sua música e pela forma como se têm imposto em meios e países mais privilegiados, não só no plano económico, mas também no plano sociológico. Há um grande equilíbrio também nesse aspecto, e a crise que assola o país há anos não relega para segundo plano esta realidade da competência dos indivíduos, em vários ramos do saber, na música também, não obstante o estado de inanidade a que muitas forças chegaram no país. O compositor estrangeiro é divulgado em Portugal, o compositor português será mais divulgado no estrangeiro. Será assim? Por outro lado, o divórcio dos compositores e das gerações entre si, a falta de diálogo e de troca de ideias, da permuta de experiências e vivências, o egoísmo e o egocentrismo institucional é dos fenómenos mais intrigantes das últimas décadas, quer no plano colectivo académico e institucional em geral, quer no plano do indivíduo. O alheamento ao que se faz e ouve à volta centrados apenas no que gira no cerco dos interesses imediatos e interesses pragmáticos da sobrevivência e da subserviência. Há honrosíssimas excepções de individualidades e de instituições neste universo de actividade artística e de actividade cultural.

PARTE V - presente e futuro

Quais são os seus projectos decorrentes e futuros? Podia destacar uma das suas obras mais recentes, apresentar o contexto da criação e também as particularidades da linguagem e das técnicas usadas?

Se 2009 pode ser considerada uma data recente, o projecto realizado entre 2008 e 2009 foi dos mais ambiciosos dos últimos anos. Trata-se de “Músicas de Villaiana - Coros Oceânicos”, uma encomenda da Câmara Municipal de Viana do Castelo, encomenda essa feita em público pela Vereadora da Cultura, Dr. Flora Silva, na minha aldeia natal, na Escola Primária das minhas 3ª e 4ª classes (agora Junta de Freguesia), para as Comemorações dos 750 anos do Foral da Cidade. Foi-me dada total liberdade para a composição da obra. Tem a seguinte formação: orquestra, coro, electrónica e electroacústica (sons da terra e mar vianenses), imagem-filme (imagens inéditas da terra vianense, rapper e narrador ("Ode Marítima", filtrada da sua vertente alegórica e poética, utilizando-se só vocabulário do cidadão comum, sobretudo do mundo da pesca, da marinha, da terra e do mar). O Coro estava situado no local oposto do teatro, e no ultimo piso em frente à Orquestra, diversos músicos estavam colocados em pontos opostos do teatro; num momento da obra o Coro, desce o teatro em direcção à plateia que atravessa lentamente, evocando uma procissão, cantando uma salmodia de alguns acordes, regressando lentamente ao local de origem. Teatro Municipal Sá de Miranda cheio em duas noites de apresentações, em 10 e 11 de Junho de 2009. Aí se juntaram processos e ideias inabituais, como a presença de um rapper em música marcadamente contemporânea num texto futurista de elites, assim como o uso de telemóveis ou outros meios de comunicação entre o interior do teatro e o mundo exterior. Uma abordagem das telecomunicações ao serviço de diálogos insólitos, no campo do espectáculo. Terá sido a primeira vez no mundo que antes do espectáculo se não proíba o uso de telemóveis, antes o convite a utilizá-los durante dois minutos numa determinada passagem da obra, indicada para o público pela música vinda das colunas de som (telemóveis “electrificados”…) e pelo maestro. Fruto de uma longa gestação multidisciplinar, é impossível reduzir em duas palavras as técnicas usadas na orquestra, no coro com os seus textos de várias épocas e ideologias, do rapper e da sua adaptação de rua a um mundo poético sofisticado, conciliando-o com o narrador de teatro clássico, o trabalho de exteriores e de estúdio para as imagens que eu próprio filmei (a natureza da cidade histórica, religiosa e ecológica) e outras, entre centenas, que a compositora Ângela Lopes fotografou, além de colaborar no tratamento, em estúdio, nos numerosos e diversos materiais pré-gravados, em textos aí incluídos (texto do foral, texto do poema “Caramuru”, textos em latim, poesia e prosa medievais, etc). Desta obra fiz três versões, uma para piano, “Rituais” para Piano, outra para o Sound Walk do Festival Música Viva, “Quadro-Paisagem”, miniatura electroacústica, e ainda outra electroacústica, de maiores proporções, para um duplo CD editado em 2013, “Cenas de Villaiana – Músicas do Mar e da Montanha”. Obras menores, como satélites, assim chama Dusapin às obras intercalares de óperas ou obras sinfónicas, obras para piano: “Variações à volta do Sol - 10 Happy Birthday Cards”, “ETHNON-cantos do paraíso”, versão para piano solo de “GESTOS-CIRCUS-CÍRCULOS”, “Cantos das Fragas - bandolins, vilas e violões-fado-palimpsesto” para violino, violoncelo, guitarra e piano, e é uma encomenda da Associação Portuguesa de Flautas para o Performa Ensemble de Aveiro, 2013. Outras pequenas obras livres, em perspectivas de encomendas de instituições, ao sabor do tempo e do sorriso. A última curiosidade que me ocupou no ultimo mês, foi a versão para 4 vozes masculinas e piano do Fado Hilário, a convite do Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, de que fui maestro entre 1973 e 1975. Foi nesse contexto e como desafio de auto-provocação, também por razões afectivas, que aceitei o convite. Essa versão está prevista ser estreada em Janeiro de 2014 e estou a escrever uma peça para clarinete, contrabaixo e piano para um amigo e antigo músico do Grupo Música Nova, Américo Aguiar, clarinetista de som inesquecível da Orquestra Sinfónica do Porto. Prometi ao filho contrabaixista do Remix, que me pediu uma peça para contrabaixo, na presença do pai, na Igreja da Rua Guerra Junqueiro, já no templo dos justos. Aí prometi este projecto de amizade e de boa memória, retomando materiais de obras minhas em que ele tinha tocado na orquestra do Porto.

Caso invulgar de obras “recentes” é, em primeiro lugar, “A-MÈR-ES”, composta em 1978, desaparecida dos arquivos da Fundação Gulbenkian que, pela mão de Dra. Madalena Perdigão, pela voz do Dr. Pereira Leal e por proposta de Xenakis, no Théatre de la Ville, de Paris, em 1977, durante as Journées Xenakis, a Fundação encomendou, tendo sido estreada no Grande Auditório, em Novembro de 1979, pelo maestro Michel Tabachnik. Há uns anos apresentei a gravação desse concerto no Festival Música Viva, e em 2009, Miguel Azguime e Pedro Amaral ressuscitaram a obra, com entusiasmo e brilhantismo de produção e de realização, e apresentaram-na, renovada, na parte electrónica e informática, assim como na parte de orquestra, no mesmo Grande Auditório, tendo a própria Fundação, pelos seus Serviços de Música, patrocinado a digitalização da partitura a partir de uma cópia do manuscrito do compositor. Foi, de facto, uma ressurreição de uma obra que pensei jamais seria de novo ouvida fora dos meus registos fonográfico. Reouvida e reinventada!

O segundo caso, e nos antípodas estéticos da anterior, e como síntese de tudo o que foi respondido às perguntas precedentes, a descoberta de Coros e Danças Medievais, pelo maestro André Granjo, para banda filarmónica, obra que eu pensava perdida e irrecuperável, porque nem o manuscrito possuía. Reencontrou-a este maestro nos arquivos da Secretaria de Estado da Cultura, no Palácio da Ajuda, tendo-a estudado e gravado numa Universidade Americana do Texas. Em Portugal foi estreada pela Orquestra de Sopros da Escola Superior de Música de Lisboa, em Novembro de 2012, dirigida pelo Maestro Alberto Roque.

Estes dois casos de recuperação de obras perdidas foram, para mim, dos momentos mais emocionantes dos últimos anos! Daí incluí-las na categoria das “obras mais recentes”, uma, em sintonia com o que de mais moderno se pode conceber em composição, outra, em sintonia com arquétipos de música de sempre na linha dos modos gregos, gregorianos e de toda a história da música europeia construída sobre essas estruturas elementares, num “retorno a”, com incrustações, apesar disso, de técnicas praticadas na música contemporânea (na forma e no espaço de Charles Ives, por exemplo!)

Como vê o futuro da música de arte nos tempos de liquefacção da realidade ou da modernidade líquida (fazendo referência ao termo introduzido por Zygmunt Bauman)?

A teleologia do pensamento musical é uma característica da música europeia e das suas ramificações nos continentes americanos e nos países ocidentalizados, como o Japão, onde as artes tradicionais coexistem com as músicas contemporâneas. Durante alguns séculos assistiu-se a uma concepção da arte e a sua prática centrada em eixos condutores da transformação e projecção das ideias, em conflito permanente nas dualidades evolução-conservação, revolução-contrarrevolução, movimento-repouso, afirmação-recusa, mudança-imobilismo, inovação-reacção, afirmação-rejeição, isto é, avanços e recuos no interior de processos de transformação das ideias, das gramáticas, dos valores, uma ideia de história, afinal. Passados os tempos de sistemas monolíticos, como o sistema tonal e o sistema serial, a desagregação de paradigmas que pareciam imutáveis diluíram-se, e como reacção ou como consequência da deflagração de todos os “status quo” estéticos e ideológicos, as fronteiras e imposições de ordens únicas e herméticas, em inúmeros fragmentos, destruíram as barreiras que os sistemas de vinte séculos centralizaram numa estrutura maniqueísta do bem e do mal. As dialéticas de Nicolau de Cusa ou de Hegel desapareceram nesta fluidez moderna de conhecimento, de práticas e de história como conceito e como realidade, ora absoluta, ora provisória? Tese, antítese, síntese da dialética no mundo ocidental aplicada à história universal? Podemos, com mais felicidade, caminhar pela tese, antítese e síntese aplicando-a às grandes sinfonias de Beethoven e às transgressoras sinfonias da ordem clássica de Ives ou de Berio, do “Sacre” de Stravinsky ou de “Chronochromie” de Messian, do “Tombeau” de Boulez ou de “Kraannerg” de Xenakis. E as músicas fora dos paradigmas e sistemas do racionalismo europeu, pré e pós-iluminismo? A liquescência da realidade esteve sempre subjacente nos modelos de pensamento por que se regeu o pensamento ocidental (”as leis do espírito” de Montesquieu), e essa realidade líquida é marginal aos princípios por que se orientam, na obscuridade do tempo apreendido pelo homem, as culturas eruditas e não eruditas do mundo não ocidental. Enquanto o cérebro humano não for mudado nos seus paradigmas de “Fenómeno Humano”, como o viu Theillard de Chardin, ou como o vê a ciência (ver os estudos e as investigações à volta do cérebro de Einstein e das suas características), pela robótica e pela cibernética, sendo um facto que gradualmente se foi implantando, subrepticiamente, ao longo do séc. XX, e foi sendo implementada nas sociedades modernas de forma visível e imperialista, esta “liquefação da realidade ou da modernidade líquida” não passa de uma realidade provisória e efémera, e poderá dar lugar a um retorno, ou caminha para a dissolução completa das “estruturas mentais” do “inconsciente colectivo”, tal e qual o conhecemos desde o homo erectus. Mas são expressões felizes que exprimem uma realidade infinitamente difusa e livre da pós-modernidade.

 

 

 

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